quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Ascensão da ultradireita transforma política de asilo da UE

Há menos de seis meses, a União Europeia (UE) selou um pacote de reformas para lidar com as notórias falhas do sistema comum de asilo que ficaram evidentes durante a crise migratória de 2015 e 2016, quando a chegada à Europa de mais de 1 milhão de refugiados sobrecarregou as mal preparadas autoridades nacionais.

acordo de migração e asilo da UE  foi a culminação de mais de dez anos de negociações tensas. Ao fim, os 27 Estados-membros concordaram em medidas que permitem uma distribuição maior dos custos do acolhimento aos migrantes em todo o bloco e, ao mesmo tempo, o reforço da proteção das fronteiras externas para impedir sequer o ingresso no território da UE.

Atualmente, porém, o acordo parece estar mais fragilizado do que nunca, pois políticos da ultradireita exercem cada vez mais influência sobre as alavancas do poder nas capitais europeias, tanto diretamente, como parte de governos, quanto indiretamente, atuando na oposição.

Nas últimas semanas de setembro, alguns dos países que foram fundamentais em fazer avançar o pacote de reformas com entrada em vigor programada para 2026, passaram a anunciar medidas para endurecer suas políticas migratórias nacionais.

<><> "Política migratória mais rígida" da história

novo governo de direita da França, que depende tacitamente do apoio do ultradireitista Reunião Nacional (RN), anunciou planos para reforçar suas fronteiras.

A coalizão governamental de centro-esquerda de Berlim, pressionada pelo recente êxito eleitoral da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) em eleições regionais no leste do país, anunciou um reforço dos controles em suas fronteiras com os demais países da UE, a fim de reduzir a entrada de migrantes.

No fim de setembro, a ministra responsável pela migração na Holanda, Marjolein Faber, do ultradireitista Partido pela Liberdade (PVV), anunciou planos para impor o que definiu como "a política migratória mais rígida de todos os tempos".

Numa atitude ainda mais controversa para seus vizinhos da UE, Faber informou a Comissão Europeia que vai procurar retirar seu país do pacote de medidas juridicamente vinculativo. Poucos dias mais tarde, a Hungria anunciou que tentaria algo semelhante, gerando breves temores de um efeito dominó. Por fim, logo se constatou que a exigência holandesa só seria debatida quando ou se os tratados da UE forem renegociados – coisa que não ocorrerá tão cedo.

<><> Retórica versus realidade

Teoricamente são possíveis isenções de determinadas políticas previstas nas leis europeias, como no caso da política migratória da Dinamarca. Porém é necessário que a concordância dos demais Estados-membros seja incluída nas leis fundamentais do bloco.

Alberto-Horst Neidhardt, do think tank Centro Europeu de Políticas, adverte sobre o cuidado ao distinguir entre a retórica e a realidade: "Ouvimos mais e mais declarações políticas que tentam enviar mensagens aos eleitores nacionais. Eu faria uma distinção entre as declarações políticas dos governos nas últimas semanas e o trabalho técnico do acordo [migratório], que está a todo vapor."

Camille Le Coz, especialista do think tank Instituto de Políticas Migratórias em Paris, concorda com o colega: "Há uma lacuna entre o que se diz e o que se faz." Ao mesmo tempo, "o que se afirma publicamente pode ter ramificações para os demais países". A Grécia, por exemplo, se irritou com o anúncio da Alemanha sobre o aumento dos controles de fronteira.

Em todo o continente, os governos se mostram cada vez mais dispostos a transmitir uma imagem de rigidez contra a migração. Muitos políticos temem ser criticados por aceitar leis da UE que resultariam no acolhimento de um número maior de migrantes. Os Estados-membros se observam de perto mutuamente, e as acusações recíprocas de parasitismo ou hipocrisia não tardam a surgir.

<><> Chances mínimas de realocar refugiados

Nos próximos dois anos, cada país deverá incluir em suas leis nacionais as mudanças previstas no acordo europeu. Sob as novas regras, os requerentes de abrigo e os refugiados deverão ser avaliados com mais rigor nos sete dias após sua chega em solo europeu.

As novas regras permitem que determinados requerentes sejam barrados nas fronteiras externas do bloco e avaliados em procedimentos acelerados, possibilitando uma rápida deportação, caso o pedido de asilo seja rejeitado.

Para políticos da ultradireita, contudo, como o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, a provisão mais problemática da lei é a que obriga todos os Estados-membros a acolherem os refugiados que forem aprovados por outras nações do bloco, de modo a distribuir mais uniformemente os recém-chegados. 

Sob as regras UE, os pedidos de acolhimento dos refugiados devem, de modo geral, ser registrados nos países do bloco onde pisaram pela primeira vez solo europeu. Esse, porém, é um sistema obviamente injusto com nações como a Itália ou a Grécia, nas fronteiras sul do bloco europeu.

