segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Como equilibrar os pratos de ensino, pesquisa e extensão?

Uma carreira de sucesso como pesquisador, mais de 2 mil citações no google acadêmico. Já enquanto docente, na sala de aula, um profissional com muitas dificuldades em transmitir o conteúdo da disciplina.

A situação acima descreve perfeitamente, na minha visão, um dos professores do meu programa de pós-graduação e também alguns que tive na graduação. Já quero deixar bem sinalizado que esta não é uma coluna que tem a intenção de culpabilizar esses profissionais.

Primeiro porque, em muitos deles, eu notava claramente o quanto tentavam transmitir o conteúdo da melhor forma. Segundo, porque creio que estamos diante de uma problemática institucional e que nasce no próprio modelo de pós-graduação brasileiro, ou seja, na escola de formação dos futuros docentes universitários.

•        Autonomia do estudante e consequências no aprendizado

Sou graduado em economia pela USP e me lembro que, na apresentação do curso, o coordenador disse algo como "Vocês agora estão na faculdade, não mais no cursinho ou ensino médio. Não esperem aulas 'show' e aprendam a ter autonomia na aprendizagem".

Entendo o ponto dele e concordo. Já falei aqui na coluna muitas vezes sobre o fato de que o estudante tem, sim, responsabilidade na própria aprendizagem, e que esta precisa ser um processo horizontal e não vertical.

No entanto, nada me tira da cabeça que, mesmo no melhor dos mundos, é necessário ter um professor que realmente consiga nos transmitir o conteúdo e ser um mediador entre nós e o conhecimento. Já tive docentes sensacionais: você assiste à aula sem piscar e sai dela querendo compartilhar com todos ao redor o quanto aprendeu.

Por outro lado, já tive aqueles com quem eu não conseguia entender o conteúdo de forma alguma e também docentes com os quais prestar atenção em suas aulas era um desafio gigantesco. Nessas disciplinas, confesso, tenho lacunas na aprendizagem, e o problema é quando isso ocorre com disciplinas relevantes para aquela formação específica.

Assumo minha parcela de responsabilidade e poderia sim ter estudado sozinho e de forma autônoma, mas, para mim, o papel de um professor mediando ainda é muito importante.

•        O papel do modelo atual

Reforço aqui, outra vez, que não estou culpabilizando o docente universitário. Alguém pode, claro, trazer relatos de professores que eram maus profissionais e que nem tentavam ser bons, mas isso tem em qualquer profissão e não é argumento para sustentar a tese de que o docente universitário não se importa com a aprendizagem de seus alunos.

A maioria dos professores, sim, tenta fazer um bom trabalho, mas o sistema não ajuda. Para pintar o quadro, precisamos de três ingredientes: o modelo de pós-graduação, o modelo de contratação dos docentes universitários e a formação continuada desses profissionais.

•        Pós-graduação não forma professores

O problema começa logo na pós-graduação. Para ser docente universitário no Brasil, no geral, o caminho é: graduação, mestrado e depois o doutorado.

A questão é que os programas de pós-graduação, em geral, não formam futuros professores, mas sim futuros pesquisadores. Salvo em casos específicos, não há disciplinas de didática e nem políticas que visam desenvolver essas habilidades no corpo discente.

Aqueles que decidem prosseguir na carreira acadêmica, ao assumirem vagas em universidades públicas, terão pelo menos três responsabilidades: ensino, pesquisa e extensão. Além disso, há outras atribuições.

Serão excelentes em todas as funções? Provavelmente não. E isso não é culpa do profissional, mas sim do modelo. A razão é que ele, primeiro, sobrecarrega esse profissional e, segundo, porque desconsidera as preferências e diferenças de perfis.

O terceiro ingrediente é a preparação para esses profissionais assumirem o cargo de docência, sobretudo em um cenário em que suas formações na pós-graduação, muito provavelmente, não os preparam para isso. Muitas universidades já oferecem cursos de didática e afins, mas acaba sendo algo bem pontual e não pautado em uma formação contínua.

