A teoria da conspiração que influencia
eleições nos EUA
Durante o primeiro
debate da corrida presidencial nos Estados Unidos, o ex-presidente e atual candidato republicano Donald Trump
insinuou, sem qualquer evidência, que imigrantes
ilegais estariam chegando em massa no país para votar no pleito.
"Nossas eleições
são ruins. E muitos desses imigrantes ilegais que estão chegando, eles estão
tentando fazê-los votar", disse Trump, se referindo aos membros do Partido
Democrata.
"Eles nem sabem
falar inglês. Eles nem sabem em que país estão, na prática. E essas pessoas
estão tentando fazê-los votar. E é por isso que estão permitindo que eles
entrem em nosso país."
Essa não foi a
primeira vez que o ex-presidente ou seu partido difundiram a ideia de que
imigrantes sem documentação poderiam alterar o resultado da eleição.
Personalidades da
direita radical americana, como o apresentador da Fox News Tucker Carlson e o
candidato a vice de Trump, J.D. Vance, também aludem ao relato.
Trata-se, porém, de
uma teoria da conspiração, que, segundo especialistas, está profundamente
conectada a outra narrativa igualmente falsa que circula há anos — se não há
séculos.
A chamada teoria da
"grande substituição" difunde a ideia de que há uma elite que usa a
imigração em massa para substituir a população original de um determinado país,
geralmente de maioria branca, por imigrantes não brancos.
"A teoria
basicamente prega que a mudança nos padrões de população que estamos observando
nos últimos anos não aconteceram por acaso, mas estão sendo promovidas por um
conjunto de elites políticas", afirma Michael Feola, professor da
Lafayette College, nos Estados Unidos, e pesquisador da política racial da
direita radical americana.
Quando falam em
elites, aqueles que acreditam nesta teoria geralmente se referem a partidos de
esquerda ou adeptos da social-democracia, grandes corporações e comunidades
judaicas, explicou Cas Mudde, professor da Universidade da Geórgia ao podcast
The Real Story da BBC.
Segundo Mudde, a
teoria da "grande substituição" vai além de outras narrativas
racistas que pregam a existência de uma onda de migração maligna ou uma
"islamização da Europa".
De acordo com a
teoria, diz o professor, as ditas elites não querem apenas
"substituir" a população nativa, mas também obter vantagens políticas
com isso.
"A ideia é que
eles estão fazendo isso para se manter no poder", explica Mudde.
·
Uma 'nova' teoria
antiga
A origem do termo
"grande substituição" é atribuída ao autor francês Renaud Camus,
em obras publicadas entre 2010 e 2011.
Nelas, Camus argumenta
que os "franceses étnicos" e os europeus brancos estariam sendo
substituídos física, cultural e politicamente por pessoas não brancas.
Embora os textos não
tenham sido traduzidos para o inglês inicialmente, sua tese foi acolhida por
grupos supremacistas dos Estados Unidos desde sua publicação.
Assim, por exemplo, os
lemas "não nos substituirão" e "os judeus não nos
substituirão" foram entoados por manifestantes da direita radical que tomaram
as ruas de Charlottesville, nos Estados Unidos, em agosto de 2017.
Os pensamentos de
Camus também foram apontados como parte da motivação de alguns ataques racistas
nos Estados Unidos e na Nova Zelândia, apesar do francês rechaçar com veemência
esses atos e dizer que a "não violência" é um elemento central de sua
filosofia.
entoados por
manifestantes da direita radical em Charlottesville em 2017
Na França, as ideias
também ganharam força por meio da voz de Eric Zemmour, jornalista que entrou
para a política e concorreu à Presidência com uma plataforma de direita radical
em 2022.
Mas estudiosos do tema
afirmam que as ideias na qual a teoria se baseia circulavam muito antes disso.
Segundo Mudde, a
teoria já era bastante popular entre a direita radical desde as décadas de 1980
e 1990, quando quase todos os partidos dessa vertente na Europa circulavam
alguma versão dessa ideia.
"Mas cresceu de
forma exponencial à medida que a direita radical ganhou espaço", diz o
professor.
É ainda possível
identificar ideias semelhantes em textos e narrativas anti-imigração que datam
desde o século 18 nos Estados Unidos.
