Venezuela — a divisão da esquerda
À diferença do que vem
ocorrendo há 25 anos em relação às eleições na Venezuela — e foram dezenas
desde a vitória de Hugo Chávez em 1998 — desta vez, depois do pleito de 28 de
julho, a esquerda ampla latino-americana, incluída nela toda a base do
“progressismo”, se dividiu de alto a baixo.
Um setor cada vez
menor, mas ainda numeroso e repleto de intelectuais, ecoa o argumento do Fórum
de São Paulo, segundo o qual, para salvar a Venezuela e a região do
imperialismo norte-americano, é necessário apoiar o governo de Nicolás Maduro a
qualquer custo. Contabiliza-se nesse custo, é evidente, a possibilidade de que,
à diferença das vezes anteriores, Nicolás Maduro pode não ter ganho as
eleições, porque afinal, até o momento recusa-se a provar sua vitória.
De acordo com essa
lógica, mais baseada na geopolítica clássica do que no marxismo, não apenas
tudo é válido, como necessário para “não entregar” o poder (e o petróleo)
venezuelano “à direita”. Segundo o raciocínio geopolítico, o fato de Nicolás
Maduro ter ganhado ou perdido o pleito é secundário em relação ao imperativo
“nacionalista progressivo” de impedir que o imperialismo estadunidense,
corporificado pelo candidato oposicionista Edmundo González, se instale no
Palácio de Miraflores, e com isso ponha em perigo a propriedade estatal da
PDVSA (Petróleos de Venezuela SA), dona de uma das maiores reservas de óleo e
gás do planeta.
Um setor do
progressismo, é verdade, faz menos ênfase no petróleo e mais na tragédia que
seria reconhecer a derrota de Nicolás Maduro, visto como de esquerda, num
cenário de avanço das extremas direitas no mundo e na região. Para todos eles,
no entanto, não haveria outra saída a não ser ficar com Nicolás Maduro. Nem
mesmo uma negociação entre os dois lados da contenda venezuelana, como propõem
Lula e Gustavo Petro — provavelmente para buscar uma divisão de poderes entre
os dois lados, com alguma garantia para as liberdades democráticas e alguma
proteção à integridade da PDVSA.
·
A história, os fatos
não importam
Cabe perguntar à guisa
de recordação: qual é a linha que marca a diferença entre a direita e a
esquerda — discurso ou ação? Nicolás Maduro certamente mantém uma gramática
discursiva com palavreado de esquerda. Diz que seu governo é uma “aliança
militar-policial-popular anti-imperialista e pelo socialismo”. Necessita
legitimar-se interna e externamente como sucessor de Hugo Chávez, quando tudo o
que fez foi fazer retroceder as conquistas e legado dos anos de avanço do
processo bolivariano.
Para lá das
aparências, o fato é que sua política, desde 2013, é a de incentivar o
enriquecimento de um novo setor empresarial no país e, como um Bonaparte,
negociar entre as diferentes frações da burguesia venezuelana, novas e velhas
(com exceção da mais umbilicalmente vinculada à extrema direita ianque, que é a
de Maria Corina Machado e Edmundo González) para permanecer no governo. Nicolás
Maduro sempre favoreceu setores empresariais, em particular ao dos serviços à
indústria petrolífera, cujos dividendos alimentam a nova burguesia e tem parte
distribuída às cúpulas de suas forças armadas e policiais (daí a aliança). Mais
de 800 carros de alto luxo foram apreendidos apenas entre os cem envolvidos na
megacorrupção com criptomoedas da PDVSA, descoberta em 2023, o que é apenas um
reflexo da situação de deterioração moral da liderança do governo.
Mesmo sob o fogo
intenso das sanções imperialistas ocidentais contra a Venezuela — que vêm do
governo de Barack Obama, passaram por Donald Trump e se flexibilizaram com Joe
Biden — jamais tomou qualquer medida de enfrentamento com o sistema financeiro
globalizado e seus apoiadores internos. Vem destinando uma parte substancial do
minguante orçamento nacional a bancos privados para garantir a venda de moeda
estrangeira a empresas privadas e rentistas, o que se torna uma política de
subsídio e favorecimento dos ricos.
