Ann Pettifor: Crescimento - seis décadas de
ilusões
“Crescimento” é um
termo usado por economistas que têm em vista uma atividade econômica ampliada:
um aumento no investimento, emprego, bens e serviços. Também é usado, de forma
pejorativa, por ambientalistas convencidos
de que a expansão interminável da atividade econômica em um mundo com recursos
finitos é insustentável. Eles empregam mais comumente seu antônimo,
“decrescimento” – como em The Future Is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism [“O futuro é decrescimento: Um guia para um mundo além do
capitalismo”]. O uso e a evolução de “crescimento” e sua ligação com o PIB
representam uma etapa importante no surgimento do sistema atual de governança
econômica global, baseado nas expectativas de “crescimento” contínuo, por sua
vez facilitado pela desregulamentação financeira e mobilidade de capital. Tal
“crescimento”, no contexto do capitalismo financeirizado, levou a
desequilíbrios ecológicos, sociais e econômicos que ameaçam provocar colapso sistêmico.
Os fluxos globais de
liquidez, consequência do desenvolvimento do sistema financeiro, são
canalizados em grande parte por instituições financeiras não bancárias, também
conhecidas como “bancos-sombra” [shadow banks]. Segundo o Conselho de Estabilidade Financeira, o valor total dos ativos financeiros detidos pelos
bancos-sombra em 2022 totalizou 217 trilhões de dólares – mais que o dobro do
PIB mundial. Por definição, essas instituições operam além do alcance da
democracia regulatória, embora estejam vinculadas aos bancos centrais do mundo.
Suas atividades impactam a formulação de políticas econômicas pelos Estado e
representam riscos sistêmicos para a economia mundial.
Para reimaginar a
governança econômica global, precisamos voltar no tempo e examinar o surgimento
de um sistema de “não governança” econômica global, ou um “não sistema”, para
citar o economista colombiano José Antonio Ocampo. Uma “não
governança” que levou à criação do sistema bancário sombra e a desequilíbrios
financeiros e econômicos globais desestabilizadores.
·
As Origens do “Crescimento” e da
Desregulamentação
A história começa com
o economista britânico John Maynard Keynes. Na década de 1930, Keynes
desempenhou um papel muito maior na criação e construção das contas nacionais
do Reino Unido (e, por fim, do mundo) do que geralmente se reconhece. Fez isso
não com o propósito de contabilidade, mas para avaliar o nível existente de
renda em relação ao nível potencial, sob certas condições
políticas.
O valor do que então
era conhecido como “renda nacional”, e que veio a ser definido por Simon Kuznets como
“PIB”, era de menor interesse para Keynes. Como explica Geoff Tily, Keynes
considerava a criação desta conta como um meio para um fim, não um fim em si
mesmo. “As contas nacionais foram desenvolvidas para apoiar a política:
resolver a crise do desemprego da Grande Depressão e ajudar no uso pleno dos
recursos nacionais para a condução da Segunda Guerra Mundial.” É importante
reconhecer, continua Tily, que
essas
iniciativas teóricas e práticas visavam ao emprego ampliado, e em seguida
pleno, dos recursos; e à plena extensão da produção nacional – muito mais do
que ao crescimento da atividade. Nesta fase, não havia noção, por parte dos
formuladores de políticas, de que o nível de atividade poderia ser estimulado
de maneira sistemática ou uniforme de ano para ano; a intenção era alcançar
mudanças de nível pontuais. Não há dúvida de que eles foram bem-sucedidos nesse
objetivo e em sustentar esses ganhos na era dourada do pós-guerra.
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A Revolução do “Crescimento”
Essa abordagem das
contas nacionais mudou radicalmente no final dos anos 1950 e início dos anos
1960. No Reino Unido, vários economistas profissionais – entre eles, Sir Samuel
Brittan, colunista proeminente do Financial Times – defenderam
um novo conceito de “crescimento” contínuo e se definiram como “os homens do
crescimento” [the growthmen]. Foi uma abordagem que mudou o caráter da
política ao longo da era pós-guerra. Abandonando o objetivo de fixar o nível de
emprego e de produção em níveis sustentáveis, os governos passariam a
estabelecer uma meta sistemática e improvável: perseguir o crescimento. Ninguém
parece ter parado para considerar se o crescimento – calculado como a taxa de
variação de uma função contínua – era uma maneira significativa ou válida de
interpretar as mudanças no tamanho das economias ao longo do tempo, escreve Tily.
Em paralelo, a
política econômica passou a enfatizar cada vez mais as abordagens a partir da
produção [supply-side approaches]e, na prática, um compromisso com a
desregulamentação da atividade econômica. Isso é exemplificado pelo Conselho da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que adotou, em
12 de setembro de 1961, um “Código para a Liberalização dos Movimentos de
Capital”. Esse código, uma estrutura para a remoção progressiva de barreiras
aos fluxos de capital entre países, presumivelmente foi projetado para
viabilizar o que Tily chama de
“ambição ridícula de crescimento rápido e incessante, independentemente da
capacidade do mercado de trabalho”.
