sábado, 21 de dezembro de 2024

Como celebração pagã na Roma Antiga deu origem à festa de Natal

O Império Romano deixou como legado ao mundo ocidental, entre muitas coisas, os princípios do ordenamento jurídico praticado em dezenas de países, as raízes de línguas como o espanhol, o francês ou o português, e até a lógica com que operam os Corpos de Bombeiros nas cidades.

Mas talvez haja um elemento menos conhecido desse legado: a festa do Natal.

Em uma das principais celebrações do cristianismo, hoje marcada por árvores luminosas, papai noel, manjedouras e reuniões familiares, é difícil ver qualquer vestígio da cultura romana.

Principalmente porque, por mais de cinco séculos, o Império Romano era um povo que acreditava em múltiplas divindades.

Mas qual é a ligação entre o Natal que conhecemos e a Roma Antiga?

A resposta a essa pergunta se refere a uma celebração romana em particular: a Saturnália, o rito com o qual o inverno era recebido no Império Romano.

"A escolha de 25 de dezembro como a data do nascimento de Jesus não tem nada a ver com a Bíblia; ao contrário, foi uma escolha bastante consciente e explícita de usar o solstício de inverno para simbolizar o papel de Cristo como a luz do mundo", diz Diarmaid MacCulloch, professor de história da Igreja na Universidade de Oxford, no Reino Unido, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

"Os costumes festivos e desregrados da Saturnália na mesma época do ano naturalmente migraram para a prática cristã, uma vez que no século 4° o cristianismo estava se tornando mais proeminente na sociedade romana. As novas crenças seriam mais bem aceitas se não entrassem em conflito com antigos costumes não cristãos", acrescentou.

Mas quando ocorreu esse encontro entre os ritos romanos e as celebrações cristãs e como chegaram aos nossos dias?

·        Saturnália

A Saturnália era um festival realizado pelos romanos antigos para celebrar o que chamavam de "renascimento" do ano, para marcar o solstício de inverno no calendário juliano (prevalente no império romano e na Europa durante séculos) que, curiosamente, era celebrado em 25 de dezembro.

Porém, a festa começava oito dias antes, em 17 de dezembro, quando as normas que ordinariamente regiam a sociedade eram invertidas: os homens se vestiam de mulher e os senhores se vestiam de servos.

Mas começaram então as semelhanças com o Natal que conhecemos nos dias de hoje: as casas eram decoradas com folhagens, velas eram acesas e... presentes eram trocados.

"Essa celebração era realizada em homenagem ao deus Saturno (daí o nome) e sempre foi caracterizada pelo relaxamento da ordem social e pelo clima de carnaval", diz a historiadora Marguerite Johnson, da Universidade de Newcastle, na Austrália, em entrevista à BBC News Mundo.

Johnson enfatiza que a celebração em homenagem a Saturno no início do inverno tinha um significado: Saturno era a principal divindade dos romanos.

"Ele era o deus do tempo, da agricultura e das coisas sobrenaturais. Como os dias encurtavam e de alguma forma a terra morria de forma simbólica, era necessário que o deus do tempo e da comida ficasse feliz", explica Johnson.

E como parte dessa tradição de agradar a divindade e outras pessoas, os presentes foram introduzidos.

"Como parte das festividades, os romanos trocavam presentes: velas, chinelos de lã, chapéus e até meias. E o faziam entre famílias, enquanto os escravos desfrutavam de tempo livre."

Mas a historiadora lembra que, além da festa da Saturnália, os romanos tinham outra celebração importante: a do "nascimento do sol invicto ou não conquistado" (Natalis Solis Invicti), que era celebrado todo dia 25 de dezembro, segundo diversos documentos dos tempos romanos.

"No almanaque do século 4, o Calendário de Filocalus, menciona-se uma celebração do Invictus em 25 de dezembro, que é provavelmente uma referência ao 'Sol Invicto'", diz Johnson.

"E é nesse documento que se faz a primeira menção que 25 de dezembro é o nascimento de Jesus", acrescenta a historiadora.

·        Dezembro

A verdade é que, no fim da era romana, o Natal já fazia parte do calendário romano.

Foi um processo gradual, segundo os historiadores, que teve a ver com uma hibridização ou amálgama de tradições.

Em meados do primeiro século, os cristãos já haviam chegado a Roma e começaram a moldar a sociedade do império.

"À medida que o cristianismo se tornou mais arraigado no mundo romano e a antiga religião politeísta ficou para trás, os cristãos se adaptaram a esses ritos estabelecidos e os tornaram seus", observa Johnson.

"É muito plausível que tenham escolhido essa festa pela sua relação com o renascimento, mas dessa vez com o renascimento de Cristo, a quem ao mesmo tempo foi confiada a missão de os redimir e conduzir à vida eterna", acrescenta.

Já no século 4° tudo passou a estar escrito: entre 320 e 353, o Papa Júlio 1º fixou a solenidade do Natal em 25 de dezembro, talvez como estratégia para converter os romanos.

No ano de 449, o Papa Leão 1º estabeleceu a data para a comemoração do nascimento de Jesus como uma das principais festas da Igreja Católica, e finalmente o Imperador Justiniano em 529 a declarou feriado oficial do império.

Então, começou-se a supor que Jesus havia nascido em dezembro. No entanto, no século 15, o historiador italiano Polidoro Virgilio começou a notar as semelhanças entre vários ritos pagãos e a celebração do Natal.

"Polidoro Virgilio apontou a conexão entre a tradição predominantemente inglesa, 'The Lord of Misrule', que ocorria no dia de Natal, e o costume equivalente que ocorria durante a Saturnália. Ambos envolviam senhores e servos ou escravos trocando papéis por um dia", observa Johnson.

Desde então, busca-se a data exata do nascimento de Jesus, que alguns historiadores situam em meados de março ou início de abril.

Mas a influência é tão forte que continuamos a comemorar com presentes, festas e reuniões familiares no dia 25 de dezembro.

 

¨      Os cristãos que travaram guerra contra o Natal

Houve um tempo em que a Inglaterra resolveu tomar medidas contra uma atividade considerada "anticristã".

É que, todo fim de ano, uma atmosfera "indecente" tomava conta do povo, e algo precisava ser feito, segundo a visão da época.

Os excessos do fim de ano seriam incompatíveis com o estilo de vida cristão.

Tavernas se enchiam de multidões alegres, o comércio fechava mais cedo, famílias e amigos se reuniam para se esbaldar em suntuosas ceias. Casas eram decoradas com plantas comemorativas, e a cantoria na rua ia até altas horas.

Era, na visão de muitos, pecaminoso.

<><> "Os verdadeiros cristãos"

Em 1644, os puritanos ingleses – cristãos protestantes que acreditavam em regras muito rigorosas – decidiram abolir o Natal.

O governo puritano o considerava um festival pagão, por não enxergar justificativas bíblicas para 25 de dezembro ser considerado a data do nascimento de Jesus Cristo.

Todas as atividades natalinas foram proibidas na Inglaterra até 1660.

No dia 25 de dezembro, lojas e mercados eram obrigados a abrir, e muitas igrejas tinham que fechar as portas. Fazer uma festa de Natal era ilegal.

A proibição não foi facilmente aceita. Houve protestos em defesa da liberdade de beber, ficar alegre e cantar músicas. E, apesar da resistência, a legislação anti-Natal só foi revertida quando Charles 2º se tornou rei.

Mesmo depois da queda da lei, muitos puritanos continuaram a tratar a festa natalina como uma aberração pagã.

<><> Malvisto na América

Ceias e comemorações também eram muito malvistas por puritanos da América do Norte.

E, sim, também houve proibições à festividade em algumas das colônias que hoje fazem parte dos Estados Unidos.

Em Massachusetts, pelos mesmos motivos que na Inglaterra, o Natal foi banido entre 1659 e 1681.

<><> A questão da data

Não há, de fato, um consenso sobre a data exata em que Jesus nasceu.

Alguns teólogos defendem que poderia ser na primavera, já que há referências à pastores vigiando seus rebanhos no campo aberto – é provável que no inverno eles buscassem abrigo.

Também poderia ser no outono, se os pastores estivessem vigiando os animais na época de acasalamento.

Há pistas, mas nenhuma data específica nos é fornecida pela Bíblia.

<><> Rituais pagãos

Desde a época do Império Romano, existia uma tradição pagã de se festejar intensamente durante um período no fim de dezembro.

Era simplesmente um festival de colheita, quando se trocavam presentes, os lares eram decorados e havia muita comida. Beber muito também era parte do espírito da festa.

De acordo com o historiador Simon Sebag Montefiore, o cristianismo inicial tinha que competir com a diversão que as tradições pagãs proporcionavam socialmente.

Os romanos gradualmente abandonaram o paganismo e adotaram o cristianismo. Nessa transição, o calendário cristão acabou se apropriando do calendário pagão.

Durante um tempo, os romanos comemoraram as duas tradições. No fim do século 4, os rituais pagãos e cristãos coexistiam por 14 dias em dezembro.

Mas não sem algum conflito – e, no fim, a festa cristã saiu vitoriosa.

<><> "Limpeza"

A guerra ao Natal no século 17 foi uma tentativa dos puritanos de "apagar" o que eles consideravam vestígios de uma herança pagã.

Mas é evidente, pelo tamanho das comemorações natalinas no mundo, que eles perderam essa briga.

Quando cristãos ao redor do mundo comem uma ceia ao lado de uma árvore decorada e tomam uma taça de vinho, dão continuidade a uma tradição que tem muito mais que 2 mil anos.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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