sexta-feira, 29 de novembro de 2024

João Filho: Forças armadas viraram fábrica de terroristas – e é preciso aniquilar o golpismo

Tio França não foi o único a querer matar Alexandre de Moraes. Bolsonaro e o seu núcleo de militares golpistas também quiseram. Além do ministro, o presidente eleito e seu vice também estavam na mira da gangue golpista.

As provas colhidas pela Polícia Federal são fartas, robustas e não deixam pedra sobre pedra. A tentativa de golpe não só aconteceu como pretendia-se um banho de sangue.

Além do ex-presidente, outras 36 pessoas foram indiciadas pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado, abolição do estado democrático de direito e organização criminosa.

Os investigadores não têm dúvida de que, sob o aval do então presidente, os militares planejaram os assassinatos de autoridades e mobilizaram agentes públicos das Forças Armadas para cometer os crimes.

O plano, batizado de Punhal Verde e Amarelo, foi discutido com pelo menos 35 militares, muitos deles de alta patente. Tudo foi planejado em reunião na casa do general Braga Neto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice de Bolsonaro, e o documento com os detalhes foi impresso por uma impressora do Palácio do Planalto.

Bolsonaro avisou aos comparsas que o plano tinha uma data limite para ser executado:  31 de dezembro de 2022. Bolsonaro sabia de tudo. Nenhum desses fatos está no terreno da suposição. Tudo está calçado por áudios, fotos, mensagens de texto, dados de geolocalização, documentos e imagens de câmeras de segurança levantados pela investigação. 

Já faz um tempo que o bolsonarismo se vê encurralado pela realidade dos fatos levantada pela investigação, mas nesta semana a coisa evoluiu para um xeque-mate.

Se a delação de Mauro Cid já era o batom na cueca de Bolsonaro e cia, agora tem-se em mãos um filme pornô hardcore com participação ativa de boa parte da cúpula militar. O castelo golpista dentro das Forças Armadas desmoronou.

Quatro militares de elite já foram presos. Dos 37 indiciados pela PF, 25 são militares, entre eles oficiais de alta patente que foram ministros do governo Bolsonaro, como os generais Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

Os milicos que foram presos faziam parte dos Kids Pretos, um grupo especial das Forças Armadas treinado para ações de sabotagem e insurgência popular. O lema do grupo é: “qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer maneira”.

Em uma das mensagens trocadas entre os Kids Pretos cinco dias após a eleição de Lula, um deles escreveu: “Democrata é o cacete. Não tem que ser democrata mais agora”. É irônico e satisfatório imaginar que dois anos depois o autor dessa frase seria preso pela democracia. Como diria o golpista-mor — e colunista convidado da Folha — Jair Bolsonaro, “aceitem a democracia.”

As forças armadas foram corroídas pelo golpismo e atuaram de forma permanente para incitar a desordem. A prisão de todos os militares envolvidos na tentativa de golpe é urgente. Além disso, é preciso que o governo federal faça tudo o que estiver ao seu alcance para extirpar o golpismo das Forças Armadas. Isso está longe de ser feito.

O ministro da Defesa, José Múcio, minimizou o papel das Forças Armadas na tentativa de golpe e disse que os crimes foram cometidos por “um grupo isolado”. Mesmo após 2 anos no cargo, o ministro segue fazendo vista grossa para o golpismo institucionalizado entre os militares. Quem está desbaratinando a quadrilha golpista da instituição é a Polícia Federal e o STF, enquanto Múcio prefere evitar a fadiga.

Não é minimamente razoável, por exemplo, que dois dos milicos presos por participar do plano de assassinato de Lula, estarem atuando na missão de segurança da cúpula do G20. Não se trata de tarefa fácil e é até compreensível a cautela de Múcio para mexer nesse vespeiro. Mas essa é uma briga inadiável.

As forças armadas tornaram-se uma fábrica de militares fanatizados por uma ideologia reacionária e golpista. É uma incubadora de Tios Franças. Trata-se de uma instituição caríssima para os cofres do estado, mas que oferece pouco ou quase nada de volta à sociedade além de tentativas de golpe. Ou faz-se uma limpeza radical na instituição e uma reformulação total dos seus métodos ou outros governos serão assombrados pelo golpismo militar no futuro.

É necessário também falar sobre o papel do PL na trama. Valdemar da Costa Neto, presidente do partido e integrante do braço político do plano golpista, também foi indiciado.

