ECONOMIA E
DESIGUALDADES: O gasto do Estado pode ultrapassar a arrecadação?
Por
décadas, o Estado brasileiro tem sido alvo de críticas que o caracterizam como
ineficiente, lento, antiquado e corrupto. Essas críticas, provenientes de
várias esferas da sociedade, advogam pelo desmonte dos serviços públicos e pela
privatização como solução para tais problemas, visando uma suposta maior
eficiência e qualidade. Paralelamente, a associação do Estado ao autoritarismo
tornou-se amplamente difundida, servindo como instrumento para desacreditar e
desvalorizar qualquer forma de intervenção governamental na economia. No
entanto, essa associação simplista e generalizada negligencia a diversidade de
abordagens e políticas que os governos podem adotar para promover o
desenvolvimento econômico e o bem-estar social. Ao estigmatizar a intervenção estatal
como autoritária, corre-se o risco de subestimar os benefícios que políticas
públicas bem planejadas podem proporcionar à sociedade, desde a redução das
desigualdades até o estímulo ao crescimento sustentável.
INTERVENÇÃO
ESTATAL
O Estado
desempenha um papel multifacetado na economia, agindo não apenas como um
garantidor de segurança material e executor de metas sociais, mas também como
um agente econômico ativo. Ele intervém diretamente no cenário econômico por
meio de investimentos públicos e operações de empresas estatais. Além disso, o
Estado exerce influência indireta por meio de políticas fiscais, monetárias e
industriais, buscando melhorar a alocação de recursos pelo mercado.
As
finanças públicas têm um papel crucial nesse contexto, estabelecendo regras
legais para promover a concorrência e garantir retornos nos investimentos. Os
governos também regulam a sociedade, buscando estabelecer ordem, liberdade,
bem-estar e justiça, variando desde a distribuição de informações até o
financiamento direto de setores específicos.
A
intervenção do governo na economia também visa proteger contra flutuações
abruptas, como altos níveis de desemprego e inflação. Além disso, busca-se
promover uma distribuição mais igualitária da renda, reduzindo as disparidades
sociais. O Estado pode atuar como um planejador, estabelecendo objetivos
nacionais e estratégias de desenvolvimento, ou como um promotor do
desenvolvimento econômico e social, impulsionando a atividade econômica e
eliminando obstáculos existentes.
O
investimento público desempenha um papel crucial nesse processo. Ele pode
aumentar o retorno do investimento privado, especialmente quando se concentra
em melhorias na infraestrutura e serviços, estimulando assim o investimento
privado. Esse fenômeno, conhecido como efeito crowding-in, ocorre quando o
capital público e o capital privado atuam como complementares, impulsionando os
mercados.
No
entanto, é importante considerar os possíveis efeitos negativos do aumento dos
gastos públicos. O chamado efeito crowding-out pode reduzir o investimento
privado, principalmente quando há um aumento nas taxas de juros. Além disso, o
setor público pode competir com o privado por recursos físicos e financeiros,
prejudicando o investimento privado no curto prazo.
No
entanto, as políticas atuais têm se concentrado excessivamente em cortes de
gastos, prejudicando serviços essenciais e falhando em fornecer uma resposta
eficaz para as flutuações econômicas. Nesse sentido, é importante destacar
iniciativas como o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC e PAC 2), lançado
pelo governo Lula em 2007 e ampliado no governo Dilma, com o objetivo de
acelerar o crescimento do investimento global da economia de forma sustentada.
O programa visava promover a retomada do planejamento e execução de grandes
obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país,
eliminando gargalos ao crescimento, estimulando investimentos privados e
aumentando a produtividade das empresas. Os investimentos executados pelo
programa alcançaram resultados expressivos, contribuindo para o aumento da
oferta de empregos, geração de renda e fortalecimento do mercado doméstico.
O
lançamento do Novo PAC, anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em
agosto de 2023, representa um passo importante para a retomada do crescimento
sustentável no Brasil. Com um pacote de R$1,7 trilhão de investimentos em obras
de infraestrutura, o governo busca colocar a capacidade do Estado a serviço dos
sonhos da população brasileira de uma vida melhor. O programa inclui ações para
redução das desigualdades regionais e sociais, melhoria da qualidade de vida da
população e preservação ambiental, priorizando energias limpas e renováveis.
