sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Venezuela — a divisão da esquerda

À diferença do que vem ocorrendo há 25 anos em relação às eleições na Venezuela — e foram dezenas desde a vitória de Hugo Chávez em 1998 — desta vez, depois do pleito de 28 de julho, a esquerda ampla latino-americana, incluída nela toda a base do “progressismo”, se dividiu de alto a baixo.

Um setor cada vez menor, mas ainda numeroso e repleto de intelectuais, ecoa o argumento do Fórum de São Paulo, segundo o qual, para salvar a Venezuela e a região do imperialismo norte-americano, é necessário apoiar o governo de Nicolás Maduro a qualquer custo. Contabiliza-se nesse custo, é evidente, a possibilidade de que, à diferença das vezes anteriores, Nicolás Maduro pode não ter ganho as eleições, porque afinal, até o momento recusa-se a provar sua vitória.

De acordo com essa lógica, mais baseada na geopolítica clássica do que no marxismo, não apenas tudo é válido, como necessário para “não entregar” o poder (e o petróleo) venezuelano “à direita”. Segundo o raciocínio geopolítico, o fato de Nicolás Maduro ter ganhado ou perdido o pleito é secundário em relação ao imperativo “nacionalista progressivo” de impedir que o imperialismo estadunidense, corporificado pelo candidato oposicionista Edmundo González, se instale no Palácio de Miraflores, e com isso ponha em perigo a propriedade estatal da PDVSA (Petróleos de Venezuela SA), dona de uma das maiores reservas de óleo e gás do planeta.

Um setor do progressismo, é verdade, faz menos ênfase no petróleo e mais na tragédia que seria reconhecer a derrota de Nicolás Maduro, visto como de esquerda, num cenário de avanço das extremas direitas no mundo e na região. Para todos eles, no entanto, não haveria outra saída a não ser ficar com Nicolás Maduro. Nem mesmo uma negociação entre os dois lados da contenda venezuelana, como propõem Lula e Gustavo Petro — provavelmente para buscar uma divisão de poderes entre os dois lados, com alguma garantia para as liberdades democráticas e alguma proteção à integridade da PDVSA.

·        A história, os fatos não importam

Cabe perguntar à guisa de recordação: qual é a linha que marca a diferença entre a direita e a esquerda — discurso ou ação? Nicolás Maduro certamente mantém uma gramática discursiva com palavreado de esquerda. Diz que seu governo é uma “aliança militar-policial-popular anti-imperialista e pelo socialismo”. Necessita legitimar-se interna e externamente como sucessor de Hugo Chávez, quando tudo o que fez foi fazer retroceder as conquistas e legado dos anos de avanço do processo bolivariano.

Para lá das aparências, o fato é que sua política, desde 2013, é a de incentivar o enriquecimento de um novo setor empresarial no país e, como um Bonaparte, negociar entre as diferentes frações da burguesia venezuelana, novas e velhas (com exceção da mais umbilicalmente vinculada à extrema direita ianque, que é a de Maria Corina Machado e Edmundo González) para permanecer no governo. Nicolás Maduro sempre favoreceu setores empresariais, em particular ao dos serviços à indústria petrolífera, cujos dividendos alimentam a nova burguesia e tem parte distribuída às cúpulas de suas forças armadas e policiais (daí a aliança). Mais de 800 carros de alto luxo foram apreendidos apenas entre os cem envolvidos na megacorrupção com criptomoedas da PDVSA, descoberta em 2023, o que é apenas um reflexo da situação de deterioração moral da liderança do governo.

Mesmo sob o fogo intenso das sanções imperialistas ocidentais contra a Venezuela — que vêm do governo de Barack Obama, passaram por Donald Trump e se flexibilizaram com Joe Biden — jamais tomou qualquer medida de enfrentamento com o sistema financeiro globalizado e seus apoiadores internos. Vem destinando uma parte substancial do minguante orçamento nacional a bancos privados para garantir a venda de moeda estrangeira a empresas privadas e rentistas, o que se torna uma política de subsídio e favorecimento dos ricos.

