sábado, 21 de setembro de 2024

Musk vs Xandão: Plataformas privatizaram o debate público

O conflito jurídico-político entre a plataforma X, comprada pelo bilionário-estrela Elon Musk, e o estado brasileiro, representado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, é a mais recente manifestação de uma nova ordem internacional em que grandes plataformas de tecnologia se tornam atores geopolíticos.

Estados se aliam a essas plataformas em uma corrida pela vanguarda tecnológica, sobretudo em inteligência artificial.

A principal estrutura dessa ordem geopolítica é a polarização entre EUA e China, cada um com suas respectivas plataformas – notadamente Google, Amazon, Meta, Apple e Microsoft de um lado; TikTok, Baidu, Alibaba, Tencent e Huawei de outro.

Basta observar como os EUA aprovaram, neste ano, uma lei banindo a plataforma chinesa TikTok em seu território por suspeitas de que ela pudesse permitir ao Partido Comunista Chinês o acesso a informações sensíveis de cidadãos americanos, ou intervir no debate político local favorecendo conteúdos antissistêmicos, como críticas às ações de Israel em Gaza.

•        Governo algorítmico

Enquanto, na ordem internacional moderna, o globo era dividido entre estados-nação soberanos sobre seus territórios e populações de maneira excludente, agora esses estados convivem com um novo tipo de entidade: as plataformas.

Diferentemente dos estados, que governam facultando determinadas ações e proibindo outras dentro de um território, as plataformas governam algoritmicamente. Ou seja, elas intervêm na probabilidade de que usuários, que ocupam um espaço que atravessa fronteiras, ajam de determinada maneira.

O mesmo corpo que é governado como cidadão pelo estado brasileiro é governado como usuário de mídia social pela Meta, como passageiro pela Uber, como hóspede pelo Airbnb, entre outros. Essa sobreposição de modos de governar diferentes permite tanto alianças quanto conflitos geopolíticos entre estados e plataformas.

Por isso, os apoiadores de Moraes e os de Musk erram ao tratar o problema como uma simples regulação de uma empresa privada pelo direito brasileiro, e não como um conflito entre entidades jurídico-políticas de diferentes gerações.

O que temos é um embate entre um estado emergente, que, sob Lula, evita o alinhamento automático com EUA ou China, e um empresário que, embora não controle nenhuma das plataformas de primeira importância no sistema dos EUA, possui um conjunto estratégico de empresas que vai do software à infraestrutura, e que ele mobiliza em intervenções geopolíticas que lhe renderam a alcunha de “míssil geopolítico governado”.

Musk afirma ter comprado o então Twitter, que ele próprio chamou de “praça pública”, para defender a liberdade de expressão. Como se a ideia de praça pública pudesse sobreviver ao fato de ser comprada.

O que ele fez, na verdade, foi transformar uma plataforma cuja força era servir como um indicador de tendências da esfera pública em uma arma geopolítica.

A governança algorítmica transforma os inúmeros conteúdos da plataforma em um repertório que Musk pode controlar, decidindo o que terá mais ou menos visibilidade. A liberdade de expressão deixa de ser uma questão de “sim ou não” e passa a ser uma questão de grau, conforme o poder se concentra nas mãos de Musk.

É como se os tuítes fossem notas de um piano: cada uma tem seu som, mas Musk pode compor sua própria música com elas.

•        Ativismo político ou negócios?

A relação entre os interesses econômicos de Musk e seu ativismo político recém-descoberto não é segredo.

Quando acusado por um usuário no próprio Twitter de apoiar um golpe na Bolívia para garantir o abastecimento de lítio para as baterias dos carros da Tesla, Musk respondeu: “Daremos golpe em quem quisermos”.

Em uma economia grande e rica em recursos como o Brasil, e dado um cenário político polarizado, é de se imaginar que Musk prefira que o “seu cara” esteja no poder, e não alguém que ele ameaça, também pelo X, de deixar sem avião presidencial.

