sábado, 31 de agosto de 2024

Ministério da Moralidade do Talebã impõe novas regras aos homens e mulheres afegãos

O governo talebã afirma que um conjunto de novas leis aprovadas na semana passada no Afeganistão procura “promover a virtude e eliminar o vício”. As Nações Unidas classificaram a medida como “preocupante”.

Os regulamentos incluem a proibição de mulheres falarem alto em público e mostrarem o rosto fora de casa.

Um alto funcionário da ONU alertou no domingo que esses estatutos oferecem uma “visão preocupante do futuro para o Afeganistão”.

As novas leis já foram ratificadas pelo líder supremo do país, Haibatullah Akhundzada.

O Ministério da Moralidade, formalmente conhecido como Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício, afirmou que ninguém no país está isento de cumprir essas medidas.

As novas regras permitem que a mohtasabeen, ou polícia da moralidade, interfira na vida pública dos afegãos, desde a forma como se vestem até ao que comem ou bebem.

Segundo essa nova legislação, as vozes das mulheres também são consideradas um “vício” quando ouvidas em público. As restrições relativas a isso estabelecem que “sempre que uma mulher adulta sai de casa por necessidade, é obrigada a esconder a voz, o rosto e o corpo”.

O ministério já estava impondo requisitos morais semelhantes com base na sharia, ou lei religiosa islâmica, e informou que já deteve milhares de pessoas por não cumprirem as determinações.

Essas regras, segundo os talebãs, estão em linha com a interpretação da sharia e o Ministério da Moralidade é responsável pela sua aplicação.

Elas se baseiam em um decreto de 2022 do líder supremo que agora foi oficialmente publicado como lei.

<><> O que a lei diz sobre as mulheres?

A lei explica como as mulheres devem cobrir completamente os seus corpos, incluindo o rosto, “para evitar induzir os homens à tentação e ao vício”.

Abaixo estão outros itens:

  • A voz de uma mulher é considerada awrah e não deve ser ouvida em público. A palavra árabe awrah se refere às partes do corpo de homens e mulheres que devem ser cobertas e não devem ser visíveis em público.
  • As mulheres também não devem ser ouvidas cantando ou lendo em voz alta, mesmo dentro de suas casas.
  • As roupas femininas não devem ser finas, curtas ou justas.
  • As mulheres devem esconder os seus corpos e rostos dos homens com quem não são casadas ou não têm parentesco sanguíneo.
  • Os homens também estão proibidos de olhar para os corpos e rostos das mulheres, e o mesmo se aplica às mulheres adultas que olham para os corpos dos homens.

<><> Novas restrições para os homens

As novas leis de moralidade também impõem algumas restrições aos homens.

Eles agora são obrigados a cobrir o corpo do umbigo aos joelhos quando estão fora de casa, pois essas partes do corpo são consideradas awrah.

Os homens não podem pentear o cabelo de uma forma que vá contra a sharia.

Assim, os talebãs proibiram barbeiros de várias províncias de raspar ou aparar barbas de uma forma que destoe das novas leis, alegando que esse decreto está em conformidade com a sharia.

De acordo com os novos regulamentos, as barbas devem ter o comprimento de um punho. A lei da moralidade também proíbe os homens de usarem gravatas.

·        Quem são os 'mohtasabeen'?

Os mohtasabeen são responsáveis ​​pela aplicação dessas leis e operam em todas as províncias.

Com a promulgação da nova legislação, o seu poder executivo aumentou, especialmente porque contam com o total apoio do líder talebã.

Eles podem ser capazes de silenciar as vozes das mulheres ou a música que vem das suas casas e pedir aos homens que barbeiem ou cortem o cabelo caso não cumpram as restrições de penteado.

A lei diz que a polícia da moralidade também terá autoridade para impedir que os taxistas transportem nos seus carros mulheres que não estejam acompanhadas por um familiar próximo do sexo masculino, como um pai ou irmão adulto, ou que não estejam a usar o hijab conforme orientado na sharia.

Homens e mulheres também não podem se sentar lado a lado no carro.

·        Não são permitidas fotografias de seres vivos

A nova lei também proíbe a criação, preservação ou publicação de imagens de seres vivos e abrange desde desenhar um pássaro até tirar a foto de um membro da família.

Pela nova regra, também fica proibida a compra e venda de estátuas de seres vivos.

A lei pede à polícia moral que evite o “uso indevido” de gravadores e rádios, como tocar música, o que é considerado haram (algo proibido) pela sharia.

Também é proibida a produção e visualização de fotografias e filmes de seres vivos.

Mas, em contradição com as novas regras, quase todos os funcionários do governo Talebã apareceram diante das câmeras, incluindo Mohammad Khaled Hanafi, o ministro da Propagação da Virtude e da Prevenção do Vício.