A PF reuniu indícios de que a estrutura do partido foi usada “para financiar a estrutura de apoio às narrativas que alegavam supostas fraudes às urnas eletrônicas, de modo a legitimar as manifestações que ocorriam em frentes as instalações militares”.

Foi o PL que alugou a casa que abrigou o comitê de campanha de Bolsonaro e que, após o segundo turno, foi usada como um QG da trama golpista. No inquérito, Mauro Cid aparece pedindo R$100 mil para o general Braga Netto, que é filiado ao PL, para financiar o plano de assassinato de autoridades dos Kids Pretos.

Braga Netto respondeu dizendo que era para pegar com o PL. Tudo indica que o partido de Valdemar teve papel fundamental para a organização criminosa, o que pode culminar com a cassação do seu registro.

Ainda temos um longo caminho pela frente. A investigação agora segue para o STF e posteriormente será encaminhada à PGR, que analisará as provas levantadas pela PF e decidirá se denuncia ou não os envolvidos. Todos os caminhos percorridos até aqui levam Bolsonaro e os golpistas para a cadeia.

A democracia não tem opção: ou extirpa essa gente nefasta de uma vez ou será assombrada mais uma vez em um futuro próximo. A História nos deu a lição: a anistia aos golpistas de 64 gerou os golpistas de 22.

Esse ciclo precisa ser quebrado. O golpismo deve ser aniquilado de forma definitiva pelas forças da democracia. Tio França e os Kids Pretos são a prova de que o espírito golpista continua vivíssimo.

 

•                        Eles ainda estão aqui. Por Jeferson Miola

Bolsonaro só chegou aonde chegou e o Brasil quase mergulhou numa ditadura feroz porque os militares criaram as condições para isso.

Por um triz não houve uma mudança de regime; faltou muito pouco. Se a conspiração tivesse sido exitosa, o Brasil submergiria numa ditadura militar terrível.

A trama golpista foi urdida no Planalto e na caserna, com envolvimento central de generais do Alto Comando do Exército e da alta oficialidade das três Forças. Não por outra razão 25 dos 37 indiciados inicialmente pela Polícia Federal são oficiais militares.

O empreendimento golpista era um meio para o objetivo final – a concretização do projeto de poder militar acalentado pelas cúpulas partidarizadas das Forças Armadas, sobretudo por aqueles setores do porão do velho regime que nunca aceitaram a transição lenta, gradual e segura, e, tampouco, o fim da ditadura, porque desejavam um “regime eterno”, pois entendem que os paisanos são incompetentes, corruptos e incapazes de conduzir os destinos do país.

A mobilização institucional em torno de tal projeto de poder remonta há pelo menos 10 anos, senão ainda mais, no contexto da desestabilização política que culminou no impeachment fraudulento da presidente Dilma.

Não se deve esquecer que a candidatura de Bolsonaro para a eleição presidencial de 2018 foi lançada num mini-comício na AMAN, Academia de Agulhas Negras, em 29 de novembro de 2014, quando comandava aquela unidade o atual Comandante do Exército, general Tomás Paiva.

Comandantes foram condescendentes com os acampamentos nas áreas dos quartéis e com os oficiais que bradavam pela intervenção militar. No mínimo prevaricaram diante das articulações golpistas, inclusive quando receberam a minuta do golpe.

Estes mesmos comandantes abandonaram seus postos em 30 de dezembro de 2022 porque se recusaram a prestar continência ao presidente Lula, eleito pela soberania popular para ser comandante supremo das Forças Armadas.

Um gesto de grave insubordinação. Em democracias minimamente funcionais, sediciosos são presos e expulsos das Forças Armadas.

Mas hoje, contudo, estes comandantes são incensados, considerados heróis salvacionistas que protegeram nossa democracia, embora se saiba que a objeção de Washington ao golpe produziu fissuras no Alto Comando do Exército, fator que quebrou a unidade institucional em torno do empreendimento golpista – “cinco [generais] não querem [o golpe], três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente”, contabilizou um coronel.

A despeito deste retrospecto, contudo, a mídia uníssona destaca que Bolsonaro “planejou, articulou e liderou a tentativa de golpe”.

É uma narrativa conveniente para os militares, porque descarrega toda a responsabilidade criminal nos ombros do ex-presidente, enquanto oculta a atuação intelectual e orgânica da instituição militar e de seus altos comandos hierárquicos no projeto golpista.

O descarte de Bolsonaro e de alguns militares como bodes expiatórios estava no horizonte do planejamento militar; era apenas questão de tempo e oportunidade. E este momento chegou.