Simultaneamente (desde
o decreto 2792, de 2018), proíbe greves, a apresentação de reivindicações, o
direito de mobilização da classe trabalhadora, a organização e a legalização de
novos sindicatos, enquanto processa e manda à prisão líderes sindicais que
questionam práticas internas nas empresas, ou simplesmente pedem reajuste
salarial e plano de saúde. Foi o caso da Siderúrgica del Orinoco (Sidor), a
maior concentração do proletariado na Venezuela: depois de uma mobilização por
salários e benefícios, entre junho e julho de 2023, os grevistas e dirigentes
foram vítimas de intensa repressão. Leonardo Azócar e Daniel Romero, delegados
sindicais, estão presos desde então.
O “anti-imperialismo”
de Nicolás Maduro e seu entorno não o impede de entregar agora o petróleo de
que os EUA precisam por meio da Chevron e de outras grandes companhias
estrangeiras (como a Repsol), num contexto em que o Ministério da Fazenda dos
EUA as autoriza a extrair o ouro negro venezuelano, proibindo suas empresas de
pagar impostos e royalties à Venezuela. A aceitação dessas condições
neocoloniais mostra os limites do anti-imperialismo madurista.
As sanções contra a
Venezuela se tornaram mais flexíveis sob Joe Biden (premido pela guerra na
Ucrânia), mas Nicolás Maduro mantém inalterável o discurso de que tudo é culpa
das sanções, como pretexto para avançar em um ajuste estrutural que afeta
fundamentalmente os que vivem do trabalho. Em termos políticos, dentro da
Venezuela, o discurso das sanções dos EUA (reais, concretas e detestáveis)
acabou perdendo a eficácia política diante da ostentação, do estilo de vida
luxuoso (com direito a casos de corrupção bilionária) daqueles que agora
governam o país.
·
A classe trabalhadora
como um elemento acessório
A análise da situação
da classe trabalhadora venezuelana como base da análise de esquerda é
substituída, pelos pró-Maduro, pela moda da “geopolítica do petróleo”. Essa
geopolítica binária só vê a contradição imperialismo versus estado venezuelano
(sem dúvida uma contradição importante da realidade). Não tem dialética
suficiente para levar em conta, num cenário de múltiplas contradições, a
situação material e política das trabalhadoras e das camadas populares, suas
aspirações e opções. É como se essa fosse uma questão acessória, ou uma
contradição secundária. O “mantra” dos pró-Maduro para omitir a análise de
classe é evitar que a direita chegue ao poder, ignorando o fato de que a
Venezuela tem um governo que aplica as receitas econômicas estruturais da direita,
apenas com uma retórica de esquerda.
Bastaria conversar com
os trabalhadores (não com a burocracia dos patrões da CBST) da Sidor, da PDVSA,
professores e docentes universitários para constatar a terrível situação
material em que vivem (salário-mínimo de US$4 ou R$ 24 ao mês, salário médio de
US$ 130 ou pouco mais de R$ 700 mensais, composto por 80% de bônus), em meio à
pior perda de liberdades democráticas em décadas para sua organização,
mobilização e luta.
Os novos geopolíticos
do progressismo colocam a questão das eleições de 28 de Julho na linha de
disputa da grande mídia internacional (CNN, CBS e
outras), só que do lado oposto da calçada. Não defendem os interesses de María
Corina Machado e Edmundo González, mas os de Nicolás Maduro e da nova
burguesia, com o falso axioma segundo o qual Maduro seria igual à classe
trabalhadora, sem uma linha de análise do que têm sido as políticas
antioperárias e antipopulares de seu governo.
Eles caem na armadilha
do “fetichismo legal”, ao limitar a análise da conjuntura aos resultados das
eleições. A questão não é apenas o fato de Nicolás Maduro e o CNE não terem
mostrado que contas fizeram para dar ao presidente a vitória nas eleições de 28
de julho, mas como essa situação afeta a estrutura das liberdades democráticas
concretas nas quais a classe trabalhadora atua e sobrevive.
Se não há
transparência e legitimidade nas eleições nacionais, nas quais os candidatos
registrados representavam diferentes matizes dos programas burgueses, é difícil
pensar em recompor o mínimo de liberdades democráticas de que a classe
trabalhadora necessita para se defender contra a ofensiva do capital sobre seu
trabalho (o direito a salários dignos, o direito de greve, a liberdade
sindical, a liberdade de mobilização, opinião e organização em partidos
políticos).
A classe trabalhadora
está fundamentalmente interessada em saber se a situação após o 28 de Julho
permitirá ou restringirá, em curto prazo, as liberdades de que ela precisa para
se expressar como uma classe explorada. Mas essa contradição não entra na lógica
e nos discursos da nova geopolítica progressista.
