A influente primeira-dama brasileira que
foi monitorada pelo FBI e teria 'proibido' jogos de azar
"Considerando que
a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática
e à exploração de jogos de azar" e "[considerando] os abusos nocivos
à moral e aos bons costumes"...
Com essa linha de
argumentação, o então presidente Eurico Gaspar Dutra assinou, em abril de 1946,
um decreto-lei que determinava a proibição dos jogos de azar em todo o Brasil e
o fechamento dos imponentes cassinos no país — uma regra que segue válida até
hoje, quase 80 anos depois.
Atualmente, tramita no
Senado um projeto de lei que libera cassinos, bingos e demais jogos de azar no
Brasil.
Em discussão há mais
de 30 anos, o projeto já foi aprovado na Câmara e, em 2024, recebeu aval da
Comissão de Constituição e Justiça no Senado. O projeto deve passar por outras
comissões antes de ser levado ao plenário.
Autorizada plenamente
entre 1934 e 1946, a exploração dos jogos de azar no Brasil movimentou a noite
do Rio de Janeiro, então capital federal, impulsionou o turismo em cidades
serranas, como Poços de Caldas (MG) e Petrópolis (RJ), e movimentou o mercado da
música nacional, com shows icônicos de artistas como Carmen Miranda.
Mas nem todo mundo
estava feliz com o dinheiro e o agito trazidos pelo giro das roletas.
Quando se fala sobre a
proibição dos jogos de azar no Brasil, uma das peças fundamentais
frequentemente citada é a primeira-dama Carmela Dutra, esposa do então
presidente Dutra e conhecida como “dona Santinha” por sua religiosidade
católica.
Um texto sobre a
legislação antijogo da Agência Senado registra que "a versão mais
prosaica" dos motivos da proibição é a de que "os cassinos foram
fechados a pedido da primeira-dama".
A história é contada
também por pessoas interessadas em jogos e que estudam essa legislação no
Brasil.
Não há documento
conhecido que registre de fato o papel dessa mulher na decisão do marido, mas
alguns sinais demonstram que ela era uma figura religiosa influente no poder
nos anos 1930 e 1940, conta o historiador e filósofo Fabio Souza Lima,
professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Lima pesquisou em seu
mestrado a história da Escola Normal Carmela Dutra, uma instituição fundada no
subúrbio do Rio de Janeiro para formar professores nos anos 1940.
Em busca de
informações sobre a mulher que batizava o colégio, ele percebeu que pouco se
sabia sobre a primeira-dama e foi atrás de documentos.
"Nós não temos
uma documentação ou pelo menos alguém vivo que possa relatar essa influência
sobre a vida do Dutra. O que nós temos até então realmente são notícias de
influência e indícios", explica Lima.
Nos arquivos a que
teve acesso, o pesquisador encontrou, por exemplo, diversas imagens que mostram
Santinha muito mais próxima do antecessor do marido, o presidente Getúlio
Vargas, do que o próprio Dutra, então ministro da Guerra.
Além disso, Lima
descobriu um fato inédito sobre Carmela Dutra.
Após muita
insistência, o pesquisador teve acesso a um documento do departamento federal
de investigação dos EUA, o FBI, datado de 1942, em que se falava sobre a
possibilidade de Santinha ser simpática ao regime nazista e sua influência no
círculo do poder.
Diz o documento do
FBI, redigido pelo pioneiro diretor John Edgar Hoover: “Foi recebida uma
informação considerada confiável de que a Sra. Santinha de Correa Dutra, esposa
do Ministro da Guerra do Brasil, General Eurico Dutra, exibe simpatias
pró-nazistas e está tentando converter seus colegas, que pertencem às mais
altas camadas da sociedade brasileira, ao nazismo”.
“Também se alega que a
Sra. Dutra teria dito que, se o Brasil fosse para a Guerra, seus dois filhos
seriam os primeiros a desertar do Exército Brasileiro”, completa o documento.
Na época do documento,
o Brasil já tinha declarado guerra ao Eixo, a aliança formada por Alemanha,
Itália e Japão. Mas o País só viria a enviar soldados em 1944.
• 'Exemplo de brasileira e cristã'
Nascida na Ilha do
Governador, no Rio, dona Carmela era professora e teve dois filhos de um
primeiro casamento. Após ficar viúva, casou-se com o então segundo tenente do
Exército Eurico Gaspar Dutra, com quem teve mais dois filhos
Segundo a pesquisa de
Fabio Souza Lima, nos anos 1920, antes de ser primeira-dama, Carmela Dutra teve
forte atuação entre o grupo de educadores católicos que pregava "a
recristianização do país", em contraste com o Movimento Escola Nova,
defensor, dentre outras coisas, de um ensino laico.
Também há registros da
atuação de Carmela junto à Liga Eleitoral Católica (LEC), que naquele momento
fazia campanha para fieis não votarem em candidatos considerados “comunistas”.
Santinha era ainda
próxima do cardeal Jaime Câmara, que foi arcebispo do Rio de Janeiro e que
também é creditado como um dos influenciadores para a eliminação dos jogos de
azar no Brasil.