Em outubro de 1961, a
OCDE realizou uma conferência sobre “Crescimento Econômico e Investimento em
Educação” no Brookings Institution em Washington. Encorajada por economistas
“clássicos” e desanimada com os níveis de atividade econômica – que eram altos,
mas sustentáveis – a OCDE propôs impulsionar drasticamente as economias do
Reino Unido e de outros países. Na época, o Reino Unido estava na feliz
situação de assegurar pleno emprego. Nas palavras do então primeiro-ministro
Harold Macmillan, os britânicos “nunca tiveram uma situação tão boa”. Em 17 de
novembro de 1961, a OCDE concordou com uma meta de crescimento de 50% para o
Reino Unido de 1960 a 1970. Equivalia a 4,1% ao ano. Na época, a taxa de
desemprego britânica era de 1,2%.
O resultado destas
metas excessivamente ambiciosas era totalmente previsível – uma época de
inflação desenfreada nos anos 1970, seguida por períodos de excessos
financeiros e crises recorrentes. A culpa por essa inflação tem sido atribuída,
injustamente, a Keynes e ao movimento trabalhista. Na verdade, a tentativa de
alcançar uma meta de crescimento muito implausível, em condições de quase pleno
emprego, levou à desconstrução do legado de Keynes: a “idade de ouro” do
capitalismo de 1945 a 1971. Acima de tudo, levou ao desmantelamento do sistema
de governança econômica global gerida, que fora estabelecido na conferência de
Bretton Woods, em 1944.
·
A questão Governança Econômica Global
Na introdução de seu
livro Who Governs the Globe? [“Quem
governa o mundo?”], Deborah Avant, Martha
Finnemore e Susan Sell argumentam que o termo técnico “governança” obscurece o
papel desempenhado pelos que dirigem de fato do mundo. Tais abstrações absolvem
de sua responsabilidade indivíduos e instituições poderosas, incluindo atores
não estatais. Além disso, como elas explicam,
As
estruturas estatais não dão conta (…) da governança real existente no mundo
hoje. Apenas uma pequena fração da atividade de governança global envolve
representantes do Estado negociando apenas entre si (…) Globalização,
desregulamentação, privatização e mudança tecnológica capacitaram atores não
estatais. Grande parte da literatura sobre governança global a equipara,
implícita ou explicitamente, à provisão de bens públicos globais… [Na verdade,]
os resultados da governança frequentemente estão desconectados tanto do público
quanto do bem. A inação global sobre as mudanças climáticas, a falta de acesso
às vacinas contra HIV/AIDS e COVID são exemplos proeminentes. O colapso
financeiro global de 2007–09 é outro.
A ausência de
governança pelos Estados na economia global levou a um sistema econômico
internacional que, na prática, é governado não por autoridades públicas (ou
seja, democráticas), mas privadas – mesmo quando instituições públicas
financiadas pelos contribuintes desempenham o papel de subsidiar, reduzir
riscos e resgatar instituições financeiras privadas.
Graças à mobilidade do
capital, atores privados no sistema financeiro internacional exercem influência
indevida sobre políticas vitais para a estabilidade econômica dos Estados,
incluindo taxas de câmbio, taxas de juros e fluxos globais de investimento, capital
e comércio. Essa perda de autoridade pública sobre as economias global e
doméstica levou à desilusão com a democracia. Acima de tudo, gerou níveis
obscenos de desigualdade dentro e entre os Estados. Essa desigualdade, como
Michael Pettis e Matthew C. Klein ilustram em seu livro Trade Wars Are Class Wars [“Guerras comerciais são guerras de classe”]ajudou a criar desequilíbrios nas contas comerciais e de capital
entre os Estados.
O modelo econômico
global que surgiu da revolução do crescimento dos anos 1960 volta as economias
não para a esfera doméstica – mas para os mercados de capitais internacionais
desregulados e as exportações. A orientação para exportação de economias como a
da Alemanha e a China aumenta a renda do 1% mais rico – os proprietários e
acionistas de corporações orientadas para exportação. As rendas dos 99%
restantes – os salários dos trabalhadores na economia doméstica – são
deprimidas. A Fundação British Resolution calcula que, após quinze
anos de estagnação, as rendas no Reino Unido estão em média £230 [R$ 1700]
abaixo de antes da crise financeira global de 2007–2009. O Congresso dos
Sindicatos [Trade Unions Congess] argumenta que os
trabalhadores suportaram o mais longo aperto salarial desde as guerras
napoleônicas, no início do século XIX.