·
Omissões e silêncios
comprometedores
Pouco importa para
esses “progressistas” a repressão à organização sindical e política dos
trabalhadores e do povo, nem que Nicolás Maduro tenha impedido qualquer
setor à esquerda do PSUV de participar das últimas eleições do país — mesmo à
custa de infiltrar, judicializar e agredir a liderança do Movimento Eleitoral
Popular (MEP), do Partido Pátria para Todos (PPT), dos Tupamaros e do próprio
Partido Comunista da Venezuela (PCV) para intervir nele! Os partidários de
Nicolás Maduro omitem que o governo, após 28 de julho, intensificou a
repressão, não mais sobre a classe média, mas fundamentalmente aos setores
populares, enviando cerca de 2.500 jovens para a prisão com um discurso de
reeducação, o que significa submetê-los a rituais públicos vexatórios de lavagem
cerebral transmitidos pelas redes oficiais.
Silenciam sobre a
construção de duas prisões de segurança máxima para aqueles que forem pegos em
protestos ou incitando protestos nas redes sociais. Passam ao largo da prisão
de vários políticos da oposição e das ameaças diretas na televisão a outros — como
o ministro do “martelo”, Diosdado Cabello, fez com o ex-prefeito de Caracas
Juan Barreto, ou com Vladimir Villegas, irmão do ministro da Cultura e de
uma presidenta de comissão parlamentar. Se a ameaça a figuras públicas é assim,
ela é pior nos territórios de pessoas comuns que não são figuras da mídia.
Recentemente, vimos o
envio de forças de segurança à paisana para ameaçar ativistas — como aconteceu
em 10 de julho contra Koddy Campos e Leandro Villoria, líderes da comunidade
LGBTQI em Caracas. Como vimos nos dias seguintes no tradicional reduto chavista
de 23 de fevereiro, em Caracas, em que casas de ativistas foram marcadas, por
gente do governo, com um X de Herodes, para amedrontar contra a possibilidade
de manifestações.
A esquerda geopolítica
silencia sobre o número de mortos após o 28 de Julho (próximo dos 25, de acordo
com estimativas de organizações de direitos humanos e movimentos sociais),
ampliando a narrativa de que se tratava apenas de pessoas de direita. Isso não
é apenas falso, mas constitui um retrocesso nos ganhos em direitos humanos
obtidos nos períodos pós-ditadura na região.
O progressismo
geopolítico reproduz a miragem de um governo popular que já não existe, que foi
apagado pelo transformismo e pelas políticas anti-operárias de Maduro. Parecem
pedir à classe trabalhadora venezuelana que lute pelos seus direitos apenas
dentro do quadro que o governo permite, para alimentar, do exterior, a utopia
que eles não podem construir nos seus próprios países. Este progressismo não vê
que o crescimento da candidatura de direita é o resultado da ilegalização e da
negação da possibilidade de uma alternativa à esquerda. O sucesso eleitoral da
dupla Machado-González é em grande parte resultado dos erros políticos do
Madurismo.
·
E o petróleo afinal?
Todos os fatos graves
mencionados acima são considerados pelos apoiadores da “vitória” de Nicolás
Maduro como detalhes “democrático-formais” secundários diante do perigo de ter
a direita “esquálida” novamente no governo venezuelano. O raciocínio é tão desprovido
de critérios de classe quanto é desprovido de monitoramento básico da realidade
do país.
Desde novembro de
2022, no âmbito da guerra na Ucrânia, o Secretário do Tesouro dos EUA autorizou
a Chevron a explorar e exportar petróleo venezuelano, com a condição de que não
pagasse impostos ou royalties ao governo venezuelano, o que constitui condições
neocoloniais que nem sequer eram conhecidas nos governos anteriores a Hugo
Chávez e que foram aceitas por Nicolás Maduro. A partir desse momento, a
Venezuela voltou a ser um fornecedor estável de petróleo para a América do
Norte. Isso explica a delicadeza das posições de Joe Biden e a longa espera
pelos esforços da tríade progressista Lula, Petro, AMLO (da qual AMLO se
retirou semana passada).