Alexandre de Moraes, por sua vez, aparece como o veículo de uma reação de autopreservação de uma ordem jurídica ameaçada pela aceleração seletiva de forças sociais promovida pelas plataformas.

Essa reação encontra paralelo na lista de países considerados “antidemocráticos” que baniram o X, na busca por regulação das plataformas na Europa e no já mencionado banimento do TikTok nos EUA.

Curiosamente, esse paralelo é ignorado quando o Brasil e os EUA são contrastados como países em que uma suposta liberdade de expressão absoluta reinaria, e onde algo semelhante jamais aconteceria.

A reação defensiva de Moraes parece, no entanto, se traduzir em estratégias ineficazes e contraproducentes. Na lógica das plataformas, bloquear mensagens ou perfis não impede que conteúdos análogos de outras fontes sejam circulados em seu lugar.

Uma lógica jurídica de permissão e proibição é aplicada em um meio no qual o que conta, em última instância, é a intensidade de distribuição. Como consequência, o movimento golpista é reanimado em torno de narrativas de insurgência contra o autoritarismo e a censura.

No contexto da polarização, grande parte da esquerda apoia acriticamente as ações de Moraes, apesar da inadequação estratégica e de elementos juridicamente questionáveis e politicamente perigosos, como a tentativa de proibir o uso de VPNs no país.

O “X da questão”, que tem sido tema de inúmeros artigos de opinião, não é o de “Xandão” apenas aplicando a lei brasileira a uma empresa, nem o de X como plataforma de livre expressão democrática à qual os brasileiros teriam direito de acessar.

As duas questões cruciais que se cruzam nesse evento geopolítico são, por um lado, a negociação das relações entre estados e plataformas e, por outro, a questão democrática dentro das próprias plataformas: o tipo de relação política que elas mantêm com seus próprios “cidadãos”, os usuários.

É inegável que uma exuberante vida democrática se expressa em plataformas como o X. Não apenas opiniões políticas e informações, mas também redes de relações pessoais, produção e circulação de afetos, sensibilidades e senso de humor.

Além dos tuítes, os algoritmos pelos quais as plataformas distribuem conteúdos e as inteligências artificiais que elas alimentam são fruto dos dados que os usuários produzem em suas interações.

Tudo isso expressa a vida democrática do meio social sobre o qual a plataforma se sobrepõe. O problema é que, no modelo atual, essa vida democrática é apropriada e instrumentalizada pela plataforma.

Um dos objetivos explícitos de Musk ao adquirir o antigo Twitter é se posicionar na corrida pela inteligência artificial com a Grok, uma IA oferecida pelo próprio X. O diferencial da Grok, além de responder a perguntas consultando em tempo real o conjunto de todos os tuítes, é ser uma IA sarcástica, espirituosa – em suma, uma IA “meio tuiteira”.

O fato político relevante é que a cultura democrática que se expressava no Twitter, fermentada durante anos, foi comprada por um bilionário e transformada em uma entidade pós-humana para ser vendida a assinantes premium, potencialmente garantindo a Musk um papel de destaque na geopolítica da IA.

Se quisermos discutir a democracia no mundo das plataformas, devemos ser capazes de imaginar ecossistemas de mídias sociais que não sejam inteiramente controlados por interesses privados ou estatais, mas que incluam uma dimensão comum, no mesmo sentido em que a vida democrática e a inteligência são algo que compartilhamos.

É urgente afirmar que nenhuma IA alimentada com nossas interações sociais pode ser transformada em produto ou arma de guerra. Que o Brasil busque limitar a apropriação da vida democrática pelas plataformas é um passo crucial, embora insuficiente, nessa direção.

 

•        Alexandre de Moraes multa X em R$ 5 milhões por dia por manobra que permitiu rede social voltar ao ar

Após o X voltar a funcionar no Brasil, o ministro Alexandre de Moraes determinou que a rede social do bilionário Elon Musk retome o cumprimento do bloqueio imediatamente.

