Francisco Pereira Farias: ‘O serviço
governamental’
O serviço
governamental existe por sua utilidade, por satisfazer uma necessidade humana.
A função do serviço é atender o governado, e não o governante
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A norma
O programa de governo
da formação social na qual a generalização de interesses é organizada pelo
“Estado capitalista” (Poulantzas, 1972) aparece como um conjunto de serviços.
Por conseguinte, a análise do serviço, elemento simples desse programa,
torna-se o ponto de partida de nossa exposição.
O serviço
governamental existe por sua utilidade, por satisfazer uma necessidade humana.
A função do serviço é atender o governado, e não o governante; se o governante
faz uso do serviço, assume o papel de governado, torna-se receptor do serviço,
sendo ao mesmo tempo governante e governado, constituindo-se o autogoverno de
um grupo.
O governante fornece
uma coisa ao governado, que em troca lhe entrega outra de finalidade distinta
da recebida, pois a troca de coisas semelhantes não tem serventia. Veremos a
seguir em que consiste essa retribuição.
A relação entre
governante e governado exige a reciprocidade. Não é viável que o governado
receba uma coisa do governante e não o retribua, sob o risco de ver cessado o
suprimento de suas carências por parte do governante, que se sentirá autorizado
a interromper o serviço caso a reciprocidade seja suspensa.
A reciprocidade entre
governante e governado estabelece, portanto, um regulador capaz de indicar
qualquer desvio de função, seja do governante, seja do governado. Cada um se
orienta pela conduta do outro; e isso produz uma regra que disciplina seus
papéis.
O surgimento dessa
norma disciplinadora expressa uma qualidade no desempenho dos papéis de
governante e governado. A norma consiste em abstrair o que há de diferente no
comportamento de ambos e reter o que existe em comum, já que ela, no que tem de
geral, é válida a cada um. Em consequência, os comportamentos serão submetidos
a uma norma espontânea que, pela obediência, constitui condição necessária à
existência da interação.
A obediência a essa
norma é a satisfação dos interesses de governantes e governados. Mas o
interesse, uma finalidade construída socialmente, não pode ser o verdadeiro
condicionante da predisposição à obediência, porque os fins representados
remetem à condição particular de governante ou governado. Para obter êxito na
interação, cada um tem de levar em conta os interesses do outro. Ora, não se
trata apenas de satisfazer as carências do governado, mas de fazê-lo de modo
justo, ou seja, de maneira a não tornar o governante inclinado a bloquear a
continuidade do gozo do desejo do primeiro. Ambos precisam olhar para além de
seus interesses especializados, concretos, e mirar o interesse comum, geral.
O hábito também não
pode ser fator determinante da continuidade da relação de reciprocidade, pois
ele constitui mais a reiteração do sentimento em se manter dentro de uma linha
de conduta do que a fonte de permanência da relação recíproca entre governante
e governado. A conduta desviante, à margem da esfera da norma, surge como um
contraexemplo do caminho a ser seguido. O desvio, ele mesmo, se explica como
uma falha no processo de socialização dos indivíduos que compõem a
coletividade. Por isso a punição envolve antes o grupo do que o indivíduo.
Logo, a predisposição
para obedecer à norma nasce para além de condições aparentes – o interesse, o
hábito –, que poderiam ser tomadas como causa. É preciso abstrair o que
aparenta ligar a obediência a condicionantes visíveis, de caráter concreto, e
fixar o aspecto abstrato da norma enquanto tal. Se pusermos de lado o sentido
de que a predisposição de seguir a norma está relacionada ao interesse e ao
costume, ficamos com a implicação da predisposição à obediência ligada à norma
pura. Trata-se de uma inclinação espontânea, efeito de uma causa abstrata – a
norma simplesmente ou a normatividade.
As funções de
governante e governado exigem, assim, a submissão à normatividade – espontânea,
implícita, inconsciente –, condicionante reiterativa da prática (= conduta
orientada pela abstração) de cada um. A norma primeira assumirá a forma do
imperativo funcional: cada um deve obedecer à reciprocidade, em vista da
utilidade de sua função no tipo de ordem coletiva. Trata-se de indicar o meio,
o dever da reciprocidade, a atingir o fim, a satisfação de carências em dada
época histórica.
Mas o trabalho de
tornar a norma visível, explícita, consciente – numa palavra,
institucionalizada – distingue o governante (líder) do governado (liderado).
Expressar a norma com eficiência e eficácia se torna prerrogativa do discurso
do líder, pois requer treinamentos específicos. O dever do líder é, então,
realizar aquilo que o liderado não tem como fazer, ou seja, institucionalizar a
norma e dar orientação às práticas sociais; ao liderado cabe retribuir com a
consciência na capacidade do líder de orientar e com o seguimento à norma
instituída. Se é própria do líder a direção, torna-se própria do governado a
obediência.
