Trump
está nu – ou o autogolpe econômico nos EUA
Segundo
a ciência política, o autogolpe ocorre quando um líder em
exercício se move para derrubar a ordem instituída e, assim, aumentar seus
poderes – ou, eventualmente, se perpetuar no poder. Pelo menos desde os
fisiocratas, na França iluminista, sabemos da existência ambivalente dos líderes
políticos enquanto déspotas, isto é, senhor da economia. Portanto, podemos
falar em “autogolpe econômico” quanto ao que Trump fez nas últimas semanas.
O
Estado é uma máquina econômico-política, cujo chefe aparece simultaneamente
como rei ou presidente e déspota (o que não implica, a princípio, juízo de
valor negativo) o que, no caso americano, se amplia ao mundo inteiro. Os
Estados Unidos ganharam muito com a globalização, mas a distribuição social do
butim se tornou negativa, atraindo descontentes numerosos, mas eles estão sendo
manobrados pela mesma oligarquia que lhes explora.
O que
está em jogo, portanto, é algo que a velha dialética materialista capta muito
bem. A hegemonia americana, sob o regime da globalização, se sustenta na
realocação de capitais para o Sul e o Leste, a qual causou a ascensão de novos
atores: China, Rússia, Índia, talvez o Brasil etc. O sistema do dólar gestaria,
no longo prazo, uma nova ordem multipolar, que teria lugar para os Estados
Unidos, mas não para seu protagonismo, e se superaria.
Nesse
horizonte de perda de protagonismo dos Estados Unidos, sua oligarquia une dois
fatos sem conexão: a crise atual, política e social, com o processo de ascensão
da China e dos emergentes, como se isso fosse a causa do declínio relativo da
qualidade de vida. Trump, portanto, busca unir o país contra o inimigo externo,
mas na prática defende os privilégios da oligarquia, não garante nenhum ganho
vindouro aos excluídos. Mas ele precisa de um ardil.
Chega a
ser irônico, mas em tempos de ameaça americana contra a Groenlândia, é um
dinamarquês – ou melhor, o escritor nacional da Dinamarca, Hans Christian
Andersen –, quem nos fornece pistas sobre o que passa: A roupa nova do
rei, seu clássico, trata de quando velhacos vendem ao monarca um tecido
que só os inteligentes podem ver, quando, na verdade, não há tecido
algum – uma autoilusão semelhante ao que vemos aqui.
·
Trump,
o veneno e o remédio
Os
Estados Unidos precisam de uma revolução, não de tarifas, disse um jovem chinês no Tik Tok. Faz
sentido. Donald Trump liderou talvez o maior cavalo de pau econômico do seu
país, mas os resultados das últimas semanas apontam, apenas, para mais
ansiedade global, em um mundo entrando de cabeça no caos: bolsas de valores
caindo e mercado de títulos da dívida americana com juros crescentes, gerando
mais incertezas.
As
altas tarifas de Trump, respondidas com retaliações simétricas pela maior parte
dos países do globo, geraram um efeito no mercado de títulos da dívida do país.
Com a falta de dólares no mercado, não foram poucos atores que liquidaram
títulos de 10 e 30 anos da dívida americana, gerando, consequentemente, uma
alta dos juros sobre eles – com uma pressão sobre os juros de curto prazo. A
saída de capitais, por outro lado, derrubou o dólar.
Certamente,
tarifas módicas poderiam ter gerado protestos, mas seriam pagas enquanto o
comércio transcorreria de forma relativamente normal – com o possível efeito de
valorizar o dólar e, por consequência, derrubar as taxas de juros, o que
poderia ser a base para o boom do crescimento que ele tanto
anseia, embora não derrubassem o déficit comercial no médio ou longo prazo.
Movido
por maus conselheiros, Trump ignorou que a diferença entre o veneno e o
remédio é a dose – como dizia Paracelso, o alquimista. Tudo isso
demonstra uma obsessão cármica do atual governo americano sobre os juros, como
se vê pela titânica briga de Trump com o presidente do Banco Central americano,
Jerome Powell, que tem sido ignorada no Brasil. De tanto mirar em juros baixos,
eles passaram a subir.