Benjamin Franklin
expressou desdém pelos imigrantes holandeses que chegaram no país por volta de
1750, e o advogado eugenista Madison Grant ecoou essas ideias em obras baseadas
no racismo científico no início do século 20.
Na era moderna,
especialistas apontam também para o livro O Diário de Turner, um
romance de 1978 escrito pelo supremacista branco William Luther Pierce sob o
pseudônimo de Andrew Macdonald.
A obra deu voz a estas
noções ao descrever uma revolução violenta nos Estados Unidos com uma guerra
racial que leva ao extermínio de não brancos.
"Essas ideias de
'poder branco' e as tradições supremacistas brancas estão nos Estados Unidos há
gerações", diz Michael Feola, da Lafayette College.
"Antes, eles
falavam em 'extermínio branco' ou 'genocídio branco' em vez de
substituição."
·
Racismo, xenofobia e
antissemitismo
Ao longo dos anos, a
teoria ganhou contornos e alvos distintos, dizem os especialistas.
"O indivíduo que
é considerado 'de fora' depende de quem é o outro em cada contexto
particular", diz Jacob Davey, pesquisador do Instituto para Diálogo
Estratégico (ISD), com sede em Londres.
"Na Europa, os
muçulmanos têm sido considerados esse grupo externo primário e têm sido alvo de
extremistas de direita repetidas vezes. Mas o componente antissemita surge de
tempos em tempos também."
Nos Estados Unidos,
afirma o especialista, a teoria foca na população afro-americana e nos
imigrantes da América Latina.
Davey afirma ainda
que, atualmente, a narrativa da teoria se manifesta muitas vezes em temores sem
fundamento de que imigrantes estão "roubando os empregos" da
população nativa ou "mudando a personalidade" de uma cidade.
"É claro que nem
todas as pessoas que acreditam nisso são parte da direita radical",
afirmou o pesquisador ao podcast The Real Story da BBC.
"Mas a direita
radical reconhece essas ansiedades e realmente busca capitalizá-las."
Ao mesmo tempo, a
ideia de que são elites formadas por judeus que orquestram a "grande
substituição" também aparece com frequência, segundo Feola.
"Muitas vezes,
nos fóruns da direita radical, vemos as elites judaicas sendo apontadas de
forma caricatural e realmente grosseira como os responsáveis por projetar dos
bastidores essas mudanças populacionais em nação após nação após nação",
diz o professor.
"Isso se
relaciona de certa forma com tópicos de outras teorias da conspiração
antissemitas mais antigas."
Ainda segundo o
estudioso, é justamente o fato da teoria apontar membros da elite ou grandes
entes poderosos como os responsáveis por um plano maior ajuda a explicar seu
apelo.
"A maneira como a
teoria usa a estrutura básica de muitas das teorias da conspiração populares
atualmente a torna atraente para muitas pessoas", diz.
"Elas basicamente
atribuem todas as mudanças pela qual o mundo está passando, sejam mudanças nos
padrões populacionais, instabilidade no suprimento de alguns alimentos, a
pandemia, a um único culpado misterioso."
Além disso, afirma
Adolphus Belk Jr., professor na Universidade Winthrop, no Estados Unidos, o
racismo e a xenofobia que já fazem parte de muitas dessas sociedades facilitam
que essas ideias ganhem força em meio a um cenário de aumento da imigração e
mudança nos padrões populacionais.
"Por que as
pessoas acreditam nisso? Há na população em geral atitudes antinegros,
antilatinos, antimuçulmanos e antissemitas que fornecem um pano de fundo para
radicalizar as pessoas e levá-las a aderir a estas falsas narrativas",
disse o pesquisador à BBC.
Tudo isso, segundo
especialistas, é extremamente perigoso e vem estimulando a violência racial.
Acredita-se que os
autores dos massacres em Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019, e de Charleston, na Carolina do Sul, em 2015,
acreditavam em ideias que fazem parte da teoria da "grande
substituição".
No ataque da Nova
Zelândia, o supremacista branco Brenton Tarrant atirou contra muçulmanos que
rezavam em duas mesquitas, deixando 51 pessoas mortas.
Já no atentado nos
Estados Unidos, nove pessoas morreram depois que Dylann Roof abriu fogo em uma igreja de comunidade negra.
·
Quem acredita na
teoria?
As ideias de
substituição racial são especialmente populares nos Estados Unidos e na Europa,
apontam especialistas.