Essa iniciativa, aliada a outras políticas de inclusão social e estímulo ao
desenvolvimento, é essencial para impulsionar o crescimento econômico e
promover um futuro sustentável para o país.
CONTAS
PÚBLICAS
No cenário
econômico brasileiro, uma narrativa comum é a necessidade de equilibrar as
contas públicas, fundamentada na ideia de que o Estado não deve gastar mais do
que arrecada. Essa premissa tem sido amplamente utilizada para justificar
políticas de austeridade e redução de despesas, especialmente após a crise de
2015-2016, acompanhada pelo avanço de medidas de cunho neoliberal.
À vista
disso, é importante compreender que as contas públicas referem-se ao registro e
controle das receitas e despesas do governo em um determinado período de tempo.
Elas são fundamentais para avaliar a saúde financeira de um país e entender
como o governo está gerenciando seus recursos.
As
receitas governamentais incluem principalmente impostos, taxas, contribuições
sociais e receitas provenientes de empréstimos e investimentos. Por outro lado,
as despesas abrangem gastos com serviços públicos, programas sociais, pagamento
de funcionários, investimentos em infraestrutura, entre outros.
Ao
analisar as contas públicas, é essencial considerar tanto o lado da receita
quanto o da despesa. Uma queda na arrecadação, como a observada durante
períodos de recessão econômica, pode impactar significativamente a capacidade
do governo de financiar suas atividades e programas. Por outro lado, um aumento
nas despesas, mesmo que direcionado para investimentos públicos e políticas
sociais, pode levar a déficits orçamentários se não for acompanhado por um
aumento proporcional na arrecadação.
Além
disso, é essencial desfazer a noção equivocada de que o Estado deve seguir o
modelo de gestão financeira de uma família, especialmente durante períodos de
desaceleração econômica. Contrariando a analogia da “dona de casa”, o Estado
dispõe de ferramentas para fomentar a demanda e dinamizar a economia. Programas
como o Bolsa Família não representam apenas despesas, mas sim investimentos que
proporcionam retornos significativos à sociedade, impulsionando o consumo e
estimulando a atividade econômica.
Em
momentos de crise, é fundamental que o Estado assuma um papel ativo, evitando
um ciclo vicioso de queda na demanda e desemprego. O Estado pode e deve gastar
mais do que arrecada para estabilizar a economia e promover o crescimento. Essa
abordagem, defendida por economistas como John Maynard Keynes, destaca a
importância do Estado como um agente econômico capaz de mitigar os impactos das
flutuações econômicas.
Contudo,
as políticas em vigor têm direcionado sua ênfase de forma excessiva para
reduções de gastos, o que tem impactado negativamente serviços essenciais e
falhado em oferecer uma resposta eficaz às oscilações econômicas.
DÉFICIT
PÚBLICO NÃO É O PROBLEMA
Ao
encerrar o balanço de 2023, o governo Lula deparou-se com um déficit
substancial, superando os R$230 bilhões, atribuído, em parte, à administração
anterior. Entretanto, essa perspectiva simplista não leva em conta a
complexidade subjacente aos números e subestima o papel crucial do Estado na
gestão econômica.
Entre 2019
e 2022, a administração Bolsonaro teve um excesso de gastos de R$795 bilhões,
destinados principalmente a combater os impactos da pandemia e os reflexos da
Guerra na Ucrânia. Embora questionamentos políticos tenham surgido, esses
investimentos foram essenciais para a rápida recuperação econômica do país.
A execução
da PEC da transição, combinada a despesas não planejadas, como as vinculados
aos precatórios não quitados pelo governo Bolsonaro, totalizando mais de R$92
bilhões, e à compensação aos estados pela redução na arrecadação do ICMS sobre
combustíveis, resultaram em um déficit de 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB)
em 2023. Esse período de crescimento econômico também foi marcado por avanços
significativos em programas sociais e pelo aumento real do salário mínimo.
Essas medidas desempenharam um papel crucial no impulso à economia, resultando
em um notável crescimento de 3,1% do PIB.