No entanto, o problema
é: o 1% mais rico não gasta toda a sua renda. Há limites para o número de
superiates, jatos particulares e propriedades luxuosas que seus integrantes
podem comprar. Em contraste, os 99% gastam toda a sua renda—usando-a para
manter seu teto, comprar comida, proteger sua saúde e enviar seus filhos para a
escola. No entanto, como as rendas caíram em termos reais, as populações
passaram a carecer do poder de compra necessário para adquirir tudo o que é
produzido pela economia orientada para exportação. Não é que o poder de compra
da sociedade esteja buscando bens e serviços escassos; há, ao contrário, muitos
bens e serviços disponíveis, disputando o pequeno poder de compra das maiorias.
Esse desequilíbrio levou a altos níveis de dívida privada, à medida que os 99%
tomam dinheiro emprestado para habitação, saúde e alimentação, ao mesmo tempo
em que as empresas (que não conseguem vender tudo o que produzem) tomam
empréstimos para compensar a queda nas vendas.
As consequências são o
oposto da teoria econômica convencional: superprodução, altos níveis de dívida
privada e rendas em queda. A experiência mostrou que todos esses elementos
levam a crises financeiras globais.
·
O que precisa ser feito?
As políticas de Keynes
para níveis estáveis de produção e emprego exigiam um sistema econômico global
que apoiasse a formulação de políticas domésticas – em vez de se opor a elas.
Ao preparar o Tesouro Britânico para a conferência de Bretton Woods, Keynes
explicou à Câmara dos Lordes em 1944 que sua “principal tarefa nos últimos
vinte anos” tinha sido garantir que
no futuro,
o valor externo da libra esterlina estará conforme a seu valor interno,
estabelecido por nossas próprias políticas domésticas, e não o contrário. Em
segundo lugar, pretendemos conservar o controle sobre nossa taxa de juros
doméstica, para que possamos mantê-la tão baixa quanto convier aos nossos
próprios propósitos, sem interferência do fluxo e refluxo dos movimentos
internacionais de capital ou voos de dinheiro especulativo. Em terceiro lugar,
embora pretendamos prevenir a inflação em casa, não aceitaremos a deflação
ditada por influências externas. Em outras palavras, rejeitamos os instrumentos
de taxa bancária e contração de crédito operando através do aumento do
desemprego como um meio de forçar nossa economia doméstica a se alinhar com
fatores externos.
Keynes assumiu que um
sistema monetário voltado principalmente aos interesses das finanças e da
riqueza se opunha a níveis estáveis de produção e emprego doméstico e, em
última análise, a relações comerciais e financeiras equilibradas entre Estados.
Dado o entendimento científico atual sobre os recursos finitos da Terra, é
evidente que um sistema econômico global baseado em juros compostos
sucessivamente acumulados e em concentração de capital também se opõe a um
clima e ecossistema estáveis. A crença na viabilidade e continuidade de tal
sistema é utópica. Dada a crise ambiental, as populações que se defrentam com
condições climáticas cada vez mais duras e com quebras de colheitas e de
geração energética terão que transformar urgentemente o “não sistema” mundial,
para estabilizar as economias domésticas.
A estabilidade
econômica global exigirá a restauração do equilíbrio ao sistema comercial
internacional e a reorientação das economias. Ao invés de dirigidas para o
sistema financeiro global, elas precisarão priorizar aos interesses econômicos
domésticos, em particular os da maioria: os 99%. Em outras palavras, a economia
global precisa ser levada para longe dos interesses da riqueza globalizada e em
direção aos interesses dos trabalhadores na economia doméstica. Devemos
novamente construir uma economia para o trabalho—especialmente o trabalho de
restaurar o equilíbrio ao ecossistema—e não para a riqueza.
Se queremos manter a
aposta na democracia e afastar a ameaça das forças autoritárias, as sociedades
devem cooperar para ajudar a restaurar a autoridade pública, democrática e
responsável sobre a economia global e doméstica. Essa transformação só pode ser
alcançada se a comunidade internacional trabalhar em solidariedade para
restringir e gerenciar os fluxos globais de capital e comércio. Para isso será
necessária uma nova forma de governança econômica global, baseada na cooperação
e coordenação internacional—e em atividade econômica equilibrada e sustentável.
Um dos modos de
fomentar a solidariedade internacional é desmantelando o sistema financeiro com
mobilidade de capital irrestrita, baseado em uma moeda de reserva hegemônica—um
sistema tão prejudicial aos cidadãos do hegemon quanto a
muitos outros Estados, como argumenta Michael Pettis. E é
essencial para qualquer movimento rumo a “um mundo além do capitalismo”
abandonar o sistema que turbinou a globalização: o mito do “crescimento”, visto
como variação de uma função contínua.
Fonte: Outras Palavras
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