O
leitor atento deve notar que são por razões parecidas que Trump mira o fim da
guerra na Ucrânia: petróleo mais barato e, por conseguinte, espaço para
pressionar Powell a reduzir os juros – e, assim, conseguir fazer a economia
crescer mais e mais rápido como uma forma de tomar impulso para as eleições
legislativas de 2026, que renovam inteiramente a Câmara dos Deputados e cerca
de um terço do Senado dos Estados Unidos.
Em
outras palavras, 2026 é a eleição da vida de Trump, onde ele poderia conseguir
a maioria para mudar a Constituição dos Estados Unidos e obter, por exemplo, o
direito à nova reeleição – que lá é vedada, mesmo de forma não contínua –, além
de mudanças institucionais que ele mira. Para isso, em tese, precisaria
entregar mais crescimento econômico, mas pelo jeito trocou os pés pelas
mãos.
·
A
bolsa de horrores
Apesar
de haver uma crença arraigada de que Trump tem por alvo a “economia real”, isso
possivelmente ignora que a preocupação do presidente americano seja a roleta
russa da bolsa de valores. Com anos de valorização acionária sem tanta relação
com a realidade, o perigo disso sempre esteve nos investidores perceberem que
as joias da bolsa – as chamadas big techs – poderiam ter pés
de barro, levando a quedas e desinvestimentos.
A
fragilidade dessa realidade ficcional estimulou os cabeças das big
techs a apoiar Trump, buscando esquemas protecionistas que fornecessem
a blindagem aos crescentes ganhos chineses – que fizeram muito com pouco, como
no rumoroso caso da Deep Seek, a inteligência artificial chinesa
com um custo-benefício excelente, acertando precisamente as ações das big
techs e suas gigantescas captações no mercado acionário.
O
grande problema é que as mesmas big techs são favorecidas por
uma cadeia global de produção e, também, de consumidores. Quando Trump anunciou
suas mega tarifas e, em seguida, colheu um pânico nos mercados, ele teve de
voltar atrás e suspender a ameaça, mantendo apenas aquelas voltadas contra a
China, em relação às quais teve de fazer um novo reparo dias depois: excetuar
os produtos eletrônicos vindos do país asiático.
A explicação
do remendo feito pelo governo americano é básica: as tarifas altas e
abrangentes contra a China atingiriam corporações americanas com fábricas
naquele país – como, por exemplo, a Apple, ou mesmo (e isso é também bastante
irônico) a Tesla de Elon Musk, que hoje protesta envergonhadamente contra o
tarifaço, enquanto outras figuras assumem o protagonismo sobre o atual governo.
Aí
chegamos ao ponto culminante: Trump se baseou em figuras como Peter Navarro –
um notório charlatão que cita a si mesmo, sob um pseudônimo que é o
anagrama do seu sobrenome, nos seus livros sobre economia –, ou Scott
Bessent – um antigo colaborador de George Soros no fundo de hedge que
quebrou o Banco da Inglaterra nos anos 1990 –, os quais lhe venderam a
estratégia que só os inteligentes poderiam ver.
Ambos,
Navarro e Bessent, são figuras pessoalmente muito diferentes, mas vendem a
Trump as ilusões que ele quer ouvir, em mais um caso da ambição fatal da vítima
de estelionato. No jogo, com piscadas recorrentes e queda na popularidade de
Trump, abreviando a lua de mel, eles podem ter uma batalha morro acima difícil
demais para lidar, agora com Wall Street pouco feliz com suas travessuras.
·
A
China irredutível e o clímax do caos global
Se nos
últimos anos Joe Biden manteve a guerra comercial de Trump em fogo brando
contra os chineses, mas atraindo os europeus para junto de si, as medidas
atuais mudaram o curso dos eventos. Os europeus, agora atingidos, ensaiaram uma
reaproximação com os chineses, marcando um duro golpe em Trump, que esperava
uma subserviência aos seus ditames. O presidente americano não deveria ter sido
surpreendido por isso, mas foi.
Na
China, com uma unidade interna muito grande em torno de si – coisa que Trump
não tem e, inclusive, vê evoluir em seu desfavor –, Xi Jinping
recebeu o premiê espanhol Pedro Sánchez, enquanto seu primeiro-ministro manteve
um encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – ela
em um surpreendente giro destoante aos Estados Unidos –, além de ser recebido
calorosamente em um giro pela Ásia.
Como pontua o insuspeito
economista Peter Schiff, ele próprio um republicano seguidor da Escola
Austríaca: “A China não precisa do dólar americano. Precisamos que a China
precise do dólar” – o que é um argumento verdadeiro, mas aponta para a grande
questão aqui: o sistema do dólar é, em grande medida, sustentado pela
colaboração na outra ponta – e isso se sustenta pelo que apontamos no início,
isto é, de como Pequim se utiliza virtuosamente do dólar para se alavancar.
O
paradoxo dessa história é que o sistema do dólar permitiu aos Estados Unidos
ganhos exorbitantes, principalmente depois do fim da Guerra Fria, com ganhos
relativos inclusive sobre seus sócios ricos. Mas dependeu de fortalecer atores
do mundo emergente, que se enriqueceram e se reorganizaram, colocando em xeque
o próprio sistema monetário internacional, que inclusive é dependente deles.
A
ruptura sino-americana pode gerar efeitos nocivos para a China, mas é ela que
tem a produção, pode contornar a falta de consumo com a descoberta de novos
mercados ou mesmo medidas de estímulos para seu mercado interno. Os Estados
Unidos é que possuem a demanda, mas não a produção – não têm condições de
produzir no preço ou quantidade necessários, o que só poderia mudar no
longuíssimo prazo, como observa Isabella Weber.
No
momento atual, a exemplo da fábula de Andersen, Trump desfila despido, enquanto
na sua imaginação ele estaria trajado com a estratégia que só os inteligentes
entendem – isso depois de uma criança, na sua pureza, ter revelado à multidão
que o rei está nu. Tudo está à mostra. E sem o segredo e o sagrado,
o poder não se sustenta. Trump volta ao tempo dos Luíses da França e retoma o
mercantilismo, agora como estágio senil do neoliberalismo.
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Desafios à Harvard e a Suprema corte: a semana de Trump.
Por Simone Mateos
Donald
Trump escolheu novos adversários, além da China. Agora a mira está na
Universidade de Harvard e a Suprema Corte.
A
aposta para submeter Harvard começou na semana anterior com exigências contra a
instituição e até ameaças financeiras. Primeiro, Trump ameaçou com o
congelamento das verbas federais, logo acabar com as isenções fiscais de
Harvard e impedi-la de aceitar estudantes estrangeiros.
Dessa
vez, porém, o presidente norte-americano bateu de frente com o poder
institucional da universidade mais respeitada dos EUA e uma das mais
conceituadas mundialmente
Mais
antiga que o próprio país, Harvard é também a universidade mais rica do mundo.
Seu fundo patrimonial de US$ 53 bilhões supera o PIB de uma centena de países.
Até agora, o departamento de Educação dos EUA notificou ao menos 60
universidades de que estavam sendo investigadas por tolerar suposto
antissemitismo em seu campus. Segundo reportagem do New York Times, assessores de Trump
teriam sugerido que “derrotar” uma universidade de alto nível seria um bom
exemplo para as outras. Mais de 800 professores de Harvard assinaram uma carta
instando a universidade a resistir.
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Um tiro no pé
Na
terça-feira (15/04) à noite, Trump decidiu iniciar um novo round contra seu
inimigo preferido, a China. Anunciou que criaria um novo imposto sobre
semicondutores e mais restrições às exportações de chips para o país asiático.
O objetivo é dificultar o desenvolvimento de inteligência artificial por seu
principal concorrente na área. Mas o anúncio teve o efeito imediato de um tiro
no pé: derrubou as ações norte-americanas mais do que quaisquer outras no
mundo.
O dólar
voltou a cair, o ouro teve alta recorde e o presidente do banco central dos
Estados Unidos previu aumento da inflação e queda no crescimento.
A
empresa mais prejudicada, a norte-americana Nvidia, líder global em
semicondutores e chips, viu suas ações despencarem 6,87% na quarta-feira
(16/04) e enviou seu presidente executivo à China na quinta-feira (17/04).
A
companhia, que desenvolve vários produtos para Pequim, estima que as novas restrições lhe
custarão US$ 5,5 bilhões.
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Chacotas às decisões da Suprema Corte
A
semana também foi marcada pelos desafios de Trump na ordem judiciária. Depois
três meses descumprindo ordens de instâncias inferiores, o presidente decidiu
medir força com a Suprema Corte.
O
embate começou pela deportação indevida de Kilmar Ábrego Garcia, salvadorenho
protegido contra deportação desde 2019. Ele foi mandado, junto com 200
venezuelanos, para uma prisão de segurança máxima em El Salvador, sem aviso
prévio, direito à defesa ou acusação formal. E isso a despeito da deportação em
massa ter sido proibida pouco antes por um tribunal.
O
Supremo Tribunal determinou que o governo facilitasse o retorno de Garcia.
Trump admitiu o erro, mas disse que não pode fazer nada.
Após
sorrir na Casa Branca ao lado do presidente de El Salvador, Nayib Bukele,
quando este dizia à imprensa que não podia devolver Garcia. Na sexta (18/04), o
governo republicano publicou nas redes sociais da Casa Branca um meme debochado
dizendo que Garcia não voltaria nunca.
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“Os Estados Unidos não são vítimas da China. São vítimas
do capitalismo”, diz André Jacobina
Em
entrevista concedida ao jornalista Leonardo Attuch, editor da TV 247, o
historiador André Jacobina, do canal A Nova Máquina do Tempo, defendeu a tese
de que os Estados Unidos estariam vivendo uma fase de decadência semelhante à
de outros impérios ao longo da história. “Todos os impérios viveram sua queda.
É o que está ocorrendo agora nos Estados Unidos”, afirmou.
Para
justificar sua análise, Jacobina citou o economista Richard Wolff como uma de
suas maiores influências. De acordo com ele, a atual disputa comercial dos
Estados Unidos contra a China tem sido usada como pretexto para justificar a
desindustrialização norte-americana, quando, na verdade, a causa estaria na
própria lógica capitalista.
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“Os
Estados Unidos não são vítimas da China. São vítimas do capitalismo. Os
capitalistas abandonaram o trabalhador estadunidense e buscaram custos
menores”, argumentou.
Ainda
segundo Jacobina, tanto os partidos Republicano quanto o Democrata contribuíram
para o processo de desgaste da economia e da indústria norte-americanas. “Nos
últimos cinquenta anos, a economia americana esteve em guerra contra a classe
trabalhadora, contra os sindicatos. Isso aconteceu não apenas nos Estados
Unidos, mas lá ocorreu de forma mais explícita, com a compra escancarada dos
políticos”, explicou. Ele lembrou também que Bill Clinton foi “um grande
estimulador da globalização e, portanto, da desindustrialização dos Estados
Unidos”.
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Troca do trabalhismo pelo identitarismo
Jacobina
destacou que os democratas, ao deixarem de lado as pautas trabalhistas, acabaram
se concentrando em temas identitários, como os direitos reprodutivos, o que
teria afastado o apoio dos sindicatos e de grande parte da classe trabalhadora.
Esse fenômeno, diz ele, abriu espaço para a ascensão de Donald Trump, eleito em
2016 com o respaldo popular e, segundo Jacobina, reeleito em 2024 também com o
apoio dos trabalhadores que se sentiram abandonados pelo outro partido.
O
historiador mencionou também o economista Yanis Varoufakis, que aponta a
desvalorização do dólar como possível caminho para os Estados Unidos
enfrentarem a competição chinesa. “A China tem uma saída para as tarifas, que
os Estados Unidos não têm, que é aumentar o poder de compra da sua população”,
ressaltou.
Por
fim, Jacobina descreveu que, diante do “fracasso do neoliberalismo”, muitos
norte-americanos começam a buscar alternativas que retomem princípios da
social-democracia, incorporando elementos que já circulam em correntes mais à
esquerda. “Temos que olhar para o sistema atual e chegar à conclusão de que o
capitalismo não é o destino da humanidade. As ideias socialistas estão
circulando mais porque há o anseio por uma outra alternativa. O socialismo é a
sombra do capitalismo, e o capitalismo está mostrando todos os limites da sua
experiência”, concluiu.
Fonte:
Por Hugo Albuquerque, em Opera Mundi/Brasil 247

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