·        Quais são as sanções?

A lei diz que se uma pessoa cometer abertamente um “ato repreensível”, ela estará sujeita a uma série de punições, que vão desde “ser avisada e assustada pela retribuição divina de Deus”, até multa e prisão de até três dias.

A promulgação da lei tem sido alvo de inúmeras críticas.

“Depois de décadas de guerra e no meio de uma terrível crise humanitária, o povo afegão merece muito mais do que ser ameaçado ou preso se se atrasar para as orações, olhar para alguém do sexo oposto que não é membro da sua família ou possuir a fotografia de um ente querido”, disse Roza Otunbayeva, chefe da Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão.

·        Não se aplica em todo o país

O governo talebã impôs um regime teocrático, mas em algumas partes do país, incluindo a capital, Cabul, a lei não está sendo aplicada de forma sistemática.

Uma fonte do Ministério da Moralidade disse à BBC News que eles estavam trabalhando em uma nova estrutura para poder aplicar o estatuto de forma mais ampla.

Segundo a fonte, uma vez finalizado esse plano haverá mais clareza na aplicação da lei.

No resto do país, a maior parte das suas implicações está em vigor.

O Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício é um dos órgãos governamentais mais ativos no Afeganistão.

E foi relatado que no ano passado a polícia moral deteve temporariamente mais de 13 mil pessoas por não cumprirem a sharia.

 

¨      Como calças cor-de-rosa ajudaram australiana a suportar 804 dias em temida prisão iraniana

"Deveria ter sido uma rápida viagem ao Irã. Eu ficaria no país por duas semanas e meia e voltaria para casa para continuar com a minha vida", recorda Kylie Moore-Gilbert.

A acadêmica australiana-britânica, especializada em ciências políticas do Oriente Médio, havia sido convidada para uma conferência na cidade iraniana de Qom, a cerca de 150 km da capital do país, Teerã.

Moore-Gilbert se especializou nos Estados árabes do Golfo Pérsico e falava árabe e hebraico. Ela vinha estudando o Irã, mas não falava farsi, o idioma do país.

Tudo ia bem até um pouco antes de voltar. Ela havia feito amizade com o recepcionista do hotel, que a procurou e contou que "alguns homens muito maus" haviam vindo buscá-la.

"É claro que fiquei preocupada", ela conta, "mas meu voo sairia no dia seguinte, achei que ficaria bem".

Mas, no controle de passaportes no aeroporto, alguns homens vestidos de preto se aproximaram dela. Moore-Gilbert não sabia que eles eram da Guarda Revolucionária Iraniana.

Depois de mantê-la em uma sala de interrogatório por cerca de oito horas, eles a levaram para um apartamento. Ali, eles a interrogaram durante horas enquanto a filmavam.

Moore-Gilbert foi acusada de espionagem, o que ela sempre negou e nunca foi provado.

No dia seguinte, "eles me levaram para um hotel com uma equipe de vigilância e fiquei detida por uma semana. Eles me interrogavam diariamente".

Em circunstâncias como aquela, o pior sempre vem à mente. Mas Moore-Gilbert conta que "naquele momento, eles ainda não haviam decidido o que fazer comigo, de forma que me tratavam comparativamente melhor do que quando me colocaram na prisão".

"Havia dois grupos distintos", relembra ela. "Um deles queria me recrutar para coletar informações no exterior. Eles mencionaram isso desde a primeira noite da minha prisão e durante quase todo o tempo que passei no Irã."

"Depois daquela semana, eles me levaram para a prisão. Eles me colocaram na solitária e começaram a se comportar de forma muito mais surpreendente."

<><> Isolamento e incerteza

Kylie Moore-Gilbert estava na prisão de Evin, conhecida por abrigar prisioneiros políticos, antes e depois da Revolução Islâmica de 1979.

A prisão tem uma ala apelidada de "Universidade Evin", devido ao grande número de intelectuais que recebe. Ela foi criticada por grupos ocidentais de defesa dos direitos humanos e incluída na lista negra do governo americano em 2018, por "graves abusos dos direitos humanos".

A acadêmica "sequer sabia que estava em uma prisão". "Mas, verificando a mudança de tratamento, entendi que estava em sérios problemas."

Moore-Gilbert foi mantida na solitária.

"O isolamento é uma tortura psicológica", ela conta. "Foi idealizado para destruir você para o interrogatório."

"Havia muitas privações físicas, sensoriais. Eu estava frequentemente mascarada, sem poder ver. Quando me tiravam da cela, eles me levavam por um labirinto de corredores até o bloco de interrogatórios, com os olhos vendados."

