quinta-feira, 2 de maio de 2024

Pontos de garimpo na Amazônia brasileira ocupam uma área de 241 mil hectares

Amazônia brasileira tem mais de 80 mil pontos de garimpo, diz nota técnica do IPAM.

Pico da atividade ilegal em terras indígenas ocorreu nos anos Temer e Bolsonaro; rios em ao menos 139 territórios são poluídos

Uma nota técnica publicada pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) nesta sexta-feira, 26, mostra que há 80.180 pontos de garimpo na Amazônia brasileira em uma área de 241 mil hectares – mais de duas vezes o tamanho de Belém.

Cerca de 10,5% dessa área, ou 25 mil hectares, está em 17 terras indígenas diretamente invadidas. Segundo a análise do IPAM, outras 122 estão em bacias hidrográficas garimpadas, totalizando ao menos 139 territórios e seus rios contaminados pela atividade.

Mesmo a mineração localizada fora dos limites de terras indígenas não está tão longe assim. Ocupando uma área de 84,3 mil hectares, 44% desses pontos de garimpo se fixaram em um raio de até 50 quilômetros das bordas dos territórios.

“O impacto do garimpo tem um alcance muito maior do que a área diretamente afetada por essa atividade. Com isso, os poluentes contaminam rios, solos, fauna e flora que acabam afetando a saúde dos povos indígenas da região”, diz Martha Fellows, coordenadora do núcleo de estudos indígenas do IPAM e autora.

•        16 vezes mais garimpo

O ápice da invasão de terras indígenas amazônicas pelo garimpo ocorreu de 2016 a 2022, identifica a nota técnica, durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. No intervalo, povos originários viram a atividade crescer 361% em seus territórios. A maior parte (78%) da área invadida por garimpeiros em terras indígenas surgiu nesse período.

A velocidade com que o garimpo chega a terra indígenas é maior do que o avanço da atividade no restante da Amazônia: de 1985 a 2022, a área garimpada cresceu 16 vezes dentro dos territórios; e 12 vezes em todo o bioma.

As terras indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami, nessa ordem, são as mais invadidas. O território Kayapó, habitado por povos Mebêngôkre e isolados às margens do rio Xingu, no Pará, tem 55% de toda a área garimpada em terras indígenas na região. Juntas, as três concentram 90% da área indígena invadida por garimpos.

Dentro das terras Kayapó, a mineração ilegal cresceu 1.339% em 38 anos. No território Munduruku, também no Pará, o aumento foi de 129 vezes no período. E na terra Yanomami, em Roraima e no Amazonas, o garimpo ampliou em mais de 20 mil vezes a área invadida, no mesmo intervalo.

•        Flexibilização legal

De acordo com a nota técnica, o aumento “sem precedentes” na área de garimpo em terras indígenas e na Amazônia brasileira são explicados pela “flexibilização legal no último ciclo legislativo”.

Uma análise do histórico de regulamentação das atividades minerárias, desenvolvida no estudo, revela direções diferentes adotadas pela legislação.

“Há uma disputa legal para regulamentar a atividade minerária. De um lado, mecanismos legais que buscam garantir a segurança socioambiental; do outro, tentativas de afrouxar e até desrespeitar os direitos indígenas fundamentais”, acrescenta Fellows.

Garantindo a integridade socioambiental de áreas afetadas pelo garimpo está a própria Constituição Federal, por exemplo; enquanto as “facilidades para o exercício dessa atividade”, citam os pesquisadores, se mostram na Lei da Boa-fé (Lei n° 12.844/2013) e no Estatuto do Garimpeiro (Lei n° 11.685 de 2008).

Tornar mais robusta a legislação minerária e indigenista é uma das recomendações da nota, que endossa o seguimento do Projeto de Lei n° 3.025/2023, pela implementação de um sistema de rastreio da produção e comercialização do ouro.

Os autores frisam a necessidade da desintrusão imediata de garimpos em terras indígenas, com prioridade para as mais atingidas.

A criação de um plano para evitar a reincidência nos territórios é destacada, com fortalecimento de órgãos de fiscalização em ações articuladas com órgãos indigenistas, visando o respeito aos povos e suas culturas.

 

•        Gado, madeira e violência ameaçam ribeirinhos do rio Madeira, no sul do Amazonas

 

“VAMOS METER O ‘CORRENTÃO’ quando parar de chover”. A ameaça feita por um madeireiro assustou os ribeirinhos do rio Madeira, que vivem em comunidades no município de Humaitá, no sul do Amazonas. É justamente ali que se consolidou o “novo arco do desmatamento” na Amazônia. O avanço da pecuária e da madeira impulsionam a destruição da floresta – e rápido.

Historicamente, o Amazonas está distante das principais frentes de desmatamento da região. Mas esta realidade mudou nos últimos cinco anos. Em 2023, o estado abrigou quatro dos dez municípios amazônicos com maiores alertas de desmate, segundo os dados do monitoramento via satélite do governo federal.

A promessa de “passar o correntão” nas terras dos ribeirinhos está marcada para quando a estiagem chegar na região, em meados de maio. Nesse método, uma corrente grossa é estendida entre dois tratores que avançam sobre a mata derrubando rapidamente tudo que estiver pela frente.

“Nosso castanhal acabou tudo. Onde a gente andava tinha água e topava bicho de todo jeito. Hoje, nós não conseguimos mais achar uma caça para matar, para comer”, lamenta Valdino Mota, agricultor que vive na comunidade Santa Rita, também conhecida como Pirapitinga, na beira do rio Madeira, uma das localidades que enfrenta o avanço do desmatamento na região.

Longe de ser um fato isolado, o desmatamento no sul do Amazonas impacta uma centena de unidades de conservação e terras indígenas na área de influência da BR-319, estrada que liga a capital amazonense Manaus a Porto Velho (RO). Só em fevereiro deste ano, 700 hectares foram desmatados nos municípios nas imediações da estrada.

Inaugurada na década de 1970, a rodovia nunca foi totalmente finalizada, mas ainda assim estimula mudanças profundas na região. A promessa de pavimentação, por exemplo, já provocou uma explosão de ramais ilegais: em cinco anos, mais de 1,5 mil quilômetros de vicinais foram abertos, quase o dobro da extensão total da estrada federal.

“A BR-319 é um vetor de desmatamento e especulação fundiária. Os anúncios [da pavimentação] geram essa especulação, então vem uma corrida para ocupação de áreas, já que essa terra vale mais desmatada”, alerta Fernanda Meirelles, secretária executiva do Observatório da BR-319, uma rede de organizações da sociedade civil que atua na área de influência da rodovia.

Um desses ramais parte do distrito de Realidade, próximo a Humaitá. A abertura da chamada “Linha 17” começou em 2016 e já se estende por 45 quilômetros em direção às comunidades ribeirinhas na beira do rio Madeira, como a Santa Rita.

O ramal atropelou dois assentamentos no caminho: o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Botos e o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Realidade. A família de Valdino é uma das mais de 400 que possuem lotes nos assentamentos, e dali tiram seu sustento.

Castanheiras foram queimadas, áreas de coleta de açaí destruídas e pastagens tomaram o lugar das florestas. Em apenas dois anos, entre 2021 e 2022, 5,5 mil hectares foram desmatados ao longo da “Linha de 17”, considerando uma área de cinco quilômetros no entorno do ramal.

“Está chegando a soja, está chegando boi. Falam que está chegando o progresso, mas que progresso é esse? É [um processo] violento e muito rápido. Na verdade, já tem muitos ribeirinhos que passam fome”, alerta a Irmã Ivonete Paes, da Área Missionária Ribeirinha, organização que atende 65 comunidades na região.

•        Só 10 latas de açaí

Na beira do igarapé Pirapitinga, na comunidade Santa Rita, há imensas árvores de castanha, cacau, pupunha, seringa e açaí. Muitas delas plantadas pelo pai de Valdino, que se orgulha ao dizer que “foi criado no extrativismo”. Na época da colheita, lembra o agricultor, “não dava nem conta de carregar [a produção]”.

Há décadas na região, os ribeirinhos desenvolveram técnicas de plantio e manejo de produtos da roça e do extrativismo – como castanha e açaí.

Mas o avanço do desmatamento coloca essa diversidade em risco. A seca e queimadas diminuíram os peixes no rio e espantaram os animais da floresta, segundo relatos dessas populações tradicionais. Se antes era comum “tirar” 40 latas de açaí por pessoa, hoje “quando o sujeito tem sorte ‘tira’ só 10 latas”.

“À medida que essas frentes [de desmatamento] vão chegando, primeiro destroem a biodiversidade e com isso o modo de vida das populações”, alerta Dioneia Ferreira, articuladora da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta) e pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas.

Sem animais de caça ou peixes, a dieta dos ribeirinhos mudou. É comum encontrar carne enlatada e outros produtos processados na mesa das famílias. “Tem comunidades com dificuldade para suprir a necessidade de proteína numa refeição porque a área está sendo toda devastada”, ressalta Ferreira.

Esse processo é uma “grave violação de direitos humanos”, avalia Camilla Holanda, do Ministério Público do Trabalho de Rondônia. Para a procuradora, o desmatamento e a pecuária “vão abrindo espaço como um trator passando por cima dos modos de vida das populações tradicionais”.

“Eles plantam capim, e o que nós vamos comer? Ninguém come o chão. Nós temos que plantar no chão para comer”, lamenta a agricultora Marilena Pantoja, cuja roça faz fronteira com uma área de pasto.

•        Hoje o fulano está vivo, amanhã já está morto’

O avanço do desmatamento não acontece de forma pacífica. Há relatos de intimidação e violência, como “tiros de aviso” na parede do sítio de um ribeirinho vizinho a um lote que foi vendido para abrir pasto.