Na França, além de
Eric Zemmour, outras forças políticas de peso da direita radical já deram voz a
preocupações semelhantes em algum momento.
Uma pesquisa de 2021,
realizada pela Harris Interactive em conjunto com a revista semanal de negócios
Challenges, mostrou que 61% dos franceses acreditavam na teoria, enquanto cerca
de 67% estavam preocupados que isso pudesse ocorrer no futuro.
Pesquisadores também
identificam uma extensa influência das ideias de substituição na Hungria, onde
o presidente Viktor Orbán profere com certa frequência discursos anti-imigração
em compasso com ideias da "grande substituição".
Nos Estados Unidos,
diversas figuras de projeção nacional ligadas ao movimento da direita radical
têm se mostrado importantes para a difusão da teoria, diz o professor Michael
Feola.
Segundo o
especialista, enquanto Trump usa uma série de argumentos característicos da
"grande substituição", como a ideia de uma "invasão de
imigrantes" ou o uso pelos democratas de imigrantes ilegais nas eleições,
ele não costuma nomear diretamente a teoria.
"Mas seus aliados
invocam a história e a linguagem mais específicas da substituição. Em grande
parte para dizer que o Partido Democrata está importando intencionalmente
eleitores da América Latina e do Sul global para ganhar poder eleitoral",
afirma Feola.
Um desses aliados é
Vivek Ramaswamy, empresário que foi pré-candidato às eleições pelo Partido
Republicano.
Em um debate
televisionado, ele afirmou que a teoria da "'grande substituição' (...)
não é uma grande teoria da conspiração de direita, mas parte da plataforma
básica do Partido Democrata".
O companheiro de chapa
de Trump, J.D. Vance, também já fez menções à ideia, assim como o bilionário
Elon Musk.
Essas declarações têm
tido um impacto direto no aumento da crença na teoria entre a população
americana.
Pesquisadores da
Universidade de Miami utilizaram uma pesquisa nacional de 2022 para indicar que
um terço dos americanos concorda atualmente que lideranças estão substituindo
pessoas brancas por pessoas não brancas.
"Essas crenças
estão relacionadas a traços de personalidade antissocial, várias formas de
sentimentos nacionalistas e autoritários e sentimentos negativos em relação a
imigrantes, minorias, mulheres e o establishment político",
dizem os pesquisadores em um artigo publicado na revista científica Politics, Groups,
and Identities.
Ainda segundo os
autores, a combinação entre um público com predisposição para essas
características e a constante repetição das ideias por figuras de destaque
"pode criar uma tempestade perfeita" na qual comportamentos de estilo
vigilante e violentos se tornam cada vez mais frequentes.
·
Imigrantes ilegais nas
urnas?
No contexto político
americano, o tema também tem crescido a ponto de se tornar um elemento
significativo na corrida eleitoral americana.
O foco é justamente a
ideia infundada de que grandes grupos de imigrantes ilegais se preparam para
votar e influenciar o pleito a favor dos democratas.
"Certamente é uma
tentativa de provocar medo, ansiedade e pânico no eleitorado americano para
tentar beneficiar as alas mais à direita do Partido Republicano", afirma
Feola.
Uma reportagem recente do jornal The New York Times mostrou como advogados proeminentes, parlamentares,
influenciadores de direita e outros aliados de Trump têm feito pressão sobre as
autoridades eleitorais americanas para barrar o que acreditam ser uma massa de
imigrantes ilegais que pretendem votar nos democratas.
Segundo a reportagem,
essas figuras "têm pedido por expurgos de listas de eleitores, entrado com
ações judiciais, se preparado para monitorar locais de votação e espalhado
desinformação online", abrindo as portas para futuros questionamentos sobre
a credibilidade do pleito.
Não há, porém, nenhuma
evidência para sustentar essa narrativa.
Um estudo do Brennan
Center for Justice, uma organização sem fins lucrativos focada em questões de
votação e justiça criminal, analisou 42 jurisdições eleitorais nas eleições de
2016.
Nestes locais, os
votos indevidos de não cidadãos representaram 0,0001% do total de votos.
Mesmo a conservadora
Fundação Heritage, que mantém uma base de dados que se dedica a registrar casos
de fraude eleitoral, encontrou apenas 23 casos documentados de votação de não
cidadãos em todo o país entre 2003 e 2023.
Fonte: BBC News Brasil
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