“O Estado retorna com todas as suas formas
mais brutais, incluindo a guerra”, diz pesquisador
Paolo Gerbaudo é
pesquisador sênior da Faculdade de Ciência Política e Sociologia,
da Universidade Complutense, com passagem pelo King’s College London.
No ano passado, publicou Controlar y proteger: El retorno del Estado (Verso).
Para ele, a crise
financeira de 2008 e a pandemia revelaram as deficiências
do neoliberalismo e das inércias globais e, mais do que em uma
transição, estamos em um novo mundo. A Pax Americana morreu e abriu
passagem a um conflito entre blocos em que o Estado, com suas formas mais
severas e brutais, volta a ocupar um papel central.
<<<< Eis a
entrevista.
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Quando Donald Trump afirmou que “o futuro
não pertence aos globalistas, mas aos patriotas”, anunciava o fim da
globalização?
Esse discurso
de Trump capturava algo da atmosfera dos avançados anos 2010, que era
essa perda de confiança na globalização.
A direita atribui esse globalismo aos liberais, a Biden e
ao Partido Democrático, na Itália. O Vox faz o mesmo
jogo com Sánchez, na Espanha, quando na realidade são eles os
globalistas e os aliados do poder financeiro.
No entanto,
compreenderam que, ao menos publicamente, declarar-se a favor
da globalização não é tão popular como era antes. As pessoas
encontraram aspectos positivos na globalização, seja pelos produtos
baratos ou pela possibilidade de viajar livremente, mas a sua desconfiança
aumentou porque viram que as suas condições de vida e de trabalho pioraram.
·
Os discursos antiglobalistas da direita se
tornaram uma forma de culpar os outros pelos seus próprios erros?
Sim. Na realidade,
tentam tirar proveito apelando a interesses mais locais frente a forças
invisíveis, impessoais, em nível global. E isso não é simplesmente uma coisa
irracional. Afinal, a proximidade é a lógica de definição do político.
Parte
da esquerda se converteu em um liberalismo muito
superficial, que vê esta lógica de proximidade como algo que é intrinsecamente
negativo, que leva ao nacionalismo, ao racismo, à discriminação.
Contudo, isso não é verdade. Existem formas de identidade local que são
abertas, inclusivas e solidárias. Existem formas de patriotismo que
são as bases do republicanismo e do espírito democrático.
·
O ponto de inflexão da crise do
neoliberalismo foi o que aconteceu em 2008?
Foi a primeira peça do
dominó, que fez as outras caírem com atraso e sucessivamente. Demonstrou uma
enorme disfuncionalidade do sistema econômico global e fez saltar
pelos ares a perigosa ideia do mercado que se autorregula, sendo isto é pura ficção.
Naquele momento,
falava-se do neoliberalismo zumbi, que sobrevivia a si mesmo e
desenvolvia formas diferentes, mais autoritárias, mais austeras. Era
um neoliberalismo que perdia seu elemento de desejo e de promessa,
de marketing, de things can only get better, como
dizia a canção da campanha do New Labour, de 1997, de que vamos nos tornar
todos ricos e passar muito bem.
No meu livro, uma
fonte de inspiração foi superar essa ideia de que estamos em uma transição
pós-neoliberal. E envolvido um pouco por essa citação
de Gramsci que diz que é o tempo dos monstros, enquanto o velho
mundo está morrendo e o novo ainda está por nascer, busquei refletir que todas
as transições terminam. Minha aposta no livro é dizer não, já chega de ficar
nesse limbo, aceitemos que já estamos em um mundo novo.
·
Um mundo novo em que o Estado retorna…
Um mundo novo que é
espantoso, em que o Estado retorna em todas as suas formas mais brutais,
incluindo a guerra. Este mundo é a realidade que temos de encarar, porque,
caso contrário, ficamos em um mundo de espelhos, no qual só ganhará
a direita, que sabe se desenvolver nesse tipo de cenário.
O que aconteceu em
2008 e tudo o que veio depois geraram muita raiva. A Covid demonstrou
que sob essa superfície de segurança, de rotina, havia magma, um lago vulcânico
que estava pronto para explodir. E explodiu com a guerra na Ucrânia,
com o enfrentamento entre os Estados Unidos e a China, e
essa estabilidade da Pax Americana abriu passagem a um conflito entre
blocos.
·
O Ocidente está mudando de posição em
relação às regras que havia imposto, como se observa nas discussões sobre as
barreiras alfandegárias?