No final, temos excelentes pesquisadores que não gostariam de ser professores, mas que precisam. Assim como profissionais que desejam fortemente a excelência nos três pilares, mas que simplesmente não conseguem, dada a grande quantidade de atribuições. Ou seja: o próprio modelo, no limite, irá enviesar o potencial de pelo menos um dos pilares.

•        O que pode mudar?

No contexto de respeitar as diferenças de perfis e preferências, seria perfeito se houvesse a possibilidade de escolher qual ou quais funções alguém gostaria de assumir ao ingressar na docência. Isso, na verdade, já ocorre em universidades de outros países. Nelas, já há o cargo apenas de pesquisador.

No Brasil, por causa da grande quantidade de universidades públicas, talvez seja uma política ousada demais, tanto no sentido de ruptura quanto no sentido orçamentário. O motivo: uma mudança dessas exigiria mais profissionais nas universidades. Infelizmente, muitas delas já fazem milagre com o recurso que recebem.

Então, a solução se pauta no pré- e no pós-ingresso na docência.

No pré, estamos falando dos programas de pós-graduação. Ainda que nem todos os discentes almejem a atuação futura como docentes, seria muito interessante que fossem implementadas, de modo obrigatório, disciplinas de didática que visassem o desenvolvimento de habilidades indispensáveis para qualquer docente.

Além disso, há margem para aumentar os projetos e bolsas, tanto no nível federal quanto estadual e até mesmo universitário, que visem proporcionar experiências práticas de docência para os discentes.

Paralelo a isso, é preciso aumentar as políticas que já existem em caráter obrigatório de formação e desenvolvimento após o ingresso na docência. Para fazerem um bom trabalho, é necessário que todos esses profissionais recebam o suporte necessário e atualizado.

 

•        O gap entre a formação universitária e o mercado de trabalho

Uma grande amiga é psicóloga formada pela USP. Lembro-me de uma conversa que tivemos há alguns anos em que ela compartilhou a grande dificuldade que muitas colegas de turma estavam enfrentando para entrar no mercado de trabalho e divulgar os próprios serviços.

A razão é que hoje em dia é muito comum que profissionais da psicologia sejam autônomos, ou seja: que estejam completamente sozinhos, desde a divulgação dos próprios serviços até a gestão das próprias carreiras e horários.

E não somente os da psicologia. O mercado de trabalho mudou bastante, e muitas áreas, sobretudo na era das redes sociais, seguem a mesma estrutura.

É possível, sim, ganhar um bom dinheiro e ser bem-sucedido, tendo um grande número de clientes/pacientes e se especializando o bastante para cobrar um valor acima do mercado, mas isso requer habilidades que a graduação simplesmente não ensina, especialmente nas universidades públicas.

Assim, uma galera se vê formada na USP, UFRJ, UFRGS, UFBA, UNICAMP e em muitas das melhores do Brasil, mas completamente perdida sobre como vender os próprios serviços e trilhar uma trajetória de sucesso no mercado de trabalho.

<><> É obrigação da universidade pública capacitar para o mercado de trabalho?

Falei sobre o caso depois com outro amigo e sugeri políticas que a universidade deveria adotar para instrumentalizar melhor os egressos para o mercado de trabalho atual. Na visão dele, esse não deveria necessariamente ser o papel da universidade pública.

A instituição é muito forte em pesquisa e nesse quesito é indiscutivelmente bem-sucedida, com pesquisadores de renome internacional, pesquisas de ponta e contribuições diretas para o desenvolvimento do país.

Sou egresso da USP e atualmente faço mestrado na UFRJ. Tenho muito orgulho da jornada que venho construindo, mas em alguns momentos, confesso, senti falta de uma maior proximidade com o mercado de trabalho de modo geral – digo, no caso, de um contato mais estreito com grandes empresas e até mesmo grandes instituições governamentais, no sentido da prática mesmo profissional.

Aí fica o questionamento, é obrigação da universidade pública estreitar esses laços e criar políticas focalizadas em preparar os discentes para a vida pós-universidade?

Obrigação é uma palavra meio forte. Não diria que é o caso e entendo quem defenda que os mundos não se misturem, mas acho sim que há margem para trabalhar essa lacuna.

<><> Lacuna entre o mundo na universidade e o mercado de trabalho

Em algum momento da minha vida eu já acreditei que um diploma da USP ou de qualquer universidade pública era uma chave-mestra para qualquer oportunidade de emprego. A realidade se mostrou diferente e vejo colegas e amigos completamente perdidos nessa fase da transição para o mercado de trabalho, enviando 100 currículos e recebendo nenhum retorno ou uma oportunidade cuja remuneração é exatamente a mesma oferecida a alguém sem qualquer tipo de formação.

Não estou, em nenhuma medida, questionando a qualidade das formações ofertadas. Os professores são excelentes, os cursos são excelentes e recebemos formações sólidas e de muita qualidade.

Minha provocação é que de um lado temos uma formação sólida e um diploma que foi bravamente conquistado, e de outro há um universo prático de trabalho onde nos encontramos completamente perdidos e que, não exageradamente,  estamos despreparados para desbravar. Tenho contato diário com universitários de letras de todo o país e vejo o quanto é incrivelmente desafiador entrar no mercado de trabalho e o quanto carecem das instruções mais básicas.

É fato que hoje em dia em boa parte das áreas, para não dizer todas, o mainstream é ser autônomo ou empreendedor, ou seja, como dito no início da coluna: focar tanto em divulgar o próprio serviço, quanto na administração e no trabalho em si. Refiro-me a áreas como: jornalismo, direito, psicologia, fisioterapia, etc.

Por outro lado, é muito mais difícil para um engenheiro de petróleo ou para um profissional da enfermagem, por exemplo, trilhar o caminho de forma autônoma. Nessas áreas, o mais seguro e tradicional ainda é entrar em alguma empresa ou instituição.

Em ambos os casos, sobretudo no primeiro, as universidades falham em auxiliar seus discentes, criando um mar de egressos com nada mais além de uma formação teórica e um diploma.

<><> Quais políticas podem ser adotadas?

Em muitos cursos há iniciativas dos próprios alunos, como as empresas júnior, que focam em treinar para uma aplicação mais prática do aprendizado do curso. Há, inclusive, relatos dizendo que isso é um grande diferencial na entrevista de emprego. Alinhado a isso, há também coordenações de alguns cursos que criam laboratórios práticos e parcerias bem bacanas nesse sentido.

No entanto, de modo geral, há margem para um trabalho mais enfático e focalizado, a nível institucional.

Seria interessante que, em áreas onde o mais comum é trabalhar de forma autônoma ou ir para o caminho do empreendedorismo, fosse adicionada na grade curricular, pelo menos, uma disciplina de preparação. Nela, poderia ser trabalhadas questões básicas de marketing: como divulgar os próprios serviços, como abordar as pessoas, como administrar a agenda e a carreira em si, como escolher os próprios preços.

Essa disciplina teria esses conceitos básicos já aplicados por área. Por exemplo: a para estudantes de direito teria especificidades que a para a galera da psicologia não teria. Afinal, são carreiras diferentes e com suas idiossincrasias.

Enfim, questões aparentemente básicas, mas que seriam de extrema importância e que ajudariam muito os discentes. Até porque, essa inserção no mercado é muito mais desafiadora para quem vem de famílias de baixa renda, e o ingresso na universidade, para eles, é sim uma grande ação para que possam ascender socialmente. É preciso ajudar esses indivíduos para além de os capacitar teoricamente, justamente para que suas formações encontrem o potencial máximo.

 

Fonte: Por Vinícius De Andrade, em DW Brasil

 

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