quinta-feira, 28 de novembro de 2024


 

Grace Blakeley: A absurda e crescente riqueza dos bilionários prejudica a democracia

O relatório mais recente da Oxfam sobre a desigualdade na distribuição global da riqueza pinta um quadro sombrio das mudanças que ocorreram na economia mundial ao longo da pandemia.

De acordo com uma pesquisa da instituição de caridade, os dez homens mais ricos do mundo dobraram sua riqueza ao longo do ano passado, o que significa que ganharam o equivalente a US$ 1,3 bilhão por dia.

Para contextualizar esse número, considere essas ilustrações da diferença entre um milhão e um bilhão. Se você contasse os números até um milhão, levaria doze dias; mas se você contasse os números até um bilhão, levaria trinta e dois anos. Se você gastasse um milhão de dólares em um ano, teria que gastar aproximadamente $ 2.700 por dia; para gastar um bilhão de dólares no mesmo tempo, seria aproximadamente $ 2,7 milhões por dia.

Esses dez homens agora são tão ricos que, mesmo que perdessem 99,999% de sua riqueza, ainda teriam mais do que 99% das pessoas no planeta.

Esses números são tão grandes que são difíceis de compreender, mesmo com ilustrações. Mas é extremamente importante que tentemos entender a escala da desigualdade na economia mundial agora. Porque a desigualdade de riqueza não diz simplesmente sobre os padrões de vida e as oportunidades divergentes de pessoas em diferentes faixas de impostos; ela nos diz sobre as diferenças de poder entre os ricos e todos os outros.

A riqueza bilionária não está apenas em contas bancárias acumulando juros; ela existe na forma de ativos, como ações, propriedades e títulos. Muitos na direita alegremente utilizam esse ponto para criticar o método de cálculo da desigualdade de riqueza da Oxfam, argumentando que não deveríamos pensar na riqueza de Jeff Bezos como equivalente ao valor de seus ativos, porque se ele vendesse todos eles de uma vez, seus valores cairiam drasticamente.

Mas essa crítica não vai ao ponto. O problema com a desigualdade entre bilionários e todos os outros não é apenas que eles podem comprar mais coisas do que todos os outros; é que eles controlam os recursos dos quais o resto de nós depende para sobreviver.

Veja Jeff Bezos, cuja riqueza existe principalmente na forma de ações da Amazon. Ao medir a escala de sua riqueza, não estamos apenas olhando para o quão rico ele é — mas também olhando para o quão poderoso. O fato de Bezos controlar pessoalmente cerca de 10% de uma das maiores e mais valiosas empresas do mundo significa que ele tem uma quantidade significativa de controle sobre a maneira como a economia funciona.

Ele pode influenciar os salários que a Amazon define, o que determina a renda de milhões de pessoas em todo o mundo. Ele pode controlar as decisões de investimento que a empresa toma, o que não apenas determina quantos empregos serão criados na economia, mas também os tipos de bens, serviços e tecnologias que provavelmente serão desenvolvidos nos próximos anos. Ele contribui para uma série de decisões que têm um impacto enorme no resto da sociedade — da pegada ambiental da empresa à sua responsabilidade tributária total.

O mesmo pode ser dito de outros bilionários que controlam a maioria dos recursos do mundo. Magnatas imobiliários definem nossos aluguéis e influenciam os preços de terras e propriedades em todo o mundo. Financiadores determinam onde o investimento é alocado, o que molda todos os tipos de tendências sociais, como mudança tecnológica, a intensidade de carbono do processo produtivo e a geografia da produção. E magnatas da mídia ajudam a moldar as próprias informações que recebemos para entender essas tendências.

As decisões tomadas por esse pequeno punhado de homens têm um enorme impacto em quase todos os âmbitos de nossas vidas — incluindo nossos salários, nossos aluguéis e a temperatura do planeta. E ainda assim eles exercem essa quantidade extraordinária de poder com pouca ou nenhuma responsabilidade.

Ninguém em sã consciência argumentaria que esta é uma maneira racional de organizar uma economia. A maioria dos economistas tradicionais argumenta que pessoas como Jeff Bezos não têm tanto poder quanto pensamos. As decisões da Amazon são, dizem eles, determinadas inteiramente por tendências mais amplas dentro do mercado. Bezos não toma decisões; o mercado sim.