A decisão foi tomada na quarta-feira (18/9) e tem validade a partir desta quinta (19/9).

Caso a ordem não seja atendida, a empresa será multada em R$ 5 milhões por dia de violação.

Como o X fechou seu escritório no país, Moraes estabeleceu também que a multa poderá ser cobrada da Starlink, outra empresa de Musk que mantém atuação no Brasil.

Moraes havia determinado o bloqueio do acesso à rede social no Brasil por causa do descumprimento de ordens judiciais do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em sua nova decisão, o ministro determinou, ainda, que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tome providências imediatas para reestabelecer o bloqueio da rede social e informe ao STF em 24 horas quais foram as medidas tomadas.

No dia anterior (18/9), a agência informou ao Supremo que, segundo informações preliminares, "uma atualização do aplicativo X, ocorrida na noite de ontem para hoje, comprometeu a efetividade do bloqueio previamente implementado pelas operadoras".

Para Moraes, uma postagem de Musk em sua rede social comprovaria que o descumprimento do bloqueio foi proposital.

O bilionário escreveu na quarta-feira (18/9), em mensagem original em inglês: "Qualquer magia suficientemente avançada é indistinguível da tecnologia”.

"A DOLOSA, ILÍCITA E PERSISTENTE RECALCITRÂNCIA da plataforma X no cumprimento de ordens judiciais foi confessada diretamente por seu maior acionista, ELON MUSK, em publicação no próprio X dirigida a todo território nacional, conforme divulgado pela imprensa", escreveu Moraes em sua decisão.

A Anatel se manifestou no mesmo sentido. A agência afirmou que a conduta do X demonstrou uma "intenção deliberada de descumprir a ordem do STF".

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicaram que o retorno da rede só foi possível graças a uma mudança técnica que teria "driblado" os bloqueios impostos pelos provedores de telefonia e internet do Brasil.

Segundo eles, o X passou a hospedar o seu conteúdo em uma rede conhecida como Cloudflare, uma das mais abrangentes do mundo. Ao fazer isso, o bloqueio anteriormente feito pelas operadoras brasileiras passou a não surtir mais efeito.

Em nota, a Anatel disse que com o apoio das operadoras de telecomunicações e da Cloudfare identificou uma forma de garantir que a decisão do STF de bloquear o acesso à rede social voltasse a ser cumprida.

"Eventuais novas tentativas de burla ao bloqueio merecerão da Agência as providências cabíveis", disse a Anatel.

A agência refutou assim a declaração do X de que a volta da rede social teria sido "inadvertida e temporária".

Em nota divulgada após o reestabelecimento do acesso vir a público, o X afirmou que uma mudança no servidor usado para hospedar a rede social teria levado ao reestabelecimento do acesso.

"Quando o X foi suspenso no Brasil, nossa infraestrutura para fornecer serviço para a América Latina não ficou mais acessível à nossa equipe. Para continuar fornecendo um serviço de excelência para nossos usuários, mudamos de servidor. Essa mudança resultou em uma restauração inadvertida e temporária do serviço para usuários brasileiros", disse a empresa.

"Embora esperemos que a plataforma fique inacessível novamente no Brasil em breve, continuamos os esforços para trabalhar com o governo brasileiro para retornar muito em breve à população do Brasil".

<><> Bloqueio de perfis no Brasil

Também nesta quinta-feira, algumas das contas que eram alvo de uma ordem de bloqueio pelo STF passaram a aparecer como suspensas na rede social.

Entre elas, estão os perfis do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, atualmente foragido nos Estados Unidos, de Paulo Figueiredo, ex-apresentador da Jovem Pan e investigado no inquérito que apura tentativa de golpe de estado no Brasil, e do youtuber Monark.

Quem tenta acessar essas contas a partir do Brasil é informado que o bloqueio foi realizado "em resposta a uma ordem judicial".

O bloqueio a determinados perfis foi uma das determinações judiciais descumpridas pela rede social que levou ao seu bloqueio no país por determinação de Moraes.

