Pessoas bebem menos álcool hoje porque
opções de lazer ficaram mais diversas e acessíveis, diz historiador
O historiador Mark
Hailwood, professor da Universidade de Bristol, no Reino Unido, entende que o
hábito de consumir bebidas alcoólicas teve inúmeras funções ao longo de séculos
e milênios.
"A relação da
humanidade com bebidas alcoólicas é muito profunda", diz o pesquisador,
que é membro da Rede de Estudos sobre a Cultura da Bebida.
"Costumamos
pensar no consumo de álcool apenas pelo lado da socialização, mas, ao longo da
história, essa foi apenas uma das funções que esse costume teve."
Como exemplo dessa
relação profunda, Jailwood cita os rituais religiosos que envolvem as bebidas e
o uso milenar de certos licores e drinques como tratamentos médicos.
Autor de Alehouses and
Good Fellowship in Early Modern England ("Cervejarias e Companheirismo na
Inglaterra Moderna", em tradução livre) e editor de Biographies of Drink:
A Case Study Approach to our Historical Relationship with Alcohol ("Biografias
do Beber: uma Abordagem de Estudos de Casos sobre Nossa Relação Histórica com o
Álcool"), Hailwood destaca em entrevista à BBC News Brasil os fatores que
podem estar por trás da recente queda do consumo de bebidas alcoólicas, uma
tendência que é observada em diversos estudos.
Um levantamento
realizado pelo Centro de Pesquisa em Políticas sobre Álcool da Universidade La
Trobe, na Austrália, publicado em 2020, por exemplo, mediu os hábitos etílicos
de adolescentes de 12 a 18 anos em 39 países da América do Norte, Europa e
Oceania.
Em praticamente todos
estes lugares, aliás, a venda de bebidas alcoólicas para essa faixa etária é
ilegal, embora, na prática, esta seja a fase em que a maioria das pessoas tenha
acesso a esses produtos pela primeira vez, segundo este artigo, publicado no
Jornal Europeu de Saúde Pública.
Em comparação com as
taxas de consumo de álcool observadas há 20 anos, a tendência atual é de queda
na grande maioria dos locais pesquisados.
A diminuição supera os
50% em países como Noruega, Suécia e Lituânia, e ultrapassa os 80% na Islândia.
Já uma enquete
realizada pela organização britânica Drinkaware mostrou que 26% dos jovens de
16 a 24 anos se consideram totalmente abstêmios.
Outra pesquisa,
publicada em 2023 pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa),
mostrou que 46% dos jovens brasileiros de 18 a 24 anos afirmam não beber nunca
e 20% dizem fazer isso uma vez por mês ou menos.
Essa mudança de
hábitos já foi percebida por muitas empresas do setor, que nos últimos anos
passaram a anunciar e promover cervejas e outros produtos sem álcool.
Para Hailwood, a
tendência está ligada a dois fenômenos.
"Em primeiro
lugar, me parece que há uma preocupação maior com aspectos de saúde, e
evidências científicas recentes sugerem que há pouquíssimos benefícios em
consumir álcool", diz o pesquisador.
"Segundo, vivemos
em uma era em que as alternativas ao álcool, em relação à busca por maneiras de
relaxar, curtir e se entreter, ficaram muito mais diversas e acessíveis."
No passado, diz
Hailwood, quem queria escapar da realidade e do trabalho duro não tinha a
possibilidade de ir para casa e ver televisão, jogar videogame ou assistir a
vídeos na internet. "O lar era apenas o lugar para comer e dormir",
explica o historiador.
Seguindo essa linha de
raciocínio, bares, tavernas e pubs eram basicamente os únicos locais onde
alguém podia relaxar, socializar e se encontrar com outras pessoas.
"Agora, vivemos
num mundo com uma gama maior de atividades de lazer, então, as pessoas não
precisam necessariamente beber para ter algum tipo de diversão."
• Costumes de um passado nem tão distante
assim
Diante de um fenômeno
marcado pela redução no consumo de bebidas alcoólicas, chama a atenção como
certos hábitos eram considerados normais — e até bem-vindos — até há pouco
tempo.
Um exemplo era o
costume de indicar o consumo de cerveja preta para mulheres que amamentavam
como uma estratégia para aumentar a produção de leite materno.
