Paulo Kliass: Lula,
abandone o arrocho de Haddad!
No próximo dia 5 de
maio ocorrerá o Concurso Público Nacional Unificado, um importante processo de
inovação e democratização dos certames para seleção de funcionários públicos em
uma série de carreiras do governo federal. Como a economia é uma das matérias
que deverão ser apresentadas aos candidatos, não seria de todo impossível
imaginar a seguinte questão:
(…) “Mais
importante do que o número é o compromisso de que nós vamos botar ordem em 10
anos de déficits públicos que acumulam quase 2 trilhões de reais” (…).
Aponte quem foi o
ministro da Fazenda que fez a afirmação acima:
- Antonio Palocci
- Joaquim Levy
- Henrique Meirelles
- Paulo Guedes
- Nenhuma das anteriores
Tendo em vista o
evidente viés de austeridade fiscal que a frase comporta, os candidatos talvez
ficassem em dúvida respeito de quais dos quatro responsáveis por política
econômicas ortodoxas e monetaristas dos últimos governos poderiam ter sido os
responsáveis pela afirmação. Ainda assim, é bem provável que poucos ousassem
assinalar a alternativa e) em seu cartão de respostas. Mas o
fato é que o responsável por essa pérola do fiscalismo extremado foi ninguém
mais, ninguém menos do que o atual titular da pasta da Fazenda, Fernando
Haddad. O perigoso e revelador sincericídio do professor do Insper ocorreu em entrevista recente que ele concedeu à jornalista
Mônica Bérgamo.
·
O austericídio de
Haddad
A frase expressa de
maneira cristalina a abordagem que o conservadorismo econômico apresenta para a
política econômica em geral e para a política fiscal em particular. Trata-se de
reproduzir ad nauseam as simplificações reducionistas a
respeito dos impactos das despesas públicas sobre a atividade econômica e sobre
as contas governamentais. Um dos pontos de partida de tal falácia reside na
comparação equivocada e oportunista entre as contas de um governo de um país
soberano e a contabilidade da dona de casa. O governo de uma nação tem às suas
mãos um conjunto amplo e diversificado de instrumentos de política econômica,
ao contrário do que ocorre com os indivíduos e mesmo com as empresas. O governo
pode lançar mão de tributos, pode utilizar suas reservas internacionais ou pode
lançar títulos da dívida pública, dentre outras opções de busca de recursos
para cumprir com suas obrigações junto à sociedade.
Dessa forma, a frase
mais ouvida do “não temos recursos” não se aplica como argumento para a falta
de vontade política de recompor os seis anos de desgraça que o Brasil enfrentou
entre os governos de Temer e Bolsonaro. Os recursos existem e poderiam muito
bem servir como lastro para colocar em movimento o tão necessário processo de
planejamento, condição fundamental para que o Brasil reencontre a trilha do
desenvolvimento social, econômico e ambiental. Apenas a chamada Conta Única do Tesouro Nacional que é administrada junto ao
Banco Central mantém um saldo credor de R$ 1,8 trilhão, de acordo com as informações oficias do órgão.
Porém, o que mais
impressiona na fala de Haddad é a desenvoltura com que ele assume o personagem
do financista raiz. A primeira questão refere-se à necessidade de “botar ordem”
nas contas públicas. Isso significa que o ministro parte do princípio de que as
coisas estariam em desordem. O próximo passo, caso houvesse tempo e espaço na
entrevista, provavelmente seria falar em descontrole e na gastança
generalizada. Ora, não é por essa ótica que um responsável pela política
econômica de um governo progressista deveria expressar seu diagnóstico. O
presidente eleito já afirmou por mais de uma oportunidade que pretende colocar
em marcha ações buscando a estratégia desenvolvimentista.
·
“Botar em ordem” às custas de quem?
