sábado, 4 de maio de 2024

Como a memória dos pescadores pode ajudar a ciência no manejo da pesca no Brasil

Quando Leandro Castello se formou em Oceanografia em 1998, não conseguiu um trabalho ligado diretamente ao oceano. Em vez disso, foi para a região do Médio Solimões, na Amazônia, estudar a pesca do pirarucu (Arapaima gigas), gigante da água doce que, além de respirar debaixo d’água, também sobe à superfície para respirar. A pesca dessa espécie foi proibida em vários lugares devido à sobrepesca.

“Conheci pescadores que tinham um conhecimento incrível”, diz Castello, que hoje é biólogo conservacionista de peixes no Instituto Politécnico da Universidade Estadual da Virgínia, nos EUA. “Testamos se esses pescadores conseguiam contar a quantidade de peixes, assim como as pessoas fazem com as baleias no oceano, e se essa contagem poderia ser usada para basear o manejo.”

Castello diz que as contagens foram “incrivelmente precisas” e “200 vezes mais baratas e mais rápidas” do que avaliar o estoque de peixes usando um método científico equivalente. Em 2004, o Ibama até mesmo aprovou uma autorização especial para pescadores capturarem o pirarucu desde que apresentassem seus dados de contagem, e várias ONGs e organizações governamentais também passaram a promover e implementar esses métodos, diz Castello.

Atualmente, mais de 400 comunidades pesqueiras no Amazonas pescam o pirarucu com base na contagem de pescadores, o que permite que eles mesmos façam o manejo sustentável da pesca, complementa. “Essa experiência me ensinou que há muito [que se pode fazer com o] conhecimento local”, conclui Castello.

Cerca de 20 anos mais tarde, Castello iniciou outro projeto de pesquisa focado no conhecimento local, desta vez identificando como os cientistas podem traduzir as lembranças dos pescadores brasileiros sobre a pesca no passado em “dados coletados da memória”, que podem ser usados para manejar os estoques em lugares com pouco ou nenhum acesso a dados.

Muitos outros estudos já exploraram como a memória dos pescadores pode servir como fonte de dados, incluindo um anterior feito pelo próprio Castello, focado na pesca de pequena escala na Bacia do Congo. Este novo estudo, publicado recentemente na revista Frontiers in Ecology and the Environment, foi além, procurando avaliar a confiabilidade desses dados em comparação com aqueles coletados por métodos científicos tradicionais. Este estudo é uma das iniciativas mais abrangentes sobre a confiabilidade dos dados de memória, usando uma amostra grande de pescadores e vários estoques de pesca diferentes.

Castello e seus colegas identificaram 24 áreas de pesca, tanto artesanal quanto industrial, ao longo do litoral brasileiro, para as quais havia dados sobre a pesca coletados por pesquisadores ou órgãos governamentais. Então, para testar se a memória dos pescadores poderia ser uma fonte de dados útil, eles entrevistaram cerca de 400 indivíduos envolvidos na pesca nessas áreas, a maioria deles caiçaras, populações tradicionais do Sul e Sudeste do Brasil.

Os pesquisadores elaboraram um questionário sobre o tipo de pesca que era feita, que equipamento era usado, as espécies pescadas, e qual a idade dos pescadores quando se dedicavam à atividade. Então pedia informações específicas sobre “capturas normais”, “capturas boas” e “capturas ruins”, incluindo quantos quilos pescavam em cada viagem e quanto tempo ficavam pescando. Os pesquisadores pediram essas estimativas para os primeiros anos de trabalho dos pescadores bem como para os últimos.

A equipe descobriu que a memória dos pescadores era especialmente precisa para recordar eventos extremos, como uma temporada de pesca muito farta ou muito escassa. Contudo, fatores como o tempo passado e a idade dos entrevistados tornavam algumas memórias menos precisas. No conjunto, porém, os pesquisadores descobriram que, coletivamente, a memória dos pescadores corroborava os dados científicos em 95% do tempo.

“Algumas pessoas se lembravam de uma pesca muito mais farta ou muito mais escassa do que tinha sido de fato”, diz a coautora do estudo e professora associada da Universidade do Rio Grande do Norte, Priscila Lopes. “Mas a média é consistente. Então, em média, a memória das pessoas é realmente confiável.”

Tanto Castello quanto Lopes dizem que os métodos para recuperar a memória descritos em seu estudo podem ser especialmente úteis em países como o Brasil, onde os dados sobre a atividade pesqueira são escassos, ou para quando é financeiramente impossível reunir os dados necessários para implementar sofisticados esquemas de manejo de pesca baseados na ciência ocidental.

“Entrevistas rápidas com pescadores podem produzir dados históricos sobre a pesca por um custo muito menor do que o dos dados convencionais (científicos)”, diz Castello. Além de fornecer informações sobre dados de pesca, ele conta que a memória dos pescadores pode ser usada para entender tendências históricas, tais como declínios e aumentos na captura, e períodos de estabilidade. Esses resultados podem então ser usados para tomar decisões críticas de manejo, acrescenta.

William Cheung, professor e diretor do Instituto para Oceanos e Estoques de Pesca da Universidade da Colômbia Britânica, no Canadá, que não esteve envolvido na pesquisa, elogiou a “robustez” da análise do novo estudo. Em sua opinião, este estudo se destaca dos demais que também avaliam a utilidade das memórias dos pescadores para coletar dados.

“Um dos motivos pelos quais eles encontraram esta alta confiabilidade [na memória dos pescadores] foi a descrição detalhada de seus métodos, e como eles tentaram desenvolver perguntas comuns que podem ajudar as pessoas a se lembrar das informações com mais precisão”, diz Cheung. “Isso [a alta precisão] é uma coisa que acho bastante promissora e que a meu ver se destaca.”

Castello diz que ele e seus colegas já tiveram problemas com autoridades governamentais para implementar esses métodos – baseados na coleta de memórias – no manejo da pesca. Mas agora ele tem esperança de que a maré mude. Castello diz que seu “sonho” é que o conhecimento local seja usado para manejar a pesca tradicional, não só no Brasil, mas também em outras partes do mundo.

“Temos milhões de pescadores que vivem e pescam nesses lugares há muito tempo”, diz Castello, “e eles têm todas essas memórias que podemos usar para obter dados de forma fácil e rápida. Não é perfeito, mas de acordo com as melhores estimativas científicas, tem 95% de acurácia e confiabilidade. Isso irá produzir um manejo tão bom quanto o manejo feito na América do Norte ou na Europa? Não, definitivamente não. Mas é muito melhor do que não ter nenhum manejo, nenhum dado, nenhuma informação, nenhuma ação.”

 

Fonte: Mongabay            

 

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