Não há nenhuma
evidência de que a prática funcione — pelo contrário, ela até faz mal, uma vez
que o álcool pode passar para o bebê.
Outro exemplo: até a
década de 1950, as cantinas das escolas francesas ofereciam vinho para crianças
e adolescentes.
A prática ganhou maior
controle a partir de 1956, embora a proibição sobre bebidas alcoólicas só
abrangesse estudantes menores de 14 anos.
Os vinhos só foram
retirados completamente das instituições de ensino da França nos anos 1980.
Hailwood acrescenta
que, no Reino Unido, a prática do chamado "almoço de trabalho" era
muito comum até o início dos anos 2000.
"Basicamente as
pessoas saíam do trabalho e íam para o pub, onde bebiam alguns copos de
cerveja. Alguns depois voltavam para seguir com as funções durante a tarde,
enquanto outros encerravam o expediente ali mesmo", explica ele.
"Isso era um
hábito muito comum e aceitável entre trabalhadores de vários ramos no Reino
Unido de 20 anos atrás. Hoje em dia, é algo raro, e as pessoas não consideram
apropriado trabalhar sob o efeito de substâncias inebriantes."
Hailwood destaca que,
durante muitos séculos, as bebidas alcoólicas como a cerveja eram encaradas
como um alimento ou uma forma de obter as calorias necessárias para trabalhar.
"Antes da chegada
do café e do chá em partes do Hemisfério Norte e do Ocidente, as pessoas
consumiam cervejas como uma forma de encarar o dia, de seguir em frente",
diz ele.
"Muitos tomavam
cerveja já no café da manhã e ficavam embriagados o tempo todo."
Para o professor,
diante dessa perspectiva histórica, o álcool está hoje "muito mais
restrito a certos lugares, momentos e contextos" do que esteve no passado.
Mas isso, claro, não
significa que essa realidade não possa mudar no futuro.
"As próximas
gerações podem adotar um estilo de vida mais hedonista [que prioriza o prazer]
do que as atuais e, com isso, retomar um consumo mais frequente de
álcool", avalia Hailwood.
"Isso não me
surpreenderia, visto que as bebidas alcoólicas passaram por diversos altos e
baixos ao longo da história."
• Muito além do social
Encarar o consumo de
álcool apenas como uma opção de lazer, entretenimento e socialização parece ser
um fenômeno recente.
Ao longo de milênios e
séculos, as bebidas tiveram diferentes funções nas sociedades — e ninguém sabe
ao certo como essa história realmente começou.
Hailwood cita a
chamada "hipótese do macaco bêbado".
"Quando algumas
frutas apodrecem, elas naturalmente fermentam. Isso significa que o açúcar que
há nelas se transforma em álcool. Então, é possível que espécies anteriores aos
seres humanos tenham consumido esse produto", explica o historiador.
"Há especulações
sobre como esse contato com o álcool pode ter alterado a química cerebral de
nossos antepassados e até ajudado na evolução da espécie."
Alguns milênios
depois, os primeiros registros mais confiáveis de que humanos consumiam alguma
forma de bebida fermentada com efeitos intoxicantes vêm do Egito Antigo.
"Temos documentos
de que os egípcios faziam cerveja em larga escala", diz o professor.
Hailwood observa que a
história de que as pessoas tomavam bebidas alcoólicas por uma questão de
segurança — já que os primeiros povoados e cidades não tinham saneamento básico
e a água vivia contaminada — é um tanto exagerada.
"Muitos
historiadores classificam essas informações como um mito, porque esses
indivíduos ainda tomavam água, e o álcool nunca foi visto como uma alternativa
segura a outros líquidos", diz Hailwood.
"As evidências
nos mostram que o consumo diário de cervejas era algo preferido em muitas
comunidades por alguns motivos, como o fato de elas serem mais palatáveis,
terem um efeito inebriante e oferecerem um aporte maior de calorias e
nutrientes em comparação com a água."
Vale lembrar que
estamos falando de um contexto completamente diferente do atual.
No passado, os
alimentos não estavam amplamente disponíveis, e muitas populações ficavam à
mercê das condições climáticas ou da disponibilidade de caça do local.
Com isso, qualquer
oportunidade de garantir um aporte de calorias e nutrientes era algo salutar
para garantir a sobrevivência.