Claro. Isso é o que
nos diziam muitos economistas como Ha-Joon Chang, que destacava que o livre
mercado era uma mentira que os estados hegemônicos
do capitalismo contavam aos países em desenvolvimento, porque
naquele momento lhes convinha. E agora, diante da China, somos nós os
seguidores em muitos aspectos. Assim como no ciclismo, somos nós que vamos
correndo atrás do líder.
·
Os subdesenvolvidos.
Somos subdesenvolvidos
por culpa do neoliberalismo.
O neoliberalismo
destruiu a economia, pois provocou a ilusão de que o que conta é o dinheiro e
que não importa onde é produzido. Isso nos levou a abandonar as produções
navais, os estaleiros, a produção de baterias. Levou-nos a deixar tudo isto nas
mãos da China, que aproveitou para se tornar um país líder em tecnologia.
·
E agora são solicitadas tarifas.
A fantasia do
livre mercado levou a este desdobramento, e agora não podemos nos queixar
porque a China jogou bem o nosso jogo. O que devemos reconhecer é que
foi o jogo que fracassou. Agora, considero legítimo que países subdesenvolvidos como
os nossos utilizem tarifas moderadas.
No entanto, penso que
precisamos de uma economia social que priorize o interesse dos
trabalhadores, com produtos acessíveis, bons e sustentáveis. Não proponho uma
autarquia, nem um isolamento total, pois sempre haverá um mundo de intercâmbios
comerciais. O problema é que o hiperglobalismo levou a
uma dependência extrema, beneficiando apenas um pequeno grupo financeiro.
·
Voltando a 2008, as políticas de
austeridade levaram à ascensão de vários partidos de esquerda
antiestablishment, como o Podemos e o Syriza. Hoje, estão quase acabados. No
entanto, observamos a ascensão da extrema direita. Por que os primeiros
fracassaram e os segundos triunfaram?
Houve falhas de
política e de liderança, falhas de organização e até de caráter no caso
de Tsipras, no sentido de prometer algo que não é possível cumprir. Aquele
referendo que houve na Grécia e enganar o povo grego foram
desastrosos para a credibilidade da esquerda. Esses movimentos foram muito
importantes porque souberam capturar um entusiasmo popular e um desejo de
mudança.
Fracassou-se, mas,
claro, quando há fracassos em todos os casos, quer dizer que há algo mais
profundo. E esse algo mais profundo é, por um lado, subestimar o nível de jogo
do adversário. Por outro lado, é preciso considerar que tanto Meloni quanto Abascal são
exércitos, não jogando com a assembleia ou com a espontaneidade. Estamos diante
de um enorme nível de profissionalismo e de organização, com muito dinheiro por
trás.
Portanto, houve uma
espécie de inocência na esquerda. Se você é contra o sistema econômico,
não pode ir para esse confronto com boas intenções. Precisa ter força para a
organização e paciência. Então, penso que o imediatismo foi um erro. Acredito
que faltou pensar de forma mais concreta qual era o projeto de país, a
alternativa produtiva e de sistema econômico para dar às pessoas uma ideia de
futuro que pudesse acompanhar esse discurso de mais longo prazo.
·
Por que a extrema direita lidera, agora,
esse discurso de defesa do Estado?
O capitalismo tem
múltiplas facetas. Por um lado, existe um capitalismo orientado às
exportações, competitivo em nível internacional e produtivo, que é a referência
de centristas, liberais, de figuras como Macron e de grande parte da social-democracia
liberal. Por outro lado, existe um capitalismo nacional, improdutivo e não
competitivo, mas com inúmeros interesses devido à quantidade de postos de
trabalho que abrange.
Este setor encontra
proteção em uma parte da direita, que defende o pequeno proprietário e os
pequenos negócios, que temem o grande capitalismo. Neste contexto, o
Estado é visto como um protetor, seja através de tarifas ou de medidas de
segurança frente às ameaças como a imigração, que é percebida como um
perigo.
·
Ao passo que a esquerda…
Na esquerda, a
partir de 68, dos anos 1970, passou a existir uma corrente libertária que
naquele momento fazia sentido frente ao stalinismo e
o burocratismo da social-democracia. No entanto, esta posição se
transformou em uma espécie de neoliberalismo cultural, um “neoliberalismo
para hippies” que impede uma reflexão estratégica sobre o poder e sobre o
que Gramsci chamava de “fazer-se Estado”.