É preciso ter cuidado
ao falar sobre o embargo dos EUA à Venezuela. Há embargos e embargos. O que
afetou alimentos, remédios e peças de reposição para ônibus e carros que
movimentavam o povo colaborou de decisivamente para o êxodo de quatro a cinco
milhões de trabalhadores. Mas a Venezuela dos que estão no topo conseguiu se
tornar o sexto maior fornecedor de petróleo para os EUA, superando países como
o Reino Unido e a Nigéria, sem que as receitas novas dessa “abertura
petrolífera” tenham melhorado em nada as condições materiais de vida das
camadas populares.
O que está em jogo na
Venezuela é qual setor das classes dominantes — seja a velha e esquálida
burguesia oligárquica ou os novos setores empresariais ligados aos militares
“bolivarianos”, enriquecidos sob Maduro — controla o negócio do petróleo.
Portanto, uma disputa sobre quem embolsa a parte do leão da renda petroleira.
Qualquer um deles garantirá o fornecimento geoestratégico de petróleo para as
potências capitalistas ocidentais e restringirá cada vez mais a distribuição da
renda petroleira ao povo — porque isso é da natureza de setores capitalistas, e
porque a natureza de estado monoextrativista exportador de fósseis não foi
tocada pelo processo bolivariano. Porque Nicolás Maduro, apesar do discurso,
não é nem socialista nem antiimperialista.
É ingênuo e
mal-informado imaginar um Nicolás Maduro com programa e coragem suficientes
para enfrentar os desígnios imperialistas de recolocar no mercado mundial o
petróleo que a Venezuela pode produzir. É um erro crasso, em nome de uma
suposta soberania, fechar os olhos para a crescente tendência autoritária do
regime de Nicolás Maduro contra os trabalhadores e o povo descontentes.
(Tragicamente, também
vale a pena para os maduristas geopolíticos continuar acreditando que a
salvação da Venezuela vem do que, na realidade, é sua maldição histórica: sua
riqueza petrolífera. Algo que até mesmo o grande desenvolvimentista brasileiro
Celso Furtado, sem ser socialista ou ecologista, já apontava como um grande
problema do país em que vivia na década de 1950.)
·
Há alguma saída?
É claro que a força
adquirida pela oposição de direita, que já foi derrotada nas urnas várias vezes
por Hugo Chávez e uma vez por Nicolás Maduro, e que agora tem sua ala mais
extremista, a oligarca Maria Corina Machado, à frente, é uma tragédia. Uma tragédia
ainda maior é o fato de que essa ala de extrema direita pode ter vencido ou
chegado muito perto de vencer as eleições — não há outra razão para a
insistência de Maduro em negar a apresentação dos resultados e reprimir tão
duramente o povo.
Justamente por isso,
porque uma solução pacífica é difícil e a simples entrega do governo a esse
setor é dura de engolir, a maneira de evitar o “banho de sangue” com o qual
ambos os lados ameaçam a Venezuela pode ser a indicada pelos governos do Brasil
e da Colômbia: apresentação dos resultados, negociações entre ambos os lados,
em primeiro lugar com o próprio Nicolás Maduro (o grupo de governos se recusa a
dialogar e a revisar os resultados da oposição). Se é possível esperar que se
garantam liberdades democráticas mínimas, soltura dos presos políticos,
suspensão da repressão, ampla liberdade sindical e político-partidária, também
é possível negociar cláusulas de proteção da PDVSA.
Neste momento, apoiar
a solução negociada proposta pela Colômbia e pelo Brasil — que tem o apoio do
Chile e o repúdio, é claro, do ditador Daniel Ortega — é a política correta,
porque é muito mais prudente, e favorável aos trabalhadores e ao povo do país.
Essa política está em desacordo com um regime cada vez mais autoritário, que
reprime jovens, sindicalistas e opositores de esquerda, e é menos ingênua e
burocraticamente tendenciosa do que simplesmente endossar as irregularidades e
arbitrariedades do governo.
De um lado, permite
discutir que a extrema direita não fatie e destrua a PDVSA e as poucas
conquistas sociais restantes. De outro, não parte da premissa equivocada de que
Nicolás Maduro e seu séquito militar-policial burocrático-burguês garantirão a
“soberania” venezuelana sobre qualquer coisa.
·
Soberania nacional e
soberania popular
O progressismo
latino-americano, assim como o terceiro-mundismo e a esquerda marcada pelo
stalinismo, usam o termo soberania amalgamando dois significados diferentes:
soberania nacional e soberania popular. É claro que a soberania nacional é
normalmente uma condição para o exercício pleno da soberania popular. O
problema é que os mais diferentes regimes (e movimentos de opinião),
progressistas e regressivos, se apropriam da defesa da soberania nacional em
face das pressões do mercado mundial e do imperialismo.
