Como a
memória dos pescadores pode ajudar a ciência no manejo da pesca no Brasil
Quando
Leandro Castello se formou em Oceanografia em 1998, não conseguiu um trabalho
ligado diretamente ao oceano. Em vez disso, foi para a região do Médio
Solimões, na Amazônia, estudar a pesca do pirarucu (Arapaima gigas),
gigante da água doce que, além de respirar debaixo d’água, também sobe à
superfície para respirar. A pesca dessa espécie foi proibida em vários lugares
devido à sobrepesca.
“Conheci
pescadores que tinham um conhecimento incrível”, diz Castello, que hoje é
biólogo conservacionista de peixes no Instituto Politécnico da Universidade
Estadual da Virgínia, nos EUA. “Testamos se esses pescadores conseguiam contar
a quantidade de peixes, assim como as pessoas fazem com as baleias no oceano, e
se essa contagem poderia ser usada para basear o manejo.”
Castello
diz que as contagens foram “incrivelmente precisas” e “200 vezes mais baratas e
mais rápidas” do que avaliar o estoque de peixes usando um método científico
equivalente. Em 2004, o Ibama até mesmo aprovou uma autorização especial para
pescadores capturarem o pirarucu desde que apresentassem seus dados de
contagem, e várias ONGs e organizações governamentais também passaram a
promover e implementar esses métodos, diz Castello.
Atualmente,
mais de 400 comunidades pesqueiras no Amazonas pescam o pirarucu com base na
contagem de pescadores, o que permite que eles mesmos façam o manejo
sustentável da pesca, complementa. “Essa experiência me ensinou que há muito
[que se pode fazer com o] conhecimento local”, conclui Castello.
Cerca
de 20 anos mais tarde, Castello iniciou outro projeto de pesquisa focado no
conhecimento local, desta vez identificando como os cientistas podem traduzir
as lembranças dos pescadores brasileiros sobre a pesca no passado em “dados
coletados da memória”, que podem ser usados para manejar os estoques em lugares
com pouco ou nenhum acesso a dados.
Muitos
outros estudos já exploraram como a memória dos pescadores pode servir como
fonte de dados, incluindo um anterior feito pelo
próprio Castello, focado na pesca de pequena escala na Bacia do Congo.
Este novo estudo, publicado
recentemente na revista Frontiers in Ecology and the Environment,
foi além, procurando avaliar a confiabilidade desses dados em comparação com
aqueles coletados por métodos científicos tradicionais. Este estudo é uma das
iniciativas mais abrangentes sobre a confiabilidade dos dados de memória,
usando uma amostra grande de pescadores e vários estoques de pesca diferentes.
Castello
e seus colegas identificaram 24 áreas de pesca, tanto artesanal quanto
industrial, ao longo do litoral brasileiro, para as quais havia dados sobre a
pesca coletados por pesquisadores ou órgãos governamentais. Então, para testar
se a memória dos pescadores poderia ser uma fonte de dados útil, eles
entrevistaram cerca de 400 indivíduos envolvidos na pesca nessas áreas, a
maioria deles caiçaras, populações tradicionais do Sul e Sudeste do Brasil.
Os
pesquisadores elaboraram um questionário sobre o tipo de pesca que era feita,
que equipamento era usado, as espécies pescadas, e qual a idade dos pescadores
quando se dedicavam à atividade. Então pedia informações específicas sobre
“capturas normais”, “capturas boas” e “capturas ruins”, incluindo quantos
quilos pescavam em cada viagem e quanto tempo ficavam pescando. Os
pesquisadores pediram essas estimativas para os primeiros anos de trabalho dos
pescadores bem como para os últimos.
A
equipe descobriu que a memória dos pescadores era especialmente precisa para
recordar eventos extremos, como uma temporada de pesca muito farta ou muito
escassa. Contudo, fatores como o tempo passado e a idade dos entrevistados
tornavam algumas memórias menos precisas. No conjunto, porém, os pesquisadores
descobriram que, coletivamente, a memória dos pescadores corroborava os dados
científicos em 95% do tempo.
“Algumas
pessoas se lembravam de uma pesca muito mais farta ou muito mais escassa do que
tinha sido de fato”, diz a coautora do estudo e professora associada da
Universidade do Rio Grande do Norte, Priscila Lopes. “Mas a média é
consistente. Então, em média, a memória das pessoas é realmente confiável.”
Tanto
Castello quanto Lopes dizem que os métodos para recuperar a memória descritos
em seu estudo podem ser especialmente úteis em países como o Brasil, onde os
dados sobre a atividade pesqueira são escassos, ou para quando é
financeiramente impossível reunir os dados necessários para implementar
sofisticados esquemas de manejo de pesca baseados na ciência ocidental.
“Entrevistas
rápidas com pescadores podem produzir dados históricos sobre a pesca por um
custo muito menor do que o dos dados convencionais (científicos)”, diz
Castello. Além de fornecer informações sobre dados de pesca, ele conta que a
memória dos pescadores pode ser usada para entender tendências históricas, tais
como declínios e aumentos na captura, e períodos de estabilidade. Esses
resultados podem então ser usados para tomar decisões críticas de manejo,
acrescenta.
William
Cheung, professor e diretor do Instituto para Oceanos e Estoques de Pesca da
Universidade da Colômbia Britânica, no Canadá, que não esteve envolvido na
pesquisa, elogiou a “robustez” da análise do novo estudo. Em sua opinião, este
estudo se destaca dos demais que também avaliam a utilidade das memórias dos
pescadores para coletar dados.
“Um
dos motivos pelos quais eles encontraram esta alta confiabilidade [na memória
dos pescadores] foi a descrição detalhada de seus métodos, e como eles tentaram
desenvolver perguntas comuns que podem ajudar as pessoas a se lembrar das
informações com mais precisão”, diz Cheung. “Isso [a alta precisão] é uma coisa
que acho bastante promissora e que a meu ver se destaca.”
Castello
diz que ele e seus colegas já tiveram problemas com autoridades governamentais
para implementar esses métodos – baseados na coleta de memórias – no manejo da
pesca. Mas agora ele tem esperança de que a maré mude. Castello diz que
seu “sonho” é que o conhecimento local seja usado para manejar a pesca
tradicional, não só no Brasil, mas também em outras partes do mundo.
“Temos
milhões de pescadores que vivem e pescam nesses lugares há muito tempo”, diz
Castello, “e eles têm todas essas memórias que podemos usar para obter dados de
forma fácil e rápida. Não é perfeito, mas de acordo com as melhores estimativas
científicas, tem 95% de acurácia e confiabilidade. Isso irá produzir um manejo
tão bom quanto o manejo feito na América do Norte ou na Europa? Não,
definitivamente não. Mas é muito melhor do que não ter nenhum manejo, nenhum
dado, nenhuma informação, nenhuma ação.”
Fonte:
Mongabay
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