Segundo texto da
Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), Câmara era "um homem avesso à
pompa e à ostentação".
Na Bíblia, há diversos
elementos que, segundo especialistas, condenam como pecado a jogatina.
Não é de se estranhar,
portanto, o apelido Santinha, que não era incomum a mulheres religiosas daquela
época.
O alcunha era
inclusive usada pela própria Carmela. Num bilhete ao ministro da Educação de
Vargas, Gustavo Capanema, ela assina com "da sua amiga Santinha". Os
dois compartilhavam o sentimento anticomunista.
O jornalista e
escritor Ruy Castro, no seu livro A Noite Do Meu Bem, sobre a história das
boates cariocas pós-fechamento de cassinos, registra que "dizia-se que ela
[Santinha] bombardeava os ouvidos de Dutra com as pregações que escutava dos
padres. Nem o argumento de que os impostos do jogo financiavam as obras sociais
pelas quais ela, como primeira-dama, ficara responsável a sensibilizava".
No meio militar,
Carmela passou a se tornar "homenageada" e "madrinha" em
diversos eventos nos círculos do poder do Brasil. Ela participava de jantares
com diplomatas, inaugurações de igrejas e campanhas de distribuição de
alimentos aos mais pobres.
No ano em que o marido
assumiria a Presidência, em janeiro de 1946, Carmela recebeu uma homenagem no
jornal carioca Gazeta de Notícias.
O texto dizia que
"um vendaval de egoísmo, de materialismo, de desordem moral e social
sacode o edifício da Família" no Brasil pós-Segunda Guerra.
E acrescentava que as
famílias brasileiras "confiavam no vosso exemplo de esposa, de mãe, de
brasileira e de cristã", e que as preces de dona Carmela "conseguirão
salvar nossa terra, salvar o nosso amado Brasil, desse dilúvio de descrença, de
materialismo".
Em imagens antigas, é
possível ver essa tentativa de vender Carmela e família como um modelo para os
brasileiros
"Tem fotos em que
ela aparece colocando a mão no peito do marido, atrás um grande crucifixo, o
marido com um chapéu e uma pastinha como se estivesse indo pro trabalho",
diz Lima.
Também é através das
imagens históricas que é possível achar pistas da influência política de
Santinha, segundo o historiador.
Nos arquivos do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da
Fundação Getúlio Vargas (FGV), é possível ver Santinha muito próxima do
presidente Vargas em diferentes ocasiões.
"Em alguns
jantares, ela está bem mais próxima inclusive do presidente Vargas do que o
próprio Eurico Gaspar Dutra, o que não é usual para aquela época. Em eventos
esportivos, ela aparece ao lado do presidente enquanto Dutra está três cadeiras
depois. Isso mostra o quanto ela era influente dentro dos círculos do
Poder", explica Lima.
Além da história do
fechamento dos cassinos, também é atribuída a Santinha a influência para Dutra
proibir atividades do Partido Comunista do Brasil (PCB).
E é justamente o PCB
que é alvo de outra teoria, também não exatamente documentada, sobre a
proibição dos jogos de azar.
O Memorial da
Democracia, um acervo online ligado ao Instituto Lula, fala de "rumores –
nunca comprovados – de que os cassinos abasteceriam a família do ex-presidente
Getúlio Vargas, que legalizara os jogos em 1934".
O jornalista Magno
José de Sousa, especialista em contar histórias sobre jogos no Brasil e
presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal, explica que o rumor é de que o
empresário Joaquim Rolla, dono dos principais cassinos do Rio de Janeiro, tinha
ligações com Benjamim Vargas, o irmão de Getúlio, e com o Partido Comunista do
Brasil.
Uma terceira hipótese
sobre a decisão de Dutra é a influência de seu ministro da Justiça, Carlos Luz.
Ruy Castro, no livro A
Noite Do Meu Bem, escreve que "para ele [ministro Carlos Luz], o jogo era
um câncer moral, que arruinava os homens de bem e destroçava as famílias. Os
grandes perdedores se matavam".
Luz teria atuado para
convencer Dutra de que a decisão de proibir jogos de azar seria bastante
popular, inclusive com apoio dos jornais da época, que eram avessos à jogatina.
• Do luxo à proibição
O jornal O Globo
registrou as últimas palavras ditas na última noite de funcionamento do cassino
do luxuoso hotel Copacabana Palace, na orla do Rio de Janeiro, às 23h de 30 de
abril de 1946.
"Coube ao então
diretor do cassino, José Caribé da Rocha, girar a roleta final. Emocionado,
anunciou: 'Senhoras e senhores, façam suas apostas para a última rodada de
roleta no Brasil!' No sorteio, deu 'preto 2'", anunciou Caribé.
A decisão de Dutra pôs
fim a uma era de ouro das jogatinas no Brasil, com seus hoteis luxuosos como o
Quitandinha, em Petrópolis, ou o Palace, de Poços de Caldas.
No Rio de Janeiro, os
principais eram os cassinos da Urca, Atlântico e Copacabana Palace. No auge,
São Lourenço, em Minas Gerais, chegou a possuir oito empreendimentos ligados à
exploração dos cassinos.