No entanto, em um mundo caracterizado por níveis extremos de desigualdade, altas taxas de concentração de mercado e de captura corporativa do Estado, essa visão se torna muito mais difícil de defender. Quando dez homens podem perder quase tudo o que têm e ainda ser mais ricos do que quase todos os outros no planeta, é absurdo argumentar que eles não estão no controle porque o mercado está.

Esses homens são o mercado — literalmente, no caso de Jeff Bezos.

Se Bezos decidir que quer aperfeiçoar os voos espaciais comerciais, então é assim que os escassos recursos da humanidade serão usados ​​no futuro próximo; assim como se a Amazon decidir cortar sua folha de pagamento, a renda dos mais desfavorecidos cairá, enquanto os lucros dos mais favorecidos aumentarão.

A desigualdade não importa apenas porque é injusta; ela importa porque a riqueza dos que estão no topo depende da pobreza dos que estão na base.

A Oxfam enfatiza precisamente esse ponto no relatório deste ano, argumentando que “a desigualdade extrema é uma forma de violência econômica, onde políticas e as decisões políticas que perpetuam a riqueza e o poder de alguns poucos privilegiados resultam em danos diretos à grande maioria das pessoas comuns em todo o mundo e ao próprio planeta”.

Em nenhum lugar isso ficou mais claro do que nas respostas dos nossos governos e bancos centrais à pandemia, injetando bilhões de dólares nos bolsos dos ricos, enquanto deixaram muitos dos mais pobres se defenderem sozinhos.

Então, da próxima vez que alguém lhe disser que Jeff Bezos conquistou seu dinheiro e que ele deveria poder gastá-lo da maneira que quiser, lembre-o de que não foi assim; ele o extraiu do governo, do meio ambiente e de seus trabalhadores.

 

¨      Quem tem medo do pobre periférico? Por Hélio Alexandre da Silva

No último período tem circulado entre nós um argumento bastante comum que diz respeito às mazelas atuais da esquerda e do campo progressista. Em linhas gerais, esse argumento sustenta que, diante do avanço da extrema direita e da nossa incapacidade crescente de pautar o debate público mobilizando princípios e valores de esquerda, estaria na hora de “voltarmos para a base” e aprender a dialogar com os anseios e demandas dos pobres da periferia.

Após as recentes eleições municipais, houve uma nova onda de diagnósticos que apontaram para a mesma direção, quase todos estimulados por uma genuína boa intenção, dizendo o que a esquerda deve fazer para se conectar com as pessoas mais pobres e evitar que, no futuro, elas optem novamente por projetos que aprofundam a miséria da sua própria condição. 

No entanto, e esse também é um traço comum, esses diagnósticos tendem a circular entre especialistas e pessoas “já convertidas” ou ficam presos nas armadilhas da crítica e da busca pela formulação mais precisa, algo que não é, diga-se, um problema em si. O que não é tão frequente nessas análises, porém, são considerações que chamam atenção para o fato que, quando estamos no campo da política e da busca pela disputa de valores, onde se debate comportamentos e projetos de sociedade, é razoável esperar que a vida prática esteja intimamente ligada àquilo que se publiciza em forma de discurso. Dito de outro modo, isso significa que furtar-se ao esforço de derivar consequências práticas dos nossos diagnósticos é uma forma de diminuir sua força crítica transformadora ou, no pior dos casos, é um modo de dar a entender que não acreditamos tanto naquilo que nós mesmos professamos em discursos e análises teóricas. 

“Encontrar a vacina para um mal não é suficiente para que ele seja erradicado. Após descobrir o remédio que cura, é preciso convencer o paciente de que ele é eficaz e, em seguida, aplicá-lo.”

Um dos expedientes mais comuns nas ciências médicas diz respeito ao fato que, uma vez feito um diagnóstico e descoberto um procedimento capaz de curar uma doença, é preciso colocá-lo em prática para que se resolva o problema diagnosticado. Encontrar a vacina para um mal não é suficiente para que ele seja erradicado. Após descobrir o remédio que cura, é preciso convencer o paciente de que ele é eficaz e, em seguida, aplicá-lo. Nesse sentido, quando se trata de diagnósticos políticos, quantos de nós estamos realmente dispostos a fazer aquilo que indicamos que é preciso fazer? Quantos de nós estamos dispostos a construir, nos aproximar e conviver, com alguma frequência, com as pessoas mais pobres das periferias? 