A provável condenação e prisão de uma parte daqueles militares golpistas é um fato inédito na vida republicana, e possui enorme valor histórico.

Isso, apesar de relevante, ainda é insuficiente para acabar com a ameaça permanente que os militares representam à democracia. Ao arvorarem um “Poder Moderador”, eles tutelam a política e impõem o que o poder civil deve –e pode– fazer.

O poder de tutela dos militares não acabou com o fim da ditadura. Eles ainda estão aqui, dando as cartas e mandando no jogo.

Na saída da ditadura, impuseram a Lei da Anistia para ficaram impunes e aumentaram o mandato de Figueiredo, o último ditador, para seis anos. Garantiram uma transição conservadora e controlada, impediram as Diretas Já e impuseram a eleição indireta para presidente no Colégio Eleitoral.

Na Constituinte, impuseram a dubiedade do artigo 142 na Constituição, que serve de pretexto para a intervenção militar.

Conspiraram com Temer a derrubada da Dilma e mandaram o STF prender Lula, deixando livre o caminho para a eleição da chapa militar Bolsonaro/Mourão.

Fracassados no intento de golpe, escolheram para ministro da Defesa do governo Lula 3 um fiel representante dos seus interesses.

E, agora, estabeleceram um cordão sanitário limitando as condenações de apenas alguns golpistas, não todos, inclusive integrantes do Alto Comando, para livrar a responsabilidade institucional das Forças Armadas, sobretudo do Exército.

Nossa democracia vive sob ameaça permanente da intervenção fardada – desde, pelo menos, 1889, quando do nascimento da República por meio de um golpe militar.

Como alerta o professor Manuel Domingos Neto, enquanto os militares não forem governados por quem é eleito pela soberania popular, eles continuarão governando quem não lhes governa.

 

•                        Militares convidados para golpe e que não denunciaram também precisam ser punidos, diz analista

A lista do inquérito final da tentativa de golpe aponta para a participação de muitos militares no plano para manter o então presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder em 2022, mesmo após derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O inquérito de mais de 800 páginas, fechado pela Polícia Federal e enviado primeiro ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), agora está sob análise da Procuradora-Geral da República, que vai decidir se denuncia os 37 indiciados.

Caso sejam denunciados, eles podem ser julgados e ter sentença de prisão. Apesar de muitos militares envolvidos na trama golpista, alguns membros das Forças Armadas não concordaram em adotar ou apoiar atos antidemocráticos, conforme também apontou o relatório da PF. Ainda assim, eles erraram em não ter denunciado, já que tiveram conhecimento do plano contra o Estado Democrático de Direito, e precisam ser punidos.

É o que afirma o cientista político Paulo Roberto de Souza, professor da pós-graduação em Mídia, Política e Sociedade da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). O especialista conversou com o jornal Central do Brasil sobre as revelações do relatório após Moraes retirar o sigilo.

"Eu acho que [a recusa de altos comandantes do Exército ao golpe] dificultou, sim [que o plano fosse levado adiante]. Obviamente tem outros elementos, além dessa negativa de partes das Forças Armadas. Notadamente, alguns porque perceberam que era uma cilada. Tivemos acenos internacionais, é sabido por todos que emissários dos Estados Unidos, por exemplo, chegaram a conversar com o general Mourão, ex-vice-presidente da República, atual senador, de que, por exemplo, o governo americano não apoiaria um possível governo como consequência de um golpe", explica.

"Mas tem um fator importante que a gente não pode deixar de levar em consideração de que se essas lideranças das Forças Armadas souberam. Não só souberam, como foram convidados para essa tentativa de golpe e eles não agiram para denunciar e vir a prender as pessoas que gostariam de atentar contra a nossa democracia. Eles também prevaricaram. Então, em algum nível, também eles precisam ser responsabilizados, mesmo que de forma não tão severa como aqueles que efetivamente colocaram o processo de tentativa de golpe em operação", continua o cientista político.

Paulo ainda diz que é quase impossível os indiciados não serem denunciados e responsabilizados. "Agora com esse novo relatório parece que fica inevitável a necessidade de que os principais líderes dessa tentativa de golpe, dentre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro, sejam devidamente julgados, com amplo à direita defesa. Mas, com as provas que se apresentam, que venham a ser necessariamente condenados. E no caso do Bolsonaro, o ponto de partida óbvio é que ele continue inelegível e talvez tenha seus direitos políticos cassados por mais tempo do que tem até o momento", explica.

 

Fonte: The Intercept/Brasil 247/Brasil de Fato

 

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