Assim a prioridade não
seria “botar ordem” nas contas públicas, mas sim colocar o Brasil em condições
de oferecer um futuro de crescimento, de qualidade de vida e de bem estar para
a maioria de sua população. Pra cumprir tais missões, Lula sabe que o país
precisa voltar a ter elevação nas despesas governamentais e nos investimentos
públicos. A recuperação do protagonismo é condição sine qua non para
que ele consiga realizar 40 anos em 4, como frisava durante a campanha
eleitoral de 2022. Romper com a lógica da austeridade extremada é a única
maneira que ele tem para “fazer mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos”.
Haddad adota o “bordão
do trilhão”, imagem que se tornou moeda corrente nas falas de seu antecessor,
Paulo Guedes. Na tentativa de apontar um suposto escândalo no volume dos gastos
públicos, ele chama a atenção para uma sucessão de déficits fiscais que teriam
acumulado um total de quase R$ 2 trilhões ao longo da última década. Ora, o
ministro apenas se esqueceu de esclarecer aos espectadores que se trata de um
tipo bem particular de abordagem das contas públicas. Ele se refere ao déficit
primário, cuja metodologia de cálculo exclui as rubricas relativas à dimensão
financeira da contabilidade pública. Assim, esse déficit surge na agregação de
despesas como previdência social, saúde, educação, assistência social,
segurança pública, salários de servidores, saneamento e outras.
Ora, apresentar uma
necessidade de financiamento nesta abordagem está muito longe da expressão
“rombo” como os especialistas a soldo do financismo tratam do assunto nos
grandes meios de comunicação. É triste ver o principal ministro do terceiro
mandato de Lula tratar essa dimensão da política econômica de forma semelhante
ao povo da alta finança. Haddad sabe muito bem que as necessidades exigidas
para a recomposição das políticas públicas desmontadas e para a reconstrução
das instituições públicas destruídas ao longo dos últimos seis anos pressupõem
um esforço fiscal de peso. Esse processo demandaria uma orientação exatamente
oposta à da austeridade e de chamar atenção de forma desonesta para supostos
rombos trilionários.
Na verdade, não há
nada de problemático nem escandaloso em um governo apresentar contas públicas
deficitárias. Aliás, esta é a realidade atual da absoluta maioria dos países
desenvolvidos. E nem por isso Estados Unidos, Alemanha, França, Canadá ou Japão
estão à beira do apocalipse. Pelo menos, não por conta de estarem apresentando
déficit fiscal. Ao contrário do que Haddad deixa a entender, a existência de
déficit fiscal neste momento no Brasil é um dos caminhos para a busca de
solução para nossos problemas.
·
E os R$ 5 trilhões de
juros?
Portanto, se o
ministro quisesse realmente “botar ordem na casa”, ele deveria olhar para outra
conta do gasto público. Refiro-me aqui justamente àquele tipo de despesa que
escapa de qualquer tipo de teto, de limite ou de contingenciamento. Trata-se da
rubrica que assinala o pagamento de juros de dívida pública. Esse tipo de
despesa que o ministro não mencionou foi responsável por R$ 748 bilhões ao
longo dos últimos 12 meses, o segundo maior item do Orçamento da União. Mas
enquanto isso, o pessoal da Fazenda fica colecionando cortes e empecilhos de
algumas centenas de milhões nas contas das universidades, da saúde e outras
áreas sensíveis da dimensão social.
A verdadeira
comparação com os tais R$ 2 trilhões que Haddad faz referência deveriam ser
os R$ 5 trilhões que o Tesouro Nacional destinou ao pagamento de
juros da dívida ao longo da mesma década. Mas
neste caso, ele não deve achar a cifra relevante e talvez não considere
importante “botar ordem” nesse domínio. Afinal, mexer com esse vespeiro
significa afetar os interesses dos 1% do topo da nossa vergonhosa pirâmide da
desigualdade. A opção de Haddad tem sido sempre a de buscar algum tipo de
resultado positivo nas contas públicas por meio de redução ou limitação dos
recursos nas despesas primárias. Assim, a lógica no Novo Arcabouço Fiscal – que
ele elaborou após consultas ao presidente do Banco Central e a meia dúzia de
banqueiros do oligopólio privado – supõe a retirada dos pisos constitucionais
para saúde e educação, além da tão sonhada desindexação dos benefícios da
previdência social em relação ao salário mínimo.