O recente
alarde em torno do déficit fiscal do ano passado destaca uma discussão crucial
sobre a capacidade do Estado de gastar mais do que arrecada e seu papel no
desenvolvimento econômico. É importante compreender que o déficit fiscal não
deve ser visto apenas como um indicador de má gestão financeira, mas sim como
uma ferramenta estratégica para impulsionar o crescimento e promover o
bem-estar social.
Em
primeiro lugar, é necessário reconhecer que o Estado possui a capacidade única
de emitir moeda e contrair dívidas soberanas. Essa capacidade de financiamento
permite ao governo intervir na economia por meio de investimentos em
infraestrutura, programas sociais e estímulos fiscais. Durante períodos de
desaceleração econômica ou crises, é fundamental que o Estado aumente seus
gastos para estimular a demanda agregada e impulsionar a atividade econômica.
No
entanto, enfrentamos o desafio da proposta de déficit zero em 2024 e da
austeridade fiscal defendida pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A ideia
de eliminar completamente o déficit pode levar a cortes drásticos nos
investimentos públicos e nos serviços essenciais, como saúde, educação e
segurança.
Por outro
lado, a austeridade fiscal proposta por Haddad, ancorada no Novo Arcabouço
Fiscal, pode restringir os investimentos necessários para impulsionar o
crescimento econômico e reduzir as desigualdades. Ao priorizar o equilíbrio
fiscal a curto prazo, corre-se o risco de sacrificar o desenvolvimento a longo
prazo e o bem-estar da população. O problema não é o déficit, mas sim o
austericídio e a proposta de déficit zero.
AUSTERIDADE
FISCAL
A
austeridade fiscal, amplamente promovida como solução para crises econômicas,
tem sido objeto de intensos debates e análises críticas ao redor do mundo. Essa
política, fundamentada na ideia de redução dos gastos públicos para controlar o
déficit e a dívida do Estado, tem implicações profundas na sociedade e na
economia.
Inicialmente,
os defensores da austeridade argumentavam que ela aumentaria a confiança dos
agentes privados, impulsionando o crescimento econômico. Essa visão, baseada na
chamada “hipótese da fada da confiança”, conforme denominada por Paul Krugman,
sugeria que a contração fiscal poderia, paradoxalmente, expandir a economia ao
reduzir as taxas de juros e estimular o consumo e o investimento privado.
No
entanto, essa narrativa tem sido questionada por estudos recentes. O influente
trabalho “Growth in a Time of Debt” [2010], conduzido pelos renomados
professores de Harvard Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, foi frequentemente
utilizado para fundamentar políticas de austeridade, sugerindo uma ligação
entre altos níveis de dívida pública e um crescimento econômico inferior. No
entanto, essa pesquisa foi contestada devido a importantes falhas metodológicas
(DECCACHE, 2022).
Além
disso, a aplicação prática da austeridade tem mostrado resultados
decepcionantes. Em vez de promover o crescimento econômico, ela tem contribuído
para o aumento do desemprego e da desigualdade social. Países como o Brasil,
que adotaram políticas de austeridade, enfrentaram recessão e estagnação
econômica, exacerbando ainda mais os problemas sociais.
Isto
posto, a teoria monetária moderna oferece uma perspectiva alternativa sobre o
funcionamento das finanças públicas. Ela destaca que os governos, especialmente
os monetariamente soberanos, têm a capacidade de gastar emitindo moeda, não
estando restritos pela necessidade de obtenção prévia de receitas. Além disso,
os governos têm o poder de determinar a taxa de juros da economia, o que pode
influenciar o investimento e o consumo privado.
No
contexto brasileiro, as políticas de austeridade foram implementadas como
resposta à crise econômica, mas acabaram agravando os problemas estruturais do
país. A elevação da dívida pública e a deterioração dos serviços públicos são
apenas algumas das consequências observadas.
Em última
análise, a austeridade fiscal não apenas falha em atingir seus objetivos, mas
também serve aos interesses das elites financeiras ao sacrificar o bem-estar da
população em prol da manutenção de um sistema econômico desigual. À vista
disso, é fundamental repensar as políticas econômicas e buscar alternativas que
priorizem o desenvolvimento sustentável e a justiça social.
Fonte: Por
Bruno Fabricio Alcebino da Silva, no Le Monde
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