Se outros Estados-membros rejeitarem as realocações de migrantes, que deverão ocorrer aos milhares todos os anos, devem então pagar uma contribuição financeira de 600 milhões de euros (R$ 3,6 bilhões) ou fornecer apoio logístico.

Amsterdã, por exemplo, deverá escolher uma dessas opções, ao invés de aceitar as realocações, avalia o especialista Neidhardt. Isso não seria o mesmo que se retirar do acordo, algo que levaria anos para ser negociado, e "a Holanda permanecerá vinculada às regras que acabou de aceitar".

<><> Política migratória prestes ao colapso?

O acordo sobre migração e asilo foi, na verdade, um meio consenso que não deixou ninguém totalmente satisfeito, sejam os linha-dura anti-imigração, como o governo húngaro, sejam os países nos limites do bloco, como a Grécia, ou as principais destinações finais dos migrantes, que é o caso da Alemanha. 

Ainda menos impressionados estão os defensores dos diretos dos refugiados e migrantes, segundo os quais, o pacto não impedirá milhares de mortes todos os anos nas travessias do Mar Mediterrâneo, além de gerar novos entraves ao direito de requerer asilo.

Para Neidhardt, apesar do que os governos europeus afirmam em público, eles sabem que o acordo é "grande demais para poder fracassar". "Caso o pacto fracasse, isso significaria o fim do sistema comum europeu de asilo. Isso não é do interesse de nenhum dos Estados-membros, seja Grécia, Holanda, ou quem for."

De fato, o reforço das políticas migratórias da UE precede o acordo e o recente ganho de influência da ultradireita em capitais como Estocolmo e Roma. Há anos a UE vem aumentando seus gastos com a proteção das fronteiras e com o envio de recursos para os países de origem dos migrantes, na tentativa de reduzir o número dos que tentem buscar uma nova vida na Europa.

<><> Longo caminho para a reforma

Para Camille Le Coz, o acordo ainda é a melhor maneira de os Estados-membros lidarem com as inúmeras questões envolvendo o gerenciamento da migração. Ela frisa que assegurar aos países do bloco a estrutura política necessária para garantir que as coisas continuem avançando deve ser uma prioridade da Comissão Europeia.

"O motivo por que temos esse sistema comum europeu de asilo está relacionado ao Espaço de Schengen [a zona de livre circulação entre as fronteiras dos países da UE] e à liberdade de movimento."

Para a especialista, é necessário aguardar para ver se esse frágil acordo conseguirá se manter. Os primeiros prazos essenciais já se anunciam: até o fim de 2024, todos os Estados-membros devem finalizar seus planos de implementação das medidas previstas no pacto. "Acho que vai ser interessante observar isso."

 

¨      O que significa vitória da direita radical acusada de usar 'retórica nazista' na Áustria

O líder do partido Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ, na sigla em alemão), de direita radical, Herbert Kickl, disse que a sigla deu início a uma "nova era" após uma vitória inédita em eleições no fim de semana.

O FPÖ conquistou 29,2% dos votos segundo resultados provisórios — quase três pontos a mais do que o conservador Partido Popular Austríaco (ÖVP), que chegou a 26,5%. Mas o partido ainda está longe da maioria necessária para governar — e pode ter dificuldades para formar um governo.

Kickl elogiou os eleitores austríacos por seu "otimismo, coragem e confiança" em escrever uma "parte da história".

Analistas políticos dizem que durante a campanha, Kickl e o FPÖ fizeram referências veladas ao nazismo — apesar de o partido negar qualquer ligação com o nazismo atualmente. O FPÖ foi fundado por ex-nazistas nos anos 1950.

Em discursos, Kickl prometeu se tornar Volkskanzler (o chanceler do povo), mesmo termo usado por Adolf Hitler na Alemanha nazista.

Dois dias antes da eleição, alguns candidatos foram filmados cantando uma música da SS (o órgão paramilitar do partido nazista da Alemanha dos anos 1930) em um funeral.

Na medida em que a vitória do FPÖ começou a ficar evidente, alguns manifestantes protestaram com faixas anti-nazismo em frente ao parlamento austríaco.

Kickl tinha como bandeiras de campanha os temores sobre imigração na Áustria e a indignação com a forma como o governo lidou com a pandemia da covid. O político defendeu teorias da conspiração sobre tratamentos obscuros contra o vírus.

Em 1999, o partido chegou em primeiro lugar na eleição nacional e participou de uma coalizão de governo junto com o conservador ÖVP.

Durante o governo, a Áustria foi alvo de sanções e boicotes por parte de alguns países da União Europeia — forçando a renúncia do então líder do partido, o polêmico político Jörg Haider, um político que fazia frequentes elogios à Alemanha nazista. Herbert Kickl escrevia alguns dos discursos de Haider.