Aqui é preciso deixar claro: não se trata de ignorar aquilo que há de correto nas análises e nas críticas dos analistas, bem intencionados, que estão preocupados com o futuro do campo progressista e da esquerda, tampouco de mobilizar o expediente desonesto de desviar o olhar da crítica e dirigi-la aos sujeitos que criticam. Trata-se, talvez, de pensar nas consequências políticas implicadas em certa compreensão do binômio clássico da esquerda que é a relação entre teoria e prática.

Dualismos ingênuos e vanguardismos extemporâneos

Uma das características mais presentes nas sociedades modernas capitalistas é a separação (mais formal do que material) entre espaço público e espaço privado. Essa separação nos trouxe muitos ganhos mas, de alguma forma, ela contribuiu para um tipo de comportamento, mais comum entre intelectuais e certa classe média esclarecida, que nos protege dentro de uma divisão social do trabalho em que nossa tarefa é observar, fazer diagnósticos e apontar os horizontes e caminhos sobre o que seria necessário fazer. Feito isso, parece que estamos autorizados a voltar para nossas casas e dormir o sono tranquilo daqueles que já cumpriram com sua parte “no nosso belo quadro social”, como diz a canção popular. 

No entanto, quando se trata da vida política e dos desafios que o nosso tempo nos impõe, fazer diagnósticos e apontar os horizontes é apenas uma parte da tarefa. Talvez nos falte pensar um pouco mais na compreensão da relação entre teoria e prática que opera como pano de fundo desse comportamento. Quais seriam os motivos que nos prendem na armadilha que nos aproxima, quando convergimos na avaliação de que precisamos conversar com as pessoas pobres das periferias, mas nos distancia quando o tema é a disposição de enfrentar as contradições e os desafios de ir lá e conversar com elas, construir com elas, aprender com elas, ensiná-las quando preciso e se for preciso? Foi Hegel quem disse que não é possível aprender a nadar antes de arriscar-se na água. 

Aqui é preciso deixar claro: não se trata de demonizar o trabalho de análise teórica em defesa de um voluntarismo cego e ingênuo. Não se trata, tampouco, de defender que o que tinha que ser interpretado já foi interpretado e agora só nos resta aplicar as interpretações à realidade e organizarmos a luta social sem um esforço de compreensão das dinâmicas e dos contornos cada vez mais complexos dos conflitos sociais do nosso tempo. Talvez, para sermos consequentes, a primeira vacina que devemos tomar é aquela que nos imuniza contra dualismos ingênuos e vanguardismos extemporâneos. 

“Os movimentos existem em todo o país e possuem grande acúmulo político e organizativo. Por que não juntar forças com eles e enfrentar as contradições que eles enfrentam, desafiando o idealismo ingênuo, mas com compromisso com a melhoria da vida das pessoas mais pobres?”

Se boa parte das análises de jornalistas, professores e pesquisadores sobre as falhas da esquerda nas últimas eleições apontam para nosso distanciamento das bases sociais mais pobres das periferias, então o ensinamento hegeliano pode nos ajudar: é preciso se arriscar na água (ou no barro, tanto faz) e ouvir, se aproximar e se colocar à disposição para construir junto (sem pressa e com generosidade) com as pessoas pobres das periferias. 

Esse envolvimento de aproximação não precisa ser construído do zero. Em todo o Brasil há exemplos de grupos e movimentos sociais que precisam de apoio e que se constroem a partir da articulação e organização das camadas populares. Nas grandes cidades, o MTST possui um trabalho de construção popular, a partir da luta pela moradia digna que tem crescido e ganhado cada vez mais protagonismo nos últimos anos; as batalhas de Slams são um exemplo de produção cultural que reúne milhares de jovens periféricos em quase todo o país; o Movimento dos Trabalhadores Sem Direitos tem construído uma luta contra a precarização do trabalho que reúne manicures, pedreiros, pintores, entregadores, camelôs e uma série de outros trabalhadores informais; de Porto Alegre a Natal, de São Paulo a Salvador, do Rio a Belém, nossas grandes cidades são espaços de inúmeros saraus organizados pelas periferias e que ganhariam em visibilidade e força política se tivessem mais apoio; as Cozinhas Solidárias espalhadas pelo país são esforços que carregam um enorme potencial organizativo que vai além da distribuição de comida gratuita para quem tem fome; isso sem mencionar o que se constrói no campo onde há um conjunto de movimentos organizados, que têm o MST como exemplo mais conhecido, mas que também reúne muitos outros esforços que juntam pequenos produtores rurais para enfrentarem cotidianamente os desafios postos pela luta desigual contra a produção capitalista.