A soberania nacional
estava no centro dos movimentos anticoloniais e de independência nacional, bem
como dos populismos de desenvolvimento nacional do século XX. Mas ela está no
centro da defesa de ditaduras militares (como as do Cone Sul latino-americano
dos anos 1960), ditaduras teocráticas (como a do Irã), burocracias estatais e,
como vemos com Modi e vimos com Trump, governos de extrema direita.
Sim, a defesa da
soberania nacional e até mesmo confrontos com o imperialismo podem ser
realizados sob regimes muito regressivos. Para nós, a defesa da soberania
nacional faz sentido em conjunto com a defesa da soberania popular, a
auto-organização democrática das massas, a conquista de liberdades e direitos
que fortaleçam o bloco histórico das classes trabalhadoras, que possam
construir alternativas ao capitalismo global e aos imperialismos que o
estruturam.
Da mesma forma, após
as experiências stalinistas do século XX, não podemos identificar mecanicamente
os povos com suas lideranças políticas, que podem ou não representá-los, em uma
relação sempre dinâmica. Quando essa relação se rompe — como se rompeu ou está
se rompendo na Venezuela — as liberdades democráticas se tornam um ponto de
apoio fundamental para qualquer luta pela soberania, tanto popular quanto,
incidentalmente, nacional. Portanto, não haverá forças para garantir a
soberania da Venezuela sobre seu território e suas riquezas sem a recuperação
da soberania popular.
·
A democracia não é
importante?
Os regimes
democrático-burgueses não são o regime ao qual nós, socialistas, aspiramos
estrategicamente: sonhamos e lutamos para construir organizações democráticas
de base, democracia direta, poder popular — como embriões de uma nova e mais
vital forma de democracia, exercida pelos trabalhadores e setores populares —
nos processos da ofensiva revolucionária. Mas será que a democracia formal é
tão desprezível que não damos a mínima para eleições, para sermos educados, com
resultados manipulados?
Em um mundo cada vez
mais ameaçado por uma constelação de forças de extrema direita, a luta é e será
por muito tempo pela defesa das liberdades e dos direitos democráticos, até
mesmo de instituições dos regimes democrático-burgueses contra o ataque da extrema
direita — como já experimentamos com Trump, Bolsonaro, Erdogan, Orbán e assim
por diante. Como fica, nesse cenário, uma esquerda que despreza a democracia a
ponto de endossar a manipulação de eleições para os povos e trabalhadores do
mundo e em países (cada vez em maior número) em que a luta contra a extrema
direita é vital?
Esses setores que se
dizem de esquerda e endossam regimes repressivos ficam, ademais, muito mal, do
ponto de vista estratégico, no necessário processo de construção política,
teórica, prática, de uma nova utopia anticapitalista — capaz de encantar novamente
amplas camadas da juventude, das mulheres, dos que vivem do trabalho e dos
povos oprimidos. Uma nova esquerda anticapitalista de massas deverá ser
democrática, independente e enfrentada a “modelos” autoritários, ou não será.
Mas ainda há uma
questão que deveria ser mais importante que todas para qualquer militante e
organização socialista na América Latina e no mundo: como ficamos diante dos
olhos e expectativas dos trabalhadores, do povo e do que resta de esquerda não
burocrática na Venezuela? Esses setores à esquerda do PSUV, ou de críticos
ocultos dentro do próprio PSUV, hoje fragmentados, perseguidos, alguns presos,
muitos em plena atividade contra o arbítrio, serão abandonados à própria sorte?
De nossa parte, apoiar
suas lutas, incentivar sua unidade para resistir, ajudá-los a sobreviver e
respirar é a tarefa internacionalista prioritária. Todo o resto, que não os
leva em conta, pode ser geopolítica, mas internacionalismo não é. Afinal, a
única garantia estratégica de uma Venezuela soberana, de melhores condições de
vida e trabalho, de reorganização e poder popular a médio prazo, está nas mãos
daqueles sujeitos sociais e políticos que foram protagonistas dos anos dourados
do processo bolivariano e não nas mãos dos coveiros do processo.
Fonte: Por Ana C.
Carvalhaes e Luis Bonilla-Molina, em A Terra é Redonda
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