Lula sabe muito bem
dos prejuízos que a trilha da austeridade extremada de Haddad pode provocar ao
seu governo e à maioria da população. O próprio Partido dos Trabalhadores
apontou tal risco em reunião recente. O Diretório Nacional usou, inclusive, a expressão “austericídio”
na resolução em que condenou aspectos da política
econômica do governo. No final de abril completam-se os primeiros 16 meses de
Lula 3.0. Isso significa que já passou 1/3 deste mandato. Apesar dos inegáveis
avanços realizados, a longa lista de demandas e necessidades continua sem ser
atendida em função do arrocho fiscal imposto pela lógica do “não podemos gastar
para botar ordem nas contas”.
É fundamental que Lula
assuma o leme do barco e se desvie da rota da austeridade fiscal. Ele mesmo já
se manifestou por diversas ocasiões a respeito da importância da responsabilidade social em comparação com a
responsabilidade fiscal:
(…) “Se
não resolvermos problemas sociais, não vale a pena recuperar esse país. Não
adianta só pensar em responsabilidade fiscal, temos de pensar em
responsabilidade social” (…)
Para dar conta das
imensas tarefas que a História lhe reserva como dirigente político perante o
futuro da nação, Lula precisa se livrar do abraço de afogado do financismo.
Para colocar em marcha o motor do desenvolvimento, é preciso abandonar de forma
urgente os dogmas financistas da austeridade.
¨ A flexibilização dos pisos de Saúde e Educação avança no governo
Lula. Por Ana Paula Salviatti
Apesar de
sempre ter sido sonho da direita, Haddad leva a ideia adiante
NOSSA COLUNA COMEÇA
COM a seguinte manchete publicada na
Folha/Valor Econômico: ‘Flexibilização dos Pisos de Saúde e Educação pode
liberar até R$ 131 bilhões para outros gastos até 2033’.
Esta manchete nos leva
a várias questões. A primeira que surge na mente é: Para quê, exatamente, será
essa liberação? Quais outros gastos seriam mais urgentes do que Saúde e
Educação em nosso país? Ou ainda, que dívida é essa que o país precisa saldar?
O debate em torno do
orçamento previsto pela Constituição de 1988 tem a mesma idade da Nova
República. Desde então, sua implementação enfrenta inúmeros entraves, e seus
recursos já foram desviados para criar o Fundo Social de Emergência em
1993-1994.
Posteriormente, foi
provisoriamente institucionalizado através da Desvinculação de Receitas da
União, a Dru, que chegou a representar 20% dos recursos com finalidade
vinculante pela Constituição. Durante o governo Temer, essa porcentagem foi
atualizada para 30%.
A frase mais repetida
entre políticos de direita, centro e agora também de centro-esquerda é: ‘A
Constituição não cabe no orçamento’. O atual ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, promoveu a flexibilização dos recursos de Saúde e Educação, um feito
que o próprio partido do qual é membro conseguiu barrar várias vezes em
governos de outras siglas.
Contudo, para manter o
governo dentro da autoimposta meta de gastos fiscais, Fernando lançou mão da
flexibilização dos dois orçamentos. A nova meta de gastos do governo faz parte
do novo arcabouço fiscal proposto pelo governo logo nos meses iniciais de 2023.
A ideia era criar um
espaço para a realização de políticas fiscais pelo governo. Deste modo, a regra
que instituía o congelamento dos gastos fiscais por 20 anos, implementada ainda
no governo Temer, era substituída pela nova regra, que criava uma espécie de
elo entre os gastos fiscais e o crescimento econômico do país. Se o país
crescesse, os gastos cresceriam também.