Segundo registros
divulgados na imprensa, o fechamento dos 71 cassinos do Brasil deixou 60 mil
desempregados.
"Eu canso de
ouvir em Las Vegas [EUA] que o modelo de lá foi copiado do Rio de Janeiro. Por
quê? Porque aqui tinha hotel, shows, restaurantes, era um espetáculo de
entretenimento. Nos EUA, no início era só jogo", conta Magno José de
Sousa, do Instituto Jogo Legal, ONG que "produz e estimula estudos e
pesquisas sobre jogos e loterias, além de fomentar a criação de um marco
regulatório para estas atividades".
Mas esses tempos de
jogatina nunca duraram muito tempo no país.
Os cassinos eram
proibidos no Brasil Império e foram permitidos pela primeira vez em 1920 pelo
presidente Epitácio Pessoa, mas apenas nas estâncias balneárias, climáticas e
de águas — os únicos lugares onde havia turismo na época.
Ao longo dos anos
1920, os espaços frequentemente eram fechados por decisões de juízes e leis
estaduais, até serem vetados em 1924.
Foi Getúlio quem
liberou os jogos em todo o país em 1934. Em 1941, ele proibiu apenas o jogo do
bicho e, em 1946, Dutra proíbe tudo - sinais de que os jogos de azar nunca
foram plenamente aceitos na sociedade.
No início dos anos
1990, um outra modalidade de jogo voltou a ser liberada no Brasil: o bingo.
O governo Fernando
Collor autorizou a sua exploração para arrecadar recursos para o esporte
nacional. No início dos anos 2000, primeiro no governo Fernando Henrique
Cardoso e depois com Lula, o bingo voltou a ser coibido, com a atividade sendo
totalmente proibida em 2007.
"Sempre teve essa
questão religiosa, como na história de Santinha. Primeiro, pela Igreja
Católica, que sempre se colocou contrária aos jogos. Agora, com o crescimento
da bancada evangélica", diz Magno José.
Em dezembro de 2023,
em meio às discussões sobre a nova lei que liberaria os jogos de azar, a CNBB
emitiu nota pedindo ao Legislativo brasileiro que "rejeite o projeto de
legalização dos jogos de azar no país".
"O voto favorável
ao jogo será, na prática, um voto de desprezo à vida, à família e a seus
valores fundamentais. O Brasil não precisa disso!”, escreveram os bispos.
No Congresso,
parlamentares conservadores e evangélicos são os que seguem mais ativos na
defesa contra os jogos, argumentando que o ambiente como cassinos aumenta o
vício em jogos, possibilita a criação de um ambiente favorável à prostituição e
ao consumo de drogas.
Mas o projeto também
encontra resistência em setores da esquerda. Na Câmara, em 2022, deputados do
PT e PSOL votaram majoritariamente contra o projeto, que acabou sendo aprovado
apoiado pela maioria do centrão.
O deputado Carlos
Zarattini (PT-SP) disse na época que a liberação traria a "possibilidade
de que muitas e muitas pessoas que hoje não acessam os jogos de azar acabem se
aproximando dessa prática e se viciando".
A proposta em
tramitação agora no Senado prevê a permissão para a instalação de cassinos em
polos turísticos ou em complexos integrados de lazer, como hotéis de alto
padrão, com restaurantes e bares.
O texto propõe ainda a
possível emissão de uma licença para um cassino em cada Estado e no Distrito
Federal. Alguns Estados teriam exceção, como São Paulo, que poderia ter até
três cassinos, e Minas Gerais, Rio de Janeiro, Amazonas e Pará, com até dois cada
um, sob a justificativa do tamanho da população ou do território.
O presidente Lula já
declarou não ser favorável a jogos, mas também não acha que é um crime e que
vai sancionar o projeto, caso seja aprovado.
Para Magno José, mesmo
com a legislação atual, o Brasil segue jogando.
"A gente não pode
tratar uma atividade econômica como se fosse uma questão de costumes",
defende.
Além da discussão
sobre jogos de azar, o Brasil também se vê imerso na disputa sobre o mercado de
apostas esportivas.
As conhecidas 'bets'
não são consideradas jogos de azar, pois o apostador é capaz de acompanhar o
resultado para saber se ganhou ou perdeu, monitorando os eventos esportivos.
Também é possível saber qual será o lucro obtido em caso de resultado favorável,
por isso esse tipo de aposta é chamada de quota fixa.
Em 2018, o então
presidente Michel Temer sancionou a lei que autorizava as bets no Brasil, mas
sem regras específicas para o setor. Na gestão de Jair Bolsonaro, o governo não
regulamentou a atividade, como era previsto na nova legislação - o que deve ser
feito pela gestão Lula até o fim de 2024.
A regulamentação vai
permitir que o governo passe a taxar empresas e apostadores, além de fiscalizar
o setor.
Em meio à grande
polêmica que se estende há decádas sobre a prática de jogos, uma modalidade,
porém, nunca foi proibida no Brasil: as apostas em corridas de cavalo. O
chamado turfe é praticado, sobretudo, pela elite.
Fonte: BBC News Brasil
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