Acredita-se que os
primeiros bares e tavernas são frutos da expansão do Império Romano.
"Conforme os
romanos dominaram a Europa e outros continentes, esses estabelecimentos se
espalharam por todos os cantos", contextualiza o historiador.
"Na Inglaterra,
os primeiros pubs surgiram a partir das tavernas criadas pelos romanos. Esse
papel social relacionado ao hábito de beber nesses locais permaneceu desde
então."
Mas, como citado
anteriormente, os hábitos etílicos do passado cumpriam funções que iam além do
lazer e da socialização.
Além da questão
nutricional, as bebidas de efeitos inebriantes foram (e continuam a ser) usadas
em alguns rituais religiosos — como é o caso do vinho no cristianismo, por
exemplo.
"Produtos
intoxicantes podem levar a experiências espirituais e estados alterados de
consciência. Xamãs sempre usaram certas substâncias para acessar pensamentos e
ter ideias", cita o historiador.
Há também o aspecto
medicinal do álcool. "Em boa parte dos séculos 16 e 17, os coquetéis eram
a principal receita para lidar com as doenças", lembra Hailwood.
"Antes do século
18, o gim não era considerado uma bebida recreacional na Inglaterra. Assim como
diversos outros drinques, ele era visto como um remédio. As pessoas até
chamavam esses produtos de aqua vitae, ou água da vida, porque eles eram fortes
e davam um certo vigor a quem tomava."
De certa maneira, a
produção das bebidas fermentadas e destiladas também era uma forma de não
desperdiçar comida.
O trigo, a cevada, a
uva, a batata e outros alimentos cultivados e colhidos passavam por técnicas de
fermentação e ganhavam uma vida mais longa em uma época em que não existiam
geladeiras e congeladores.
• Tensão constante com o álcool
Mas Hailwood chama a
atenção para o fato de que a relação da humanidade com o álcool nunca foi
linear — e alguns períodos ficaram marcados por ondas muito fortes de moralismo
e proibicionismo.
O caso mais famoso
talvez seja a Lei Seca que entrou em vigor nos Estados Unidos no início do
século 20. Há também diversas religiões que impedem seus seguidores de tomar
cervejas e afins até hoje.
Mas o historiador
lembra de um episódio muito mais antigo e um tanto curioso que aconteceu na
Inglaterra dos séculos 15 e 16.
"Nesse período,
os pubs e as tavernas se tornavam cada vez mais populares, e as autoridades
queriam encontrar maneiras de controlar esse crescimento", contextualiza
Hailwood.
Em um dos primeiros
movimentos proibicionistas relacionados ao álcool, segundo o historiador, os
legisladores ingleses da época criaram uma regra de que só se poderia
permanecer em pubs por uma hora.
"Eles
reconheceram que as pessoas tinham uma necessidade de consumir cervejas como
parte da rotina e da dieta, mas a nova lei impunha esse limite de uma hora
porque esse era um tempo considerado suficiente para beber sem exagerar."
A lei, claro, não
"pegou": como não existiam forças policiais para garantir o
cumprimento dela, a responsabilidade caiu no colo dos fiscais de cada vilarejo.
Teoricamente, esses
indivíduos precisavam passar pelos pubs para checar se havia gente que havia
ultrapassado o tal limite de 60 minutos.
"Na prática, esse
fiscal era alguém que fazia parte da vizinhança, da comunidade. Se ele tentasse
mandar alguém para casa, na maioria das vezes seria ignorado ou mandado
procurar o que fazer", explica Hailwood.
O historiador chama a
atenção para a dualidade que existe sobre o álcool. "Por um lado, as
bebidas são parte integral de muitas culturas e sociedades, que buscam formas
de controlar o consumo delas", diz Hailwood.
"Por outro, esse
mercado sempre foi uma fonte importante de lucros e arrecadação de
impostos."
Essa tensão coloca
governos e fontes de regulamentação em uma situação parecida a de donos de
bares e pubs.
"Muitas vezes,
eles estão numa posição de precisar vender a bebida, mas também têm a
responsabilidade de controlar o consumo para evitar perturbações e problemas
sociais", afirma Hailwood.
"É uma situação
estranha, porque o mesmo agente que se beneficia daquela venda também precisa
garantir que o consumo aconteça de forma moderada e adequada."
Fonte: BBC News Brasil
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