Já que estamos no
reino da responsabilidade fiscal, a proposta de Haddad foi considerada um tanto
quanto irresponsável. Se o país enfrentasse uma desaceleração econômica, não
poderia reivindicar um dos principais mecanismos de amortecimento dinâmico da economia,
o gasto fiscal.
Isso, é claro, se
tomarmos como ponto de partida que o ajuste do mercado apenas acontecerá meses
após o juízo final.
Respondendo à pergunta
imaginada pelo leitor da nossa coluna sobre a manchete inicial – ‘Liberar R$
131 bilhões para quais outros gastos?’ – as possibilidades são vastas. O país
enfrenta um déficit crônico de investimentos em Saneamento Básico, investimentos
que poderiam refletir diretamente na economia e no orçamento público,
especialmente na área da Saúde, em relativamente pouco tempo.
Mas, a nossa manchete
se baseia nos cálculos feitos pela Secretaria do Tesouro Nacional, que faz
projeções quase que diárias sobre o perfil e a curva de gastos com a dívida
pública brasileira. Seguindo o parco crescimento econômico do país desde meados
de 2015, a curva e o vencimento da dívida têm reduzido o horizonte de manobra
do Tesouro. Deste modo, metade da pergunta feita pelos leitores à manchete foi
respondida.
Então, a economia de
133 bilhões, até 2033, o que supõe que a flexibilização duraria até lá,
basicamente seria uma espécie de poupança do governo para garantir o pagamento
dos credores do Tesouro Nacional.
Essa é a lógica por
detrás da manchete e da flexibilização feita no piso da Educação e Saúde, a
qual, convenhamos, é muito intuitiva, mas, em problemas econômicos talvez seja
mais interessante uma abordagem mais pragmática.
A economia tem suas
liturgias, seus cânticos, e até alguns evangelhos apócrifos, como o da dona de
casa que emite moeda para pagar as compras na quitanda e decide os níveis de
juros do mercado com outras ‘grandes donas de casa’ do bairro. São máximas como
essas que sempre nos fascinam.
Por sua vez, o Tesouro
Nacional, responsável pela administração da dívida pública, está preocupado com
o perfil e o vencimento da mesma, e com razão.
No entanto, ao invés
de apenas considerar como cortes em despesas vinculadas pela Constituição
liberariam bilhões para ‘outros gastos’, o Tesouro poderia se concentrar em
propostas que promovam a redução das taxas de juros dos títulos e o
prolongamento de seu vencimento.
Não sejamos ingênuos,
assim como a água encontra seu caminho entre as rochas, a economia sempre
descobre formas de se ajustar às regulamentações. O objetivo é, pelo menos,
buscar o controle orçamentário, especialmente diante de um governo de
centro-esquerda.
Tudo isso sem esquecer
que estamos lidando com a dívida interna, não a externa. Este é um tema que
merece uma coluna própria para discussão.
Em última análise, o
mercado – esse ente que vive à base de juros e maracujina – precisa ter a
certeza de que suas expectativas serão realizadas. Assim, uma poupança de
recursos está sendo feita até 2030, assegurando seu pagamento até lá.
O grande capital
nacional é como uma embarcação ancorada na dívida pública, e a liquidez do
nosso sistema financeiro se sustenta há décadas em taxas de juros reais
elevadas.
Num cenário onde os
mecanismos de condução macroeconômica parecem sequestrados, reduzir a taxa de
juro e incentivar o investimento privado através do gasto público são
considerados quase heréticos.
Fernando, à frente da
Fazenda, reafirma seu compromisso com as expectativas do mercado, sem alterar o
status quo da máquina. Nada de novo sob o sol, exceto pelo fato de que este
Fernando não é Henrique, mas Haddad.
Fonte: Outras Palavras/The
Intercept
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