A rede social X foi tirada do ar em 30 de agosto, dois dias após Moraes intimar Elon Musk a indicar um representante legal no Brasil no prazo de 24 horas.

A empresa havia fechado seu escritório no país em reação à determinação de Moraes de bloquear as contas de sete perfis de bolsonaristas.

Em seu perfil no X, Elon Musk se manifestou horas depois atribuindo o fechamento do escritório brasileiro a "exigências de censura" de Moraes.

"A decisão de fechar o escritório X no Brasil foi difícil, mas, se tivéssemos concordado com as exigências de censura secreta (ilegal) e entrega de informações privadas de @alexandre, não haveria como explicar nossas ações sem ficarmos envergonhados."

O perfil oficial do X dedicado às relações governamentais publicou uma nota confirmando o fim da operação no Brasil e divulgando um despacho sigiloso de Moraes destinado à empresa.

De acordo com a nota, o ministro teria ameaçado o representante legal com prisão na noite de sexta-feira caso a rede social não cumprisse as ordens. “Ele fez isso em uma ordem secreta, que compartilhamos aqui para expor suas ações”, diz a nota.

Na decisão que levou à suspensão da rede social, Moraes argumentou que Musk e o X estariam incentivando, com sua postura, discursos extremistas e antidemocráticos.

Além disso, estariam obstruindo a Justiça ao não seguir determinações judiciais como bloqueio de contas e ao deixar de apontar um representante legal no país.

O ministro do STF determinou que a Anatel tomasse as providências para o bloqueio da rede.

Logo após a decisão, Musk disse que "a liberdade de expressão é a base da democracia e um pseudo-juiz não eleito no Brasil está destruindo-a para fins políticos".

<><> Musk X Moraes

A tensão entre o bilionário e o ministro vem se escalando nos últimos meses.

No início de abril, um compilado de trocas de e-mails de funcionários do Twitter a respeito de decisões judiciais brasileiras que envolveram a rede social entre 2020 e 2022.

Os documentos, revelados pelo jornalista americano Michael Shellenberguer, ficaram conhecidos como Twitter Files Brazil.

Na época, Musk iniciou uma ofensiva pública a Moraes, acusando-o de censura e ameaçando descumprir ordens judiciais.

Moraes incluiu então Musk no inquérito das milícias digitais, e também abriu um novo inquérito para apurar se o empresário cometeu crimes de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime.

“As redes sociais não são terra sem lei; não são terra de ninguém”, destacou Moraes na decisão, tomada após o dono do X fazer postagens na rede social que, segundo Moraes, são uma “campanha de desinformação” que instiga “desobediência e obstrução à Justiça”.

Além disso, estabeleceu uma multa diária de R$ 100 mil para cada perfil da rede social que venha a ser desbloqueado, em descumprimento de decisão do STF ou do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Na ocasião, Musk chamou Moraes de "ditador brutal" e disse que o ministro tem o presidente Lula “na coleira”.

Diversos perfis já foram suspensos ou tiveram sua suspensão decretada desde 2019, quando foi instaurado o inquérito das fake news.

Aberto para investigar ataques e notícias falsas envolvendo membros da corte, a investigação está sob relatoria de Moraes desde 2020, quando tomou posse como ministro do Supremo.

Entre os alvos dessas investigações estão o ex-presidente Jair Bolsonaro e apoiadores.

Alguns dos bolsonaristas que já tiveram suas contas bloqueadas no antigo Twitter são a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), o ex-parlamentar Roberto Jefferson e o empresário Luciano Hang.

Durante sua presidência no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entre agosto de 2022 e junho deste ano, Moraes também tomou decisões contra usuários de redes sociais com a justificativa de coibir a disseminação de notícias falsas.

As determinações de Moraes neste sentido suscitaram um complexo debate, dado que não há uma lei prevendo especificamente este tipo de medida cautelar.

 

Fonte: Por José Antonio Magalhães, em The Intercept/BBC News Brasil

 

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