Poderíamos apresentar aqui mais uma centena dessas iniciativas, já em andamento, e que precisam de todo tipo de apoio para construírem suas lutas. Não há uma receita de “como fazer” que possa servir para todas essas organizações populares, mas todas elas possuem um certo know how capaz de reunir pessoas pobres e construir algo em comum capaz de enfrentar o crescimento da direita, inclusive entre os mais pobres.

É preciso não se esquecer que o processo de construção popular não deve ser visto com a lente da cartilha do gerenciamento neoliberal que exige que primeiro se construa um modelo de planejamento estratégico e, em seguida, garantida todas as condições e os melhores quadros de funcionários, se execute a tarefa com maior eficácia. Um outro cantor popular já nos disse que “a vida é real e de viés”, um projeto de sociedade à esquerda não pode perder de vista esse aspecto. Há certo espírito de tentativa e erro, de experimentação e aposta que acompanha experiências políticas dessa natureza e que não precisa ser compreendido como um problema. No entanto, isso não significa que só nos resta apostar e experimentar tudo do zero orientados por uma espécie de otimismo da vontade. Os movimentos populares existem em todo o país e possuem grande acúmulo político e organizativo. Por que não juntar forças com eles e enfrentar as contradições que eles enfrentam, desafiando o idealismo ingênuo, mas com compromisso com a melhoria da vida das pessoas mais pobres?

“Não é preciso dizer que o desafio de não perder de vista a relação intrínseca entre teoria e prática não é algo novo, ao menos desde os Manuscritos de 44, Karl Marx já destacava a sua relevância.”

É nesse sentido que é preciso destacar que boa parte das análises que se multiplicaram nesse período pós eleições municipais se esquecem que, para o pensamento progressista e de esquerda, a prática é uma de suas características constitutivas. Não apenas a prática teórica, mas também a prática que busca construir laços sólidos e permanentes com aqueles que nós enxergamos como oprimidos; aquela que enfrenta os desafios e contradições concretas implicadas na efetivação de nossos valores e princípios teóricos. As contradições são concretas e só podem ser superadas de forma concreta.   

Não é preciso dizer que o desafio de não perder de vista a relação intrínseca entre teoria e prática não é algo novo, ao menos desde os Manuscritos de 44, Karl Marx já destacava a sua relevância. Mas a passagem em que ele nos chama atenção para isso é tão elucidativa que não seria exagero reproduzi-la aqui. Ele diz:

“A própria resolução das oposições teóricas só é possível de um modo prático, só pela energia prática do homem e, por isso, a sua solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma efetiva tarefa vital que a filosofia não pôde resolver, precisamente porque a tomou apenas como tarefa teórica.” 

A crítica é uma parte absolutamente necessária para que a gente possa transformar nossas mazelas em esperança, nossas experiências sociais regressivas em potencial de florescimento e libertação emancipatória. Nenhum movimento social organizado sobrevive e tem vida longa sem dialogar com os diagnósticos e teorias construídas por pesquisadores e intelectuais que dedicam suas vidas aos estudos das dinâmicas sociais e políticas nas universidades e em centros de pesquisas. Uma sociedade que pretende ser capaz de construir um projeto de esquerda, acabar com a desigualdade e com as mazelas da pobreza não vive sem ciência, sem teoria, sem intelectuais e sem crítica; e também não vive sem a solidariedade objetiva, a compreensão, o respeito, o convívio cotidiano e permanente com quem enfrenta os desafios trazidos pela falta do botijão de gás na hora do almoço e pela humilhação de não conseguir ler o comunicado do INSS sobre o corte do benefício social.

A crítica, e os críticos, só têm a ganhar quando se aproxima, convive e compartilha concretamente as experiências de quem é silenciado e oprimido pela vergonha de ter que pedir ajuda para comprar o leite que falta para o filho, ou que pena pela falta de autoestima de falar em público perto de gente instruída. Foi Leonardo Boff quem um dia disse que “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”.   

 

Fonte: Tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil


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