"Ali, eu ouvia muitos homens falando comigo agressivamente em farsi. Eu não entendia, mas receava que eles pudessem me agredir sexualmente. Mas, naquela fase, eles não me causaram danos físicos, embora tenham posteriormente me batido."

Ela calcula que aquela fase tenha se estendido por quatro meses.

"Você fica em uma cela de 2 x 2 metros, sem luz natural e não tem como saber as horas", relembra Moore-Gilbert.

"Você não sabe se será interrogada naquele dia ou não. E, se for, quando e por quanto tempo. Nada é previsível e esta incerteza alimenta sua agitação mental."

Kylie Moore-Gilbert passou grande parte da sua condenação em regime de isolamento.

"O período mais longo foi de sete meses. Em certo sentido, é pior do que a tortura física, ela devora você por dentro."

"Mas o primeiro mês foi o pior: a solidão extrema."

·        'Não estava sozinha!'

Para sobreviver àquele pesadelo, Moore-Gilbert compreendeu que não tinha outra opção a não ser controlar a mente.

"Você precisa viver sua vida segundo a segundo, minuto a minuto, concentrada no presente", ela conta.

Ela precisou colocar de lado todos os lamentos e conjecturas sobre o que a teria levado até ali, bem como toda a ansiedade sobre o que eles poderiam fazer com ela no futuro.

Ela passava o tempo fazendo "exercícios, jogos e truques mentais para me manter saudável, contando ou memorizando coisas, imaginando padrões nos azulejos da parede".

Moore-Gilbert também se imaginava caminhando por lugares conhecidos, mas evitando recordações emotivas, para não se entristecer.

"A raiva provavelmente foi a emoção mais difícil de controlar, porque ela se renovava constantemente", relembra ela. "Cada interação com os guardas ou com meus interrogadores a provocava."

Em meio àquela solidão, surgiu o impensável: um canal ilícito de comunicação com algumas detentas nas outras celas de isolamento. Duas delas ouviram Moore-Gilbert falando com os guardas no corredor.

"Eles ouviram esta mulher estrangeira em apuros", relembra ela. "Elas falavam inglês, queriam me oferecer apoio e se arriscaram."

Moore-Gilbert conta que havia um varanda aonde eles a levavam, uma a uma, para passar meia hora pela manhã e meia hora à tarde. Tudo era controlado com muito rigor por dois guardas, mas era possível ouvir suas vozes, o que lhes permitia tentar adivinhar quando estavam menos expostas às câmeras.

"Elas observaram tudo isso e organizaram algumas folhas para chamar minha atenção para um vaso, onde haviam deixado um saco plástico com nozes e frutas secas", relembra ela.

"Quando vi aquilo, foi extraordinário. Sabendo que estava sendo monitorada, eu agarrei o saco e o escondi. E, ao voltar à minha cela, de costas para a câmera, abri o pequeno saco."

"Fui um verdadeiro prazer. Elas haviam me presenteado com algo que também era muito precioso para elas."

"Havia também uma bola feita com um pedaço de papel higiênico, dizendo: 'Querida Kylie, somos suas amigas. Você não está sozinha'."

"Elas haviam escrito com o canto de um pedaço de chocolate que haviam conseguido de alguma forma", ela conta. "Elas tinham uma caneta escondida, mas receavam que a mensagem fosse interceptada ou que eu não fosse digna de confiança."

"Senti uma emoção incrível. Sempre que podia, voltava a ler a mensagem. Elas sabiam meu nome, eram minhas amigas, eu não estava sozinha!"

·        Recados e vozes

Aquele foi o primeiro de diversos recados, já que Moore-Gilbert conseguiu roubar uma caneta e responder para elas. E também começou a se comunicar com mulheres de outras celas.

"Havia diversas redes de mensagens, de forma que muitos recados ficavam por ali, escondidos em muitos lugares diferentes", relembra ela.

"Depois de cerca de seis meses, inventei um método muito seguro: as calças viajantes."

"O uniforme da prisão incluía umas calças folgadas de calicô rosa brilhante, que podíamos lavar manualmente em uma lavanderia comum."

"Uma das prisioneiras saiu e deixou suas calças ali, de forma que as peguei e abri a costura de uma das pernas, para poder colocar uma mensagem. Se molhássemos as calças, com exceção daquela pequena região da perna, parecia que ela teria sido lavada e pendurada para secar."

"E, quando todas entenderam que aquelas eram as calças viajantes que serviam para passar recados, começamos a usá-las", descreve ela. "Alguém depositava um recado, a cela seguinte recolhia as calças como se fossem suas... assim, a cada dois ou três dias, recebíamos cartas novas."