Simultaneamente (desde o decreto 2792, de 2018), proíbe greves, a apresentação de reivindicações, o direito de mobilização da classe trabalhadora, a organização e a legalização de novos sindicatos, enquanto processa e manda à prisão líderes sindicais que questionam práticas internas nas empresas, ou simplesmente pedem reajuste salarial e plano de saúde. Foi o caso da Siderúrgica del Orinoco (Sidor), a maior concentração do proletariado na Venezuela: depois de uma mobilização por salários e benefícios, entre junho e julho de 2023, os grevistas e dirigentes foram vítimas de intensa repressão. Leonardo Azócar e Daniel Romero, delegados sindicais, estão presos desde então.

O “anti-imperialismo” de Nicolás Maduro e seu entorno não o impede de entregar agora o petróleo de que os EUA precisam por meio da Chevron e de outras grandes companhias estrangeiras (como a Repsol), num contexto em que o Ministério da Fazenda dos EUA as autoriza a extrair o ouro negro venezuelano, proibindo suas empresas de pagar impostos e royalties à Venezuela. A aceitação dessas condições neocoloniais mostra os limites do anti-imperialismo madurista.

As sanções contra a Venezuela se tornaram mais flexíveis sob Joe Biden (premido pela guerra na Ucrânia), mas Nicolás Maduro mantém inalterável o discurso de que tudo é culpa das sanções, como pretexto para avançar em um ajuste estrutural que afeta fundamentalmente os que vivem do trabalho. Em termos políticos, dentro da Venezuela, o discurso das sanções dos EUA (reais, concretas e detestáveis) acabou perdendo a eficácia política diante da ostentação, do estilo de vida luxuoso (com direito a casos de corrupção bilionária) daqueles que agora governam o país.

·        A classe trabalhadora como um elemento acessório

A análise da situação da classe trabalhadora venezuelana como base da análise de esquerda é substituída, pelos pró-Maduro, pela moda da “geopolítica do petróleo”. Essa geopolítica binária só vê a contradição imperialismo versus estado venezuelano (sem dúvida uma contradição importante da realidade). Não tem dialética suficiente para levar em conta, num cenário de múltiplas contradições, a situação material e política das trabalhadoras e das camadas populares, suas aspirações e opções. É como se essa fosse uma questão acessória, ou uma contradição secundária. O “mantra” dos pró-Maduro para omitir a análise de classe é evitar que a direita chegue ao poder, ignorando o fato de que a Venezuela tem um governo que aplica as receitas econômicas estruturais da direita, apenas com uma retórica de esquerda.

Bastaria conversar com os trabalhadores (não com a burocracia dos patrões da CBST) da Sidor, da PDVSA, professores e docentes universitários para constatar a terrível situação material em que vivem (salário-mínimo de US$4 ou R$ 24 ao mês, salário médio de US$ 130 ou pouco mais de R$ 700 mensais, composto por 80% de bônus), em meio à pior perda de liberdades democráticas em décadas para sua organização, mobilização e luta.

Os novos geopolíticos do progressismo colocam a questão das eleições de 28 de Julho na linha de disputa da grande mídia internacional (CNNCBS e outras), só que do lado oposto da calçada. Não defendem os interesses de María Corina Machado e Edmundo González, mas os de Nicolás Maduro e da nova burguesia, com o falso axioma segundo o qual Maduro seria igual à classe trabalhadora, sem uma linha de análise do que têm sido as políticas antioperárias e antipopulares de seu governo.

Eles caem na armadilha do “fetichismo legal”, ao limitar a análise da conjuntura aos resultados das eleições. A questão não é apenas o fato de Nicolás Maduro e o CNE não terem mostrado que contas fizeram para dar ao presidente a vitória nas eleições de 28 de julho, mas como essa situação afeta a estrutura das liberdades democráticas concretas nas quais a classe trabalhadora atua e sobrevive.

Se não há transparência e legitimidade nas eleições nacionais, nas quais os candidatos registrados representavam diferentes matizes dos programas burgueses, é difícil pensar em recompor o mínimo de liberdades democráticas de que a classe trabalhadora necessita para se defender contra a ofensiva do capital sobre seu trabalho (o direito a salários dignos, o direito de greve, a liberdade sindical, a liberdade de mobilização, opinião e organização em partidos políticos).

A classe trabalhadora está fundamentalmente interessada em saber se a situação após o 28 de Julho permitirá ou restringirá, em curto prazo, as liberdades de que ela precisa para se expressar como uma classe explorada. Mas essa contradição não entra na lógica e nos discursos da nova geopolítica progressista.