O governado sente a
necessidade de normas específicas que garantam a continuidade de suas relações
de reciprocidade (produtiva, familiar etc.). Impõe-se assim ao líder a tarefa
de produzir um conjunto de normas institucionais, as leis positivas. As normas
são ditadas pelo governante sob a forma de leis e seguidas pelos governados em
suas práticas. Assim, a norma e a lei, bem como os seus efeitos práticos ou as
suas efetividades, constituem o âmbito do direito.
A função governativa
consiste, em primeiro lugar, em formular a lei comum (geral), condição de
existência das leis específicas, relativas a cada espécie de relação de
reciprocidade. A lei geral precisa se particularizar nas formas referentes à
variedade de relação entre os indivíduos. Assim, a função diretiva envolve o
movimento da lei em geral com as leis particulares. Tem-se, pois, a função
legislativa do governo.
Porém, o direito, como
mandamento que visa disciplinar as relações sociais, só tem efetivação através
de outra função de governo, a função executiva. Se há desavenças na
interpretação da lei particular, caberá a um mandatário do governo, o juiz,
resolver a questão. O juiz, por sua vez, terá de contar com outro mandatário, o
policial, para, se necessário, coagir as partes a acatarem o juízo.
Torna-se evidente que
é dever do governo não apenas fazer as leis, mas também dispor dos meios para
que sejam aplicadas. Nesses meios estão incluídos os funcionários, as armas, os
impostos – enfim, o governo se organiza num quadro administrativo.
As normas de
organização das tarefas e dos recursos governamentais tendem a formar um todo,
o sistema das regras administrativas. Têm-se as normas em comum entre, de um
lado, as regras de distribuição das funções governativas em aparelhos
legislativo e executivo e, de outro lado, os dispositivos a respeito da
influência dos governados no funcionamento dos aparelhos governamentais.
·
A lei
O governante já dispõe
do modelo inicial da norma: o imperativo condicionado ou funcional. Trata-se
agora de adaptá-lo, adotando a forma de conhecimento mais conveniente a ser
operada no contexto primordial, a crença. Os governados precisam crer nas leis
instituídas para que não seja necessário que a coletividade reabra pesquisas,
debates e formulações das leis básicas a cada nova geração, o que poderia
inviabilizar a sobrevivência da comunidade inicial, carente de recursos, dado o
grau de desenvolvimento do trabalho social (Durkheim, 2003).
A norma em sua forma
institucional, presente nos serviços governamentais, é a manifestação visível
do sentido da norma, uma vez que a norma institucional diz respeito ao índice
(forma denotativa) da norma, e não à norma enquanto tal (forma conotativa). A
forma conotativa da norma, chame-se a norma estrutural, assume uma relação de
causa específica, metonímica, com sua forma denotativa, a norma institucional.
A vigência da norma institucional (manifesta, concreta) torna-se, pois, o signo
da realidade da norma estrutural (latente, abstrata).
Tem-se a
transformação, pelo legislador, do imperativo funcional (condicionado) em
imperativo categórico (incondicionado), pois própria do sistema de crenças a
representação incondicionada ou o princípio. A fórmula do princípio na
coletividade inicial terá por base em seu enunciado a tradição (a
ancestralidade). De início, está excluída a fórmula do princípio da razão, o
postulado; pois isso exigiria um treinamento das novas gerações no conhecimento
da matemática racional, da lógica, só viável pela organização do sistema
escolar.
Da mesma forma,
encontra-se excluída a fórmula do princípio do carisma, a revelação; já que a
preservação do testemunho de indivíduos com qualidades excepcionais (o carisma)
pediria a forma escrita de relato, e não apenas sua forma oral, mais passível
de distorções ou de se perder. Em ambos os casos, seriam exigidas elevadas
contrapartidas de fundos públicos para a educação das novas gerações. Diz,
pois, a tradição: “tu deves respeitar a reciprocidade!”.
Enfim, o conhecimento
das leis numa coletividade ainda não cindida entre os poderosos (ricos) de um
lado e os fracos (pobres) de outro – em que o governante não tem de dispor da
profissionalização da violência, pois o chefe tribal não precisa nem da sofisticação
de leis, para desestimular a subversão de grupos oprimidos e pobres, nem do
monopólio de armas, já que o grau de conflitos internos é baixo dada a
igualdade socioeconômica – será de tipo mítico. Uma vez que o objetivo da
liderança governamental não seja oprimir, mas sim fazer com que as leis sirvam
às aspirações de todos, evitando que a ordem jurídica privilegie os interesses
de qualquer minoria social, é suficiente que a enunciação da norma ou a autoria
da lei se vincule à memória social, à tradição oral das gerações passadas,
traduzida em linguagem alegórica ou poética.
Inversamente, numa
coletividade cindida em classes sociais – poderosos (ricos) de um lado e fracos
(pobres) de outro, na qual se têm de dispor da profissionalização e o monopólio
da violência legitimada (Estado), pois a subordinação de classe precisa de regras
sofisticadas e de armas regulares que desestimulem a subversão dos pobres e
façam frente ao elevado grau de conflitos –, o conhecimento prevalecente será
de tipo pós-tradicional: carismático (doutrina religiosa) ou racional
(filosofia jurídica).
Dado que o desejo dos
poderosos é oprimir, isto é, fazer parecer que as leis servem às aspirações de
todos, e não à ordem que privilegia os interesses dos ricos, a autoridade da
norma jurídica se apoiará menos na tradição mítica do que nas formas mais elaboradas
de conhecimento tido por incondicionado – o dogma religioso e o axioma
filosófico (Machiavelli, 1987).
Diferentemente dos
discursos de crença – o mito, a religião, a filosofia –, há outro tipo de
conhecimento jurídico-administrativo (a lei e a efetivação da lei) ou
conhecimento político. E que conhecimento seria esse? A pesquisa, produto da
prática científica, tem, como qualquer mercadoria, um valor de troca e um valor
de uso. Como valor de troca, ou seja, o trabalho socialmente necessário em sua
produção, o resultado da investigação cobra um preço ao consumidor; e como
valor de uso, isto é, a satisfação de conhecimento, esse produto está submetido
à norma que estabiliza a relação entre o cientista e o leigo. Mas quem são os
consumidores do discurso de ciência? Em primeiro lugar, o dirigente
governamental.
Na origem, esse
dirigente formula uma lei voltada às necessidades dos governados, cuja condição
de vigência é a crença na norma. Mas o governante, a fim de formular e aplicar
a lei, precisa conhecê-la em sua realidade estrutural, e não apenas na aparência
institucional. Então, o governante irá se aconselhar com o crítico das leis, o
cientista político. É certo que um chefe tribal pode preencher ao mesmo tempo
os papéis de formulador, executor e crítico das normas coletivas. O líder
tribal transforma, então, a norma, o imperativo funcional, em lei, a regra
posta e sustentada pela autoridade ancestral.
Mas a partir do
momento em que o governante se converte em estadista, como no Egito antigo ou
na Inglaterra moderna, ele precisará que o cientista político se transmute não
só em profeta religioso ou filósofo político, os difusores, respectivos, da
crença carismática e da crença racional, mas, sobretudo, em engenheiro social,
o oposto do cientista político. O engenheiro social assessora o governante
estatal, antes de ser eficiente (= governar segundo a lei justa), a ter
eficácia (= governar conforme uma falsa lei), indicando ao dirigente estatal os
meios para obter êxito na tarefa de dominação.
No Estado
contemporâneo, sob a hegemonia do capital financeiro-bancário, reinam Friedrich
Hayek e a proposição de que a relação de trabalho é uma troca de equivalentes –
o salário individual pelo trabalho despendido! Essa relação, segundo esse
discurso, precisa se dar ao “acaso”, ou seja, o encontro entre o proprietário
da empresa e o trabalhador assalariado sem predeterminação de nenhum tipo,
preservando-se a “liberdade” do mercado de trabalho.
·
O fetichismo da lei
As leis são coisas que
circulam, já que todos se informam ou deveriam se informar sobre elas, mas
guardam seus enigmas. O caráter enigmático ou o fetiche da lei se dá, até os
dias de hoje, porque esta coisa tende a ocultar seu caráter funcional e aparecer
enquanto de origem supramundana – narrativa mítica, doutrina religiosa,
filosofia racional.
A ciência do direito
em Immanuel Kant (1986) contém o resultado por nós argumentado sobre o
verdadeiro caráter da norma jurídica, à medida que o filósofo alemão afirma
serem os imperativos do direito apenas “conforme o dever”, e não “por dever”
(incondicional). Em outras palavras, sob a forma (aparência) do imperativo
categórico, o que está de fato na lei é o conteúdo (realidade) do imperativo
funcional.
Assim, em sua
essência, a norma jurídica não se constitui como supra-histórica, pois está
condicionada aos fins mundanos, e em sua origem histórica não necessariamente
surge na forma indivíduo-pessoa, pois se liga inicialmente à narrativa mítica,
a autoridade coletiva ancestral, e não a preceitos religiosos ou racionais,
cujas representações da divindade (religião) ou da incondicionalidade (razão)
se dão na forma-pessoa (Balandier, 2013). Se primordialmente não se encontra a
forma-pessoa de direito, isso não implica que não haja as relações jurídicas de
propriedade (coletiva), familiares (poligâmicas), de sanções (à tribo ou à
parentela).
Fonte: A Terra é
Redonda
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