<><> Onda de direita radical na Europa

A vitória de Kickl é a mais recente em quase um ano de sucessos eleitorais da direita radical na Europa.

Na Itália, a premiê Giorgia Meloni lidera uma coalizão de direita, à frente do partido Irmãos da Itália, de direita radical. Na Alemanha, a sigla da direita radical AfD ficou em primeiro lugar em eleição no Estado da Turíngia no mês passado. Na Holanda o Partido pela Liberdade, de Geert Wilders, também liderou o resultado de eleições porém desistiu de ser primeiro-ministro para que fosse possível costurar uma coalizão que permitisse formar um governo. Na França, o Reunião Nacional, de Marine Le Pen, foi vitorioso na eleição de junho para o parlamento europeu.

Ao contrário de Kickl, a premiê italiana deu total apoio à União Europeia em sua defesa da Ucrânia contra a Rússia.

Uma das líderes do AfD, Alice Weidel, parabenizou Kickl, publicando uma foto de ambos juntos. Marine Le Pen, do Reunião Nacional, disse que existe uma "onda de apoio à defesa de interesses nacionais", depois que eleições pela Europa confirmaram "os triunfos dos povos em todos os lugares".

Geert Wilders disse que os tempos estão mudando, e que milhões de europeus querem "identidade, soberania, liberdade e o fim da imigração ilegal e asilo".

Para Kickl, a vitória no pleito de domingo é uma recuperação notável em relação a 2019, quando o partido ficou em terceiro lugar, em meio a escândalos da época.

O partido de Kickl conquistou 58 vagas no parlamento austríaco, que possui 183 assentos. Os conservadores ficaram com 52 vagas, e os social-democratas, com 41.

O líder do FPÖ prometeu aos austríacos construir algo que ele chama de "Fortaleza Áustria", para restaurar segurança, prosperidade e paz. Ele se alinhou ao primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán.

O líder social-democrata Andreas Babler alertou que a Áustria não deve seguir o mesmo caminho da Hungria.

<><> Dificuldades para governar

O comparecimento às urnas foi considerado alto, com índice de 74,9%. Os principais temas do pleito foram migração e asilo político, além da guerra na Ucrânia e do fraco desempenho da economia.

O FPÖ já participou de coalizões no passado. Mas o ÖVP disse que se recusa a participar de um governo liderado por Kickl. O maior rival do líder da direita radical, o chanceler Karl Nehammer, do ÖVP, disse que "é impossível formar um governo com alguém que adora teorias da conspiração".

O secretário-geral da FPÖ, Michael Schnedlitz, afirmou que "os homens e mulheres da Áustria fizeram história hoje", mas não disse que tipo de coalizão o partido tentará formar para poder governar.

Uma análise dos eleitores sugere que pessoas entre 35 e 39 anos eram as que tinham maior probabilidade de votar na direita radical — com leve predominância de mulheres.

Formar uma coalizão será uma tarefa difícil para Kickl, que é considerado uma pessoa polêmica.

Os social-democratas, os verdes e os integrantes do Neos (partido liberal) disseram que não formarão alianças com a direita radical.

A única possibilidade de coalizão seria com os conservadores do ÖVP, mas eles já manifestaram que não formarão governo com o FPÖ se Kickl for o chanceler.

Isso aconteceu na Holanda no ano passado, quando o líder do Partido pela Liberdade, Geert Wilders, aceitou não ser primeiro-ministro para que outras três siglas formassem uma coalizão junto com a direita radical.

Mas na Áustria, Kickl está determinado a liderar o país, prometendo agir como "servo e protetor" do povo.

O analista político Thomas Hofer disse à BBC que não está claro se o presidente Alexander Van der Bellen, que convoca as partes para a formação de governo. daria a Kickl um "mandato direto para formar uma coalizão".

Em tese, os conservadores conseguiriam formar uma coalizão junto com social-democratas e até mesmo atrair o Neos e os verdes.

Igualmente, Karl Nehammer pode ser pressionado a aceitar Kickl. Um político do FPÖ disse que Nehammer deveria renunciar depois da derrota no fim de semana, mas essa sugestão foi rejeitada pelo secretário-geral do ÖVP.

No passado, o presidente Van der Bellen manifestou preocupação com o FPÖ por sua postura crítica à União Europeia e pelo partido não criticar a invasão da Ucrânia pela Rússia.

O partido se opõe a sanções contra Moscou, citando a neutralidade da Áustria. Muitos de seus políticos se retiraram do parlamento em Viena no ano passado quando o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, fez um discurso.

 

Fonte: DW Brasil/BBC News 

 

Nenhum comentário: