Matta Karp: ‘Está acontecendo novamente’
Está acontecendo
novamente.” Esta manhã, com Donald Trump no comando de outra vitória
presidencial esmagadora, as palavras terríveis de Twin Peaks, de David
Lynch, caem como chumbo dentro de muitos estômagos. Com um clímax de uma
campanha frenética e o triunfo que é cruel e corrosivo na sociedade
norte-americana, a segunda eleição de Trump é um choque. E, no entanto, como um
acontecimento na história contemporânea, dificilmente pode ser vista como uma
surpresa.
Primeiro e mais
prosaico, há a inflação. Os EUA realmente elegeram um ditador porque Corn
Flakes chegou a US$ 7,99 no supermercado? Leia essa frase novamente e ela não
parece tão absurda.
Em um nível mais
profundo, 2024 nos ensinou uma lição difícil: em uma sociedade global definida
pelo consumo em vez da produção, os eleitores detestam aumentos de preços e
estão prontos para punir os governantes que os presidem. No maior ano eleitoral
da história moderna, com bilhões votando em todo o mundo, os governantes
levaram uma surra, à esquerda, à direita e ao centro: os conservadores na
Grã-Bretanha, Emmanuel Macron na França, o Congresso Nacional Africano na
África do Sul, o BJP de Narendra Modi na Índia e o kirchnerismo na Argentina no
outono passado. Hoje, a inflação pós-pandemia, agravada pelas guerras na
Ucrânia e no Oriente Médio, desceu a ripa em mais um governo.
Nos EUA, a posição dos
democratas era duplamente terrível. Ao longo da última década, o padrão
definidor da política nacional tem sido o desalinhamento de classes: uma vasta
migração de eleitores da classe trabalhadora para longe do Partido Democrata,
acompanhada por uma enxurrada de eleitores para longe dos republicanos. Esse
foi o fator decisivo em 2016, quando Hillary Clinton foi derrubada pelos mesmos
proletários do Rust Belt que elegeram Barack Obama. E continuou, mais
silenciosamente, mas com movimento descontrolado, nos anos em que os democratas
compensaram suas perdas ganhando mais profissionais suburbanos, em 2018, 2020 e
2022.
A campanha de Kamala
Harris foi uma personificação dessa mudança. Ela própria fez uma campanha
cautelosa, mas principalmente competente, movendo-se para a direita na
fronteira, como os eleitores pareciam exigir, atacando Trump sobre o aborto e —
pelo menos em suas mensagens pagas — cortejando os eleitores da classe
trabalhadora com um foco no pão com manteiga. Mas, no final, essas pequenas
decisões táticas foram sobrepujadas pela natureza alterada do Partido Democrata
como um todo.
Mesmo quando a própria
Harris tentou evitar a política identitária tóxica de Hillary 2016, ela foi
ultrapassada pelo “partido sombra” — uma constelação de ONGs, organizações de
mídia e ativistas financiados por fundações que agora constituem a base institucional
dos democratas. Assim, “White Dudes For Harris” e seus semelhantes, como o
esforço para promover os Never Trump Republicans na mídia e as tentativas
embaraçosas de conquistar homens negros com promessas de maconha legal e
proteções para investimentos em criptomoedas, não tiveram o resultado esperado.
Essas intervenções do “partido sombra” na corrida ajudaram a levantar somas
históricas de dinheiro — mais de US$ 1 bilhão em apenas alguns meses — mas
também marcaram Harris como propriedade de uma classe profissional educada,
focada inteiramente na “democracia”, direitos ao aborto e identidade pessoal,
mas amplamente desinteressada em questões materiais.
Nas últimas semanas da
campanha, Harris claramente mudou na mesma direção. Em comícios e entrevistas,
ela se concentrou no próprio Trump como uma ameaça mortal às instituições
existentes. Ela percorreu os estados indecisos com Liz Cheney, rotulando o ataque
verbal de Trump a Cheney como um incidente “desqualificador”. Em sua turnê
final pelo Centro-Oeste, ela pausou seus próprios discursos para colocar clipes
de Trump, parecendo acreditar que o ex-presidente de alguma forma se derrotaria
com suas próprias palavras.
Funcionou, no sentido
de que Harris conquistou eleitores com diplomas universitários por 15%, uma
margem maior do que em 2020. Os eleitores que ganham mais de US$ 100.000 por
ano se voltaram para os democratas em números recordes. Os republicanos moderados
nos subúrbios, notoriamente invocados por Chuck Schumer há 8 anos, continuam
chegando à coalizão democrata. Parece servi-los bem o suficiente nas eleições
de meio de mandato, mas não tanto nas disputas mais acirradas. Este ano, os
democratas de Liz Cheney foram ofuscados por uma vasta mudança da classe
trabalhadora em direção a Trump, em muitos sabores: eleitores rurais, eleitores
de baixa renda, eleitores latinos e eleitores negros do sexo masculino, do
Texas a New Hampshire. Mesmo com os especialistas progressistas saudando a
disparidade de gênero pós-Dobbs, gabando-se de que os republicanos se
arruinaram com as eleitoras por uma geração, as mulheres sem ensino superior se
voltaram para Trump em 6%.
Acima de tudo, Harris
e os democratas falharam em atingir os eleitores que têm uma visão negativa da
economia — não apenas os partidários republicanos, mas dois terços do
eleitorado de ontem. Com seu modesto pacote de iniciativas econômicas, unidas
ocasionalmente a uma retórica populista sem entusiasmo, é uma surpresa que ela
não tenha conseguido convencer esses eleitores frustrados? Quase 80% dos
eleitores que listaram a economia como sua principal questão votaram em Trump.
Quanto alguns meses de propaganda direcionada podem fazer, em comparação com um
partido paralelo democrata mais amplo que vem alardeando a saúde da economia —
baixo desemprego, crescimento salarial e um mercado de ações em expansão — há
mais de um ano? Se os eleitores não acreditavam que Harris tinha um plano real
para melhorar suas vidas, materialmente, é difícil culpá-los.
Por fim, é justo
acrescentar que Harris enfrentou uma tarefa excepcionalmente difícil nesta
eleição. Por mais de um ano, um presidente democrata já impopular não teve
capacidade física para se comunicar com o público. No entanto, o “partido
sombra” ficou com Joe Biden, o apoiou, gritou com raiva para qualquer
dissidente que questionasse se suas habilidades políticas — sem mencionar seu
julgamento, sobre Israel e Palestina e outros lugares — haviam entrado em
declínio terminal.
Depois que Biden
finalmente teve um mau desempenho no debate, os democratas ainda levaram um mês
para tirá-lo da chapa. Com todos os memes celebrando Nancy Pelosi por seu papel
“implacável” neste esforço de última hora, poucos se preocuparam em notar a irresponsabilidade
da liderança democrata que permitiu que Biden durasse tanto tempo. Harris,
portanto, entrou na corrida com uma campanha improvisada, já muito atrás nas
pesquisas. Escolhida para se juntar à chapa de Biden em 2020 como senadora da
Califórnia em um primeiro mandato, ela própria não tinha experiência em
derrotar republicanos em uma eleição estadual competitiva.
Entre o hexágono
global da inflação, o lento avanço do desalinhamento e o fiasco de Biden, as
perspectivas de uma vitória republicana em 2024 sempre foram grandes. O próprio
Trump pareceu reconhecer isso melhor do que os especialistas, conduzindo uma
campanha arrogante que descartou muito de seu “populismo” retórico para abraçar
bilionários como Elon Musk. Sua arrogância foi recompensada com outro mandato.
Como a maioria dos segundos mandatos, é provável que termine em decepção para
seus apoiadores, desperdiçados em guinadas políticas impopulares, uma onda de
escândalos e muito tempo em campos de golfe. Mas até que os democratas consigam
encontrar uma maneira de reconquistar uma grande parcela dos eleitores da
classe trabalhadora, os sucessores de Trump serão os favoritos na próxima
eleição presidencial, de qualquer maneira.
¨
A vitória de Trump. Por Jeferson Miola, em seu blog
Donald Trump desbancou
as pesquisas eleitorais, a mídia em geral e as expectativas de uma eleição
acirrada.
Ele acabou vencendo a
eleição no voto popular e no colégio eleitoral, o que contrariou todas as
previsões de violência política e conflito social em caso de derrota dele.
Trump foi eleito
apesar das –ou devido às– suas propostas aberrantes, dos seus negacionismos
absurdos e dos retrocessos civilizatórios que defende.
Ele foi absolutamente
transparente. Daqui a alguns meses, durante seu governo, quando suas políticas
serão implementadas, ninguém poderá alegar que não sabia o que poderia
acontecer.
Trump venceu inclusive
entre eleitores negros e latinos, apesar da campanha radical contra imigrantes,
tratados como criminosos e causas de todos os males do país.
Ao contrário de Kamala
Harris, penalizada em Michigan pela comunidade árabe-americana crítica à
participação da Administração Biden no genocídio palestino, Trump não foi
prejudicado pela reiteração permanente de sua retórica racista e xenófoba.
A vitória de Trump
também desdiz o mantra de que a situação econômica favorável do país é quase um
passaporte seguro para o sucesso eleitoral. A sensação econômica concreta das
pessoas falou mais alto que o medo dos desatinos dele.
Apesar dos índices
econômicos exitosos do governo Biden/Kamala –desemprego baixo, crescimento
salarial e aumento do PIB–, Trump conseguiu capturar o mal-estar econômico
“invisível”, porém sentido pela maioria da população, em especial a classe
trabalhadora empobrecida.
Trump diz que ganhou
um “mandato poderoso”. E isso não pode ser considerado um exagero. O Partido
Republicano conquistou a maioria no Senado e se encaminha para formar maioria
também na Câmara de Deputados/Representantes.
Além disso, Trump
conta com apoio majoritário dos juízes da Suprema Corte, que há alguns meses
concederam a ele imunidade presidencial em relação a crimes cometidos na
presidência dos EUA.
Controlando o
Departamento de Justiça, Trump conseguirá anular os processos criminais
promovidos pelo Executivo e nos quais é réu, além de interferir no sistema de
justiça para reverter condenações, como no caso da tentativa de suborno da
atriz pornô.
A vitória de Trump é
uma notícia ruim para a Ucrânia e para os países vassalos da OTAN, mas é acima
de tudo aterrorizante para o povo palestino, com riscos de expansão da agressão
nazi-sionista no Irã.
A vitória de Trump
fortalece a força-movimento fascista e de extrema-direita no mundo e aumenta o
poder desregulado e desmensurado das big techs, que são o motor de
tração da ultradireita, em especial a plataforma “X”, do bilionário Elon Musk,
que o presidente eleito considera “um cara incrível”, “uma nova estrela”.
Trump elegeu como vice
um ultradireitista jovem e radicalizado ideologicamente. James David Vance, o
JD Vance, de 40 anos, significa ao mesmo tempo a renovação geracional e a
alternativa de sucessão política do extremismo.
A eleição de Trump
afeta muitos interesses mundiais e, também, brasileiros, como o foco central da
nossa política externa na emergência climática, em relação ao que o presidente
eleito cultiva uma visão negacionista e conspiracionista.
O protecionismo que
Trump adotará na economia, sobretudo em relação à China, causará aumento de
preços internos e, igualmente, da inflação, e poderá causar o aumento da taxa
de juros internos pelo FED, com efeitos para o Brasil.
A rivalidade
truculenta com os BRICS e a China impactará a economia brasileira, que poderá
perder espaço no mercado estadunidense, seu segundo parceiro comercial, devido
à imposição de altas taxas de importação.
Isso poderá provocar
aumento da pressão sobre os juros devido à dependência estrutural do país de
capitais especulativos, o que é um defeito congênito do Plano Real.
A segunda metade do
governo Lula não poderia se desenrolar em cenário mais preocupante, com Trump
nos EUA e Milei na Argentina – que, aliás, será fortemente apoiado pelo FMI na
consecução das suas políticas ultraliberais destrutivas.
Independente da
relação entre as presidências do Brasil e dos EUA, que, supõe-se, de parte de
Lula terá uma postura institucional, a conexão política e de amizade de Trump
com lideranças fascistas e ultradireitistas do Brasil, tanto civis como
militares, será fonte de dores de cabeça e de preocupação em relação à eleição
presidencial de 2026.
Fonte: Tradução de Caue
Seigner Ameni, para Jacobin Brasil
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