·        Omissões e silêncios comprometedores

Pouco importa para esses “progressistas” a repressão à organização sindical e política dos trabalhadores e do povo, nem que Nicolás Maduro tenha impedido qualquer setor à esquerda do PSUV de participar das últimas eleições do país — mesmo à custa de infiltrar, judicializar e agredir a liderança do Movimento Eleitoral Popular (MEP), do Partido Pátria para Todos (PPT), dos Tupamaros e do próprio Partido Comunista da Venezuela (PCV) para intervir nele! Os partidários de Nicolás Maduro omitem que o governo, após 28 de julho, intensificou a repressão, não mais sobre a classe média, mas fundamentalmente aos setores populares, enviando cerca de 2.500 jovens para a prisão com um discurso de reeducação, o que significa submetê-los a rituais públicos vexatórios de lavagem cerebral transmitidos pelas redes oficiais.

Silenciam sobre a construção de duas prisões de segurança máxima para aqueles que forem pegos em protestos ou incitando protestos nas redes sociais. Passam ao largo da prisão de vários políticos da oposição e das ameaças diretas na televisão a outros — como o ministro do “martelo”, Diosdado Cabello, fez com o ex-prefeito de Caracas Juan Barreto, ou com Vladimir Villegas, irmão do ministro da Cultura e de uma presidenta de comissão parlamentar. Se a ameaça a figuras públicas é assim, ela é pior nos territórios de pessoas comuns que não são figuras da mídia.

Recentemente, vimos o envio de forças de segurança à paisana para ameaçar ativistas — como aconteceu em 10 de julho contra Koddy Campos e Leandro Villoria, líderes da comunidade LGBTQI em Caracas. Como vimos nos dias seguintes no tradicional reduto chavista de 23 de fevereiro, em Caracas, em que casas de ativistas foram marcadas, por gente do governo, com um X de Herodes, para amedrontar contra a possibilidade de manifestações.

A esquerda geopolítica silencia sobre o número de mortos após o 28 de Julho (próximo dos 25, de acordo com estimativas de organizações de direitos humanos e movimentos sociais), ampliando a narrativa de que se tratava apenas de pessoas de direita. Isso não é apenas falso, mas constitui um retrocesso nos ganhos em direitos humanos obtidos nos períodos pós-ditadura na região.

O progressismo geopolítico reproduz a miragem de um governo popular que já não existe, que foi apagado pelo transformismo e pelas políticas anti-operárias de Maduro. Parecem pedir à classe trabalhadora venezuelana que lute pelos seus direitos apenas dentro do quadro que o governo permite, para alimentar, do exterior, a utopia que eles não podem construir nos seus próprios países. Este progressismo não vê que o crescimento da candidatura de direita é o resultado da ilegalização e da negação da possibilidade de uma alternativa à esquerda. O sucesso eleitoral da dupla Machado-González é em grande parte resultado dos erros políticos do Madurismo.

·        E o petróleo afinal?

Todos os fatos graves mencionados acima são considerados pelos apoiadores da “vitória” de Nicolás Maduro como detalhes “democrático-formais” secundários diante do perigo de ter a direita “esquálida” novamente no governo venezuelano. O raciocínio é tão desprovido de critérios de classe quanto é desprovido de monitoramento básico da realidade do país.

Desde novembro de 2022, no âmbito da guerra na Ucrânia, o Secretário do Tesouro dos EUA autorizou a Chevron a explorar e exportar petróleo venezuelano, com a condição de que não pagasse impostos ou royalties ao governo venezuelano, o que constitui condições neocoloniais que nem sequer eram conhecidas nos governos anteriores a Hugo Chávez e que foram aceitas por Nicolás Maduro. A partir desse momento, a Venezuela voltou a ser um fornecedor estável de petróleo para a América do Norte. Isso explica a delicadeza das posições de Joe Biden e a longa espera pelos esforços da tríade progressista Lula, Petro, AMLO (da qual AMLO se retirou semana passada).

É preciso ter cuidado ao falar sobre o embargo dos EUA à Venezuela. Há embargos e embargos. O que afetou alimentos, remédios e peças de reposição para ônibus e carros que movimentavam o povo colaborou de decisivamente para o êxodo de quatro a cinco milhões de trabalhadores. Mas a Venezuela dos que estão no topo conseguiu se tornar o sexto maior fornecedor de petróleo para os EUA, superando países como o Reino Unido e a Nigéria, sem que as receitas novas dessa “abertura petrolífera” tenham melhorado em nada as condições materiais de vida das camadas populares.

O que está em jogo na Venezuela é qual setor das classes dominantes — seja a velha e esquálida burguesia oligárquica ou os novos setores empresariais ligados aos militares “bolivarianos”, enriquecidos sob Maduro — controla o negócio do petróleo. Portanto, uma disputa sobre quem embolsa a parte do leão da renda petroleira. Qualquer um deles garantirá o fornecimento geoestratégico de petróleo para as potências capitalistas ocidentais e restringirá cada vez mais a distribuição da renda petroleira ao povo — porque isso é da natureza de setores capitalistas, e porque a natureza de estado monoextrativista exportador de fósseis não foi tocada pelo processo bolivariano. Porque Nicolás Maduro, apesar do discurso, não é nem socialista nem antiimperialista.

É ingênuo e mal-informado imaginar um Nicolás Maduro com programa e coragem suficientes para enfrentar os desígnios imperialistas de recolocar no mercado mundial o petróleo que a Venezuela pode produzir. É um erro crasso, em nome de uma suposta soberania, fechar os olhos para a crescente tendência autoritária do regime de Nicolás Maduro contra os trabalhadores e o povo descontentes.

(Tragicamente, também vale a pena para os maduristas geopolíticos continuar acreditando que a salvação da Venezuela vem do que, na realidade, é sua maldição histórica: sua riqueza petrolífera. Algo que até mesmo o grande desenvolvimentista brasileiro Celso Furtado, sem ser socialista ou ecologista, já apontava como um grande problema do país em que vivia na década de 1950.)

·        Há alguma saída?

É claro que a força adquirida pela oposição de direita, que já foi derrotada nas urnas várias vezes por Hugo Chávez e uma vez por Nicolás Maduro, e que agora tem sua ala mais extremista, a oligarca Maria Corina Machado, à frente, é uma tragédia. Uma tragédia ainda maior é o fato de que essa ala de extrema direita pode ter vencido ou chegado muito perto de vencer as eleições — não há outra razão para a insistência de Maduro em negar a apresentação dos resultados e reprimir tão duramente o povo.

Justamente por isso, porque uma solução pacífica é difícil e a simples entrega do governo a esse setor é dura de engolir, a maneira de evitar o “banho de sangue” com o qual ambos os lados ameaçam a Venezuela pode ser a indicada pelos governos do Brasil e da Colômbia: apresentação dos resultados, negociações entre ambos os lados, em primeiro lugar com o próprio Nicolás Maduro (o grupo de governos se recusa a dialogar e a revisar os resultados da oposição). Se é possível esperar que se garantam liberdades democráticas mínimas, soltura dos presos políticos, suspensão da repressão, ampla liberdade sindical e político-partidária, também é possível negociar cláusulas de proteção da PDVSA.

Neste momento, apoiar a solução negociada proposta pela Colômbia e pelo Brasil — que tem o apoio do Chile e o repúdio, é claro, do ditador Daniel Ortega — é a política correta, porque é muito mais prudente, e favorável aos trabalhadores e ao povo do país. Essa política está em desacordo com um regime cada vez mais autoritário, que reprime jovens, sindicalistas e opositores de esquerda, e é menos ingênua e burocraticamente tendenciosa do que simplesmente endossar as irregularidades e arbitrariedades do governo.

De um lado, permite discutir que a extrema direita não fatie e destrua a PDVSA e as poucas conquistas sociais restantes. De outro, não parte da premissa equivocada de que Nicolás Maduro e seu séquito militar-policial burocrático-burguês garantirão a “soberania” venezuelana sobre qualquer coisa.

·        Soberania nacional e soberania popular

O progressismo latino-americano, assim como o terceiro-mundismo e a esquerda marcada pelo stalinismo, usam o termo soberania amalgamando dois significados diferentes: soberania nacional e soberania popular. É claro que a soberania nacional é normalmente uma condição para o exercício pleno da soberania popular. O problema é que os mais diferentes regimes (e movimentos de opinião), progressistas e regressivos, se apropriam da defesa da soberania nacional em face das pressões do mercado mundial e do imperialismo.

A soberania nacional estava no centro dos movimentos anticoloniais e de independência nacional, bem como dos populismos de desenvolvimento nacional do século XX. Mas ela está no centro da defesa de ditaduras militares (como as do Cone Sul latino-americano dos anos 1960), ditaduras teocráticas (como a do Irã), burocracias estatais e, como vemos com Modi e vimos com Trump, governos de extrema direita.

Sim, a defesa da soberania nacional e até mesmo confrontos com o imperialismo podem ser realizados sob regimes muito regressivos. Para nós, a defesa da soberania nacional faz sentido em conjunto com a defesa da soberania popular, a auto-organização democrática das massas, a conquista de liberdades e direitos que fortaleçam o bloco histórico das classes trabalhadoras, que possam construir alternativas ao capitalismo global e aos imperialismos que o estruturam.

Da mesma forma, após as experiências stalinistas do século XX, não podemos identificar mecanicamente os povos com suas lideranças políticas, que podem ou não representá-los, em uma relação sempre dinâmica. Quando essa relação se rompe — como se rompeu ou está se rompendo na Venezuela — as liberdades democráticas se tornam um ponto de apoio fundamental para qualquer luta pela soberania, tanto popular quanto, incidentalmente, nacional. Portanto, não haverá forças para garantir a soberania da Venezuela sobre seu território e suas riquezas sem a recuperação da soberania popular.

·        A democracia não é importante?

Os regimes democrático-burgueses não são o regime ao qual nós, socialistas, aspiramos estrategicamente: sonhamos e lutamos para construir organizações democráticas de base, democracia direta, poder popular — como embriões de uma nova e mais vital forma de democracia, exercida pelos trabalhadores e setores populares — nos processos da ofensiva revolucionária. Mas será que a democracia formal é tão desprezível que não damos a mínima para eleições, para sermos educados, com resultados manipulados?

Em um mundo cada vez mais ameaçado por uma constelação de forças de extrema direita, a luta é e será por muito tempo pela defesa das liberdades e dos direitos democráticos, até mesmo de instituições dos regimes democrático-burgueses contra o ataque da extrema direita — como já experimentamos com Trump, Bolsonaro, Erdogan, Orbán e assim por diante. Como fica, nesse cenário, uma esquerda que despreza a democracia a ponto de endossar a manipulação de eleições para os povos e trabalhadores do mundo e em países (cada vez em maior número) em que a luta contra a extrema direita é vital?

Esses setores que se dizem de esquerda e endossam regimes repressivos ficam, ademais, muito mal, do ponto de vista estratégico, no necessário processo de construção política, teórica, prática, de uma nova utopia anticapitalista — capaz de encantar novamente amplas camadas da juventude, das mulheres, dos que vivem do trabalho e dos povos oprimidos. Uma nova esquerda anticapitalista de massas deverá ser democrática, independente e enfrentada a “modelos” autoritários, ou não será.

Mas ainda há uma questão que deveria ser mais importante que todas para qualquer militante e organização socialista na América Latina e no mundo: como ficamos diante dos olhos e expectativas dos trabalhadores, do povo e do que resta de esquerda não burocrática na Venezuela? Esses setores à esquerda do PSUV, ou de críticos ocultos dentro do próprio PSUV, hoje fragmentados, perseguidos, alguns presos, muitos em plena atividade contra o arbítrio, serão abandonados à própria sorte?

De nossa parte, apoiar suas lutas, incentivar sua unidade para resistir, ajudá-los a sobreviver e respirar é a tarefa internacionalista prioritária. Todo o resto, que não os leva em conta, pode ser geopolítica, mas internacionalismo não é. Afinal, a única garantia estratégica de uma Venezuela soberana, de melhores condições de vida e trabalho, de reorganização e poder popular a médio prazo, está nas mãos daqueles sujeitos sociais e políticos que foram protagonistas dos anos dourados do processo bolivariano e não nas mãos dos coveiros do processo.

 

Fonte: Por Ana C. Carvalhaes e Luis Bonilla-Molina, em A Terra é Redonda

 

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