Mas havia outra forma de comunicação anterior, que permitiu a Moore-Gilbert ouvir as vozes de amigas que nunca havia encontrado antes.

"Havia uma rede de grades de ventilação de ar na unidade onde fiquei em isolamento", descreve Moore-Gilbert. "Era perigoso falar por aqueles respiradouros porque os guardas, se estivessem em uma determinada parte do edifício, iriam nos ouvir."

"Mas, às vezes, conseguíamos ouvir uma televisão, de forma que deduzíamos qual turno de guarda era mais seguro para falarmos."

"Nós nos comunicávamos batendo na parede e, quando as outras respondiam, eu ficava sobre o vaso sanitário para conversar por cinco minutos."

Naqueles curtos momentos, Moore-Gilbert conseguiu começar a entender coisas que ela não sabia.

"Ouvir vozes amistosas em inglês era maravilhoso", relembra ela. "E elas podiam me dizer muito mais verbalmente do que em um pequeno pedaço de papel higiênico."

"Pude receber muitas informações sobre o que me aconteceria e sobre coisas como a diplomacia dos reféns, o fato de que o Irã toma para si os estrangeiros e os utiliza como moeda de troca para obter algum tipo de concessão do seu país de origem."

"Elas me diziam: 'Não faça confissões falsas. Seja como for, no final, eles irão trocar você por algo, de forma que não se preocupe."

"Eles podem dar a você qualquer sentença, mas não irão cumprir. Vão tentar se aproveitar de você para conseguir algo da Austrália ou do Reino Unido. Um desses países irá dar algo para o Irã em troca de você'."

"Aquelas mulheres me deram esperança", conta Moore-Gilbert.

·        Elas tinham razão

Com isso, Kylie Moore-Gilbert passou mais de dois anos rejeitando, em centenas de horas de interrogatórios, as diversas acusações que eram sucessivamente apresentadas: de ser agente de órgãos de inteligência como o Mossad israelense, do MI6 britânico ou espiã da Austrália.

Ela não fez nenhuma confissão e se negou a aceitar repetidas propostas de espionar para o Irã.

Mesmo assim, ela foi julgada por Abolqasem Salavati, conhecido como o "juiz da forca", pelo número de sentenças de morte que ele impunha. E, inevitavelmente, foi declarada culpada e condenada a 10 anos de prisão.

A esperança oferecida pelas suas amigas ressurgiu quando ela compreendeu que, de fato, era uma refém esperando para ser trocada. Mas, um ano depois da sua detenção, quase ninguém sabia sobre a difícil situação de Kylie Moore-Gilbert.

O governo australiano disse à sua família que não levasse a situação a público. Eles insistiam que a estratégia mais eficaz seria a "diplomacia silenciosa".

Mas algumas detentas que saíram do confinamento deixaram vazar a notícia de que havia uma australiana em Evin. Com isso, a informação deixou de ser segredo.

Posteriormente, cartas que a própria Moore-Gilbert conseguiu enviar secretamente chegaram às mãos da imprensa britânica, até que começou uma campanha pública para sua libertação.

A movimentação fez com que suas condições na prisão melhorassem, até que finalmente aconteceu aquilo que suas amigas haviam antecipado. Sua liberdade foi obtida com uma complicada troca de prisioneiros, que teve a participação de quatro países.

Três iranianos, condenados por uma tentativa de atentado a bomba contra a Embaixada de Israel em Bangkok, na Tailândia, foram libertados de uma prisão local.

A notícia da troca de prisioneiros foi publicada pela primeira vez no site do Clube de Jovens Jornalistas, afiliado à TV estatal do Irã.

Segundo o site, "um empresário e dois cidadãos iranianos que estavam detidos no exterior por acusações infundadas foram trocados por uma espiã com dupla nacionalidade chamada Kylie Moore-Gilbert, que trabalhava para o regime sionista".

Moore-Gilbert foi libertada em novembro de 2020, durante a pandemia de covid-19. Por isso, assim que aterrissou na Austrália, foi levada para um hotel, para passar a quarentena. E, curiosamente, as semanas de solidão em solo australiano acabaram sendo uma bênção para ela.

"Eu havia ficado em isolamento por sete semanas muito difíceis e dolorosas antes da minha libertação", relembra ela. "Por isso, aquilo me permitiu voltar lentamente à realidade, interagindo pouco a pouco com as pessoas."

"Embora estivesse afastada da maior parte da humanidade, eu tinha acesso à internet e ao telefone, de forma que ligava para as pessoas quando tinha vontade de falar."

"Se tivessem me lançado imediatamente de volta ao mundo, teria sido muito difícil. Realmente, aquilo foi positivo."

 

Fonte: BBC News Persian/Série Outlook - Serviço Mundial da BBC

 

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