Comunidades são impedidas de entrar em áreas de coleta de castanha e açaí, que eram de uso comum até serem vendidas para pessoas de fora do assentamento. “Eles enchem de placas proibindo qualquer pessoa entrar lá, e estão botando gente no meio da mata, escondido, pra não deixar ninguém entrar lá. Se entrar lá, é arriscado não voltar mais”, contou um agricultor, sob condição de anonimato.

A violência no campo explodiu no último ano, com mais de dois mil conflitos registrados no relatório “Conflitos no Campo de 2023”, divulgado na última semana pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Na região conhecida como “Amacro”, que inclui os estados do Amazonas, Acre e Rondônia, oito pessoas foram assassinadas. O número se manteve estável em relação a 2022, na contramão da redução dos casos no Brasil, que caiu 34%.

O Amazonas saltou de uma média de 25 conflitos no período entre 2010 e 2016 para 75,6, entre 2017 e 2023 – um aumento de 200%. A maioria dos casos, segundo a organização, aconteceu nas regiões sul e centro amazonenses, em “áreas de expansão do agronegócio”.

“Estão vendendo [lotes] e estão se matando aos poucos. É muita gente sendo enterrada, só os pedaços pelas vicinais. Tem tanta gente nas localidades, nos assentamentos, com os pedaços para o lado de fora e muitos dentro da terra. Hoje o fulano que está vivo, amanhã já está morto. Por causa de quê? Por causa de terra”, contou outro ribeirinho que também pediu para não ser identificado.

•        ‘Vai voltar o tempo escravo’

Pressionados pela perda de território e sem opção de trabalho, alguns ribeirinhos já atuam no desmatamento de áreas para abertura de pasto. Esse trabalho é feito, em sua maioria, por pessoas vindas de fora das comunidades – de Humaitá ou mesmo de outros estados, como Amazonas e Mato Grosso.

Mas isso está mudando. A Repórter Brasil conversou com duas pessoas que trabalharam na derrubada da floresta e ambos relataram péssimas condições de alojamento, alimentação e segurança durante a empreitada.

Pedro acordava todos os dias por volta das 6h para ir até o manejo florestal e só voltava para a área do acampamento por volta das 17h30. Para beber, o jovem armazenava a água de um igarapé que “não era tão suja” em uma garrafa PET. A alimentação era à base de farinha, mortadela e carne seca que ele mesmo preparava quando voltava do trabalho.

O trabalho para derrubar uma floresta é perigoso. Relatos de acidentes com facão ou mesmo de árvores caindo sobre os trabalhadores foram ouvidos pela reportagem: “o risco de morrer é grande”, contou Pedro. Isso se agrava pela falta de acesso a qualquer tratamento de saúde: “se Deus o livre um acidente lá para onde nós estava… carregar uma pessoa que não aguenta andar, eu acho que não vive não”, conta o jovem.

Ainda assim, o único equipamento de segurança que Pedro tinha era uma “bota que tinha levado de casa”. João, outro trabalhador ouvido pela reportagem, também não recebeu qualquer suporte. “Eu me vestia só com uma roupa mesmo, manga comprida, calça comprida e uma bota”, contou.

“Já teve gente que teve acidente feio. Às vezes leva um golpe [de facão], às vezes é picada de cobra. Tudo acontece, porque o cara anda na mata bruta”, disse João.

Em diferentes momentos, João e Pedro passaram semanas em um acampamento de lona. A estrutura precária dificultava o descanso de noite. “Quando chovia ninguém dormia, tinha que esperar passar. Quando dava chuva com vento entrava por debaixo da lona e molhava tudo”, lembra João.

Nos últimos 20 anos, 477 trabalhadores em situação análoga à de escravo foram resgatados no Amazonas – a maioria nas atividades de pecuária ou desmatamento. Os dados são do Ministério do Trabalho e Emprego sistematizados pela Repórter Brasil e pela Comissão Pastoral da Terra.

“A região Amacro [Amazonas, Acre e Rondônia] tem muitas serrarias, mas não há uma discussão sobre o aspecto social envolvido, nem sobre a implementação de políticas públicas para evitar o trabalho escravo e acidentes de trabalho”, lamenta a procuradora Camilla Holanda, que também é coordenadora regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.

Os casos de trabalho escravo no Amazonas representam pouco mais de 1,3% do total no Brasil. Essa estatística, longe de mostrar boas condições de trabalho no estado, esconde baixos índices de fiscalização, na avaliação de Holanda. “Fazer o Estado brasileiro chegar nesses espaços passa pela estruturação dos mecanismos de fiscalização da região”, afirma a procuradora.

Longe dos olhos da fiscalização, o desmatamento avança sobre as comunidades ribeirinhas do rio Madeira. Sem a floresta, roça, açaí ou castanha, as comunidades temem o futuro.

“Se a gente quiser sobreviver vamos ter que trabalhar para eles, cuidando da fazenda”, conta Pedro. O ribeirinho que teve sua casa atingida por tiros, é mais categórico: “Se não for dado um basta neles [invasores] vai acabar, vai voltar o tempo escravo”.

 

Fonte: EcoDebate/Reporter Brasil

 

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