Segundo Gramsci,
a classe trabalhadora deve assumir o controle de seu próprio destino,
da história, criar uma classe dirigente e governar. A esquerda
enfrenta dificuldades em assumir esta responsabilidade histórica.
·
Em outra entrevista, dizia que o populismo
de esquerda é a melhor resposta ao populismo de direita. Isto não implica que a
esquerda se renda à lógica e aos métodos da extrema direita?
A definição
de populismo depende de como é interpretado. Para mim, especialmente
nos anos 2010, o populismo representava a rejeição popular
ao projeto neoliberal. Durante aqueles anos, surgiu um forte sentimento de
descontentamento e crítica à classe política. Isso, em certo sentido, era
saudável.
Sou italiano e sigo
obcecado por Gramsci, que falava de uma crise orgânica quando os laços
entre representantes e representados são rompidos. Os cidadãos retiraram o seu
apoio aos políticos tradicionais, criando uma fase de suspensão e transição
em busca de novos líderes. O populismo daquela época refletia este
momento de transição, no qual a velha classe política já não era
aceita e surgia a necessidade de buscar ou criar novos representantes.
A direita resolveu
esta crise criando uma nova identidade política que combinava o mercado
capitalista com o nacionalismo, protegendo os interesses dos ricos.
Ao contrário, a esquerda ficou dividida entre a nostalgia do passado
e uma visão involuntariamente hiperliberal da política, e a consciência de que
este mundo não pode mais ser recuperado e que é necessário construir um
diferente.
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Nas redes sociais, florescem discursos
anarcocapitalistas que depois conseguem promover Javier Milei, por exemplo.
Existe uma espécie de alergia ao Estado. Por quê?
Milei é o exemplo
mais claro de uma tendência à rejeição do Estado. Parte da sociedade,
principalmente a classe média cansada, vê o Estado como um
intrometido ilegítimo que impõe impostos. Este discurso
hiperneoliberal ressalta apenas os aspectos negativos do Estado e oculta
a realidade de que mesmo os sistemas mais capitalistas dependem da intervenção
estatal.
O neoliberalismo de Milei,
baseado em memes e simplificações, é um sintoma da crise do
neoliberalismo. Milei está destruindo serviços públicos essenciais
para a economia. Seu discurso moral e de guerra cultural faz
sucesso entre pequenos empresários e criptoinvestidores que creem não precisar
do Estado, embora se beneficiem de seus serviços como estradas, polícia e
bombeiros. Esta classe média arrogante e insatisfeita, que sente que
lhe devem algo, é politicamente perigosa.
Falta uma cultura do
Estado que o apresente como um motor de desenvolvimento. Não é que
gostemos do Estado. O Estado pode ser um meio de opressão. O que nós,
democratas, gostamos é do Estado democrático. Ou seja, o Estado como pilar
de um sistema republicano de participação, envolvimento, coesão e
solidariedade.
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Nesse mundo de estados, qual é o papel
desempenhado pelas nações que precisamente não contam com um?
É uma questão muito
importante no contexto europeu, onde existem diferentes níveis de soberania,
como nações sem Estado se relacionam com Estados multinacionais. E esta é uma
questão muito difícil de resolver em um contexto de conflito democrático.
Penso que
a autodeterminação tem que ser a lógica em que essas questões se
desenvolvem. Contudo, aceitando também que essa lógica não é tão simples como
pode parecer. Cabe definir quais são as regras, o momento. E acredito também
que qualquer processo de autodeterminação também tem custos.
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Viemos de eleições europeias em que a
extrema direita alcançou quase 25% dos votos. Que futuro vislumbra para a União
Europeia?
O futuro é preocupante
porque não tem projeto. Não tem rota de saída para superar o impasse entre
uma União Europeia que não sabe “fazer-se Estado” e Estados-nação que
já não são, realmente, estados. Este vazio de poder e a falta
de legitimidade criam uma situação explosiva, agravada pelo conflito
militar próximo e uma aliança europeia desorganizada e sem coesão interna.
A direita
de Meloni, com suas raízes no fascismo, é inquietante. No entanto,
sua liderança não busca mudar o sistema econômico, mas, sim, perpetuar as
atuais desigualdades e o caos para manter interesses particulares, usando sua
cultura extremista mais como um truque estético do que como um verdadeiro
projeto.
Fonte: Entrevista com
Paolo Gerbaudo, por Ibai Azparren, no Naiz tradução do Cepat, em IHU