Eugenio Bucci: ‘A doença infantil da
democracia’
Por que eleições
livres passaram a sufragar candidatos contrários às eleições livres? O que levou
regimes baseados em direitos a consagrar lideranças que sabotam direitos?
De poucos anos para
cá, essas indagações não saem da ordem do dia. Em 2018, dois professores de
Harvard, Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, lançaram um livro que interpelava o
leitor: Como as democracias morrem? (Companhia das Letras).
Analisando um período esquisito, com Donald Trump à frente de fake news e
de arroubos autoritários, a dupla de autores flagrou o Estado democrático de
direito carcomido por dentro. O perigo não viria de fora, mas de dentro.
Naquele mesmo ano,
2018, o Brasil elegeu para o Palácio do Alvorada um sujeito que elogiava
torturadores, insultava jornalistas e desacreditava a ciência. Em 2019, veio
uma coletânea também em forma de interrogação: Democracia em risco? (Companhia
das Letras), assinada por mais de duas dezenas de nomes. Também em 2019, eu
mesmo perpetrei outra pergunta: Existe democracia sem verdade factual? (Estação
das Letras e Cores). Quatro anos depois, em dezembro de 2023, a revista The
Economist retomou a inquietação num artigo extenso: “É possível uma
democracia saudável que não tenha base nos fatos?” (“Can you have a healthy democracy
without a common set of facts?”). Agora,
acaba de sair da gráfica mais um questionamento: Por que a democracia
brasileira não morreu?, de Marcus André Melo e Carolos Pereira (Companhia
das Letras).
Achamos as respostas?
Talvez não, mas seguimos tentando. Em uma obra recente, Democracia fake (Vestígio),
Sergei Guriev e Daniel Treisman mostram que os novos regimes autocráticos
aprenderam a fingir que são democráticos. Em Biografia do abismo (Harper
Collins), de 2023, Thomas Traumann e Felipe Nunes mostram que os extremismos
cresceram, desertificaram o centro, acabaram com a razoabilidade e geraram a
polarização – que, para muita gente, faz eclodir a violência política.
Todos esses estudos
merecem ser lidos. Têm parte, ao menos parte, da razão. Nenhum deles, porém,
mergulha na causa menos aparente – e talvez a mais profunda – do mal-estar da
democracia. Essa causa reside na comunicação social.
Eu poderia
sintetizá-la da seguinte forma: o debate público dos nossos dias não se resolve
no discurso jornalístico, no registro factual ou na retórica do argumento
crítico, mas na linguagem do entretenimento, que se tornou o padrão hegemônico
no tal mercado das ideias.
Certa vez, Régis
Debray afirmou que somos a civilização da imagem. Também ele tinha razão, ou
parte da razão: sim, nós somos a civilização da imagem, mas não de qualquer
imagem; somos a civilização da imagem fabricada para nos entreter, até nos
matar de prazer. Somos a civilização que olha para a política pelas lentes do
entretenimento. Olhamos – e consumimos – tudo pelas lentes do entretenimento.
Em outras palavras, somos uma civilização infantilizada.
As plateias saboreiam
a política da mesma maneira que sorvem um filme de terror ou um game de
guerra, da mesma maneira que varam a noite em raves e se
viciam em redes sociais. As campanhas eleitorais são eficientes quando excitam
os sentidos do povo – e o povo responde positivamente quando lota passeatas-happening e
distribui memes no grupo da família. É como diversão pública que o poder
requisita apoio – e consegue.
A linguagem do
entretenimento atenua as distinções entre fato e ficção (daí o desprestígio
crescente da verdade factual). Na mesma medida, ao incidir na intermediação
entre Estado e sociedade, dilui a fronteira que separa a política do fanatismo.
Visto por esse ângulo, até mesmo o fenômeno da polarização ganha mais nitidez:
seu combustível não tem nada a ver com qualquer lastro de objetividade, mas com
as oratórias passionais, que entretêm, seduzem e incendiam corações.
Isto posto,
perguntemos de novo: por que decisões democráticas elegem o oposto da
democracia? Muito simples: porque seu mediador preferencial é o entretenimento.
O desejo de se fartar como se não houvesse amanhã, ao estilo de uma noitada em
Las Vegas, vale mais do que a abstração chata a que se dava o nome de bem
comum. As cenas performáticas convencem mais do que centenas de programas de
governo; as narrativas sanguinolentas valem mais do que mil imagens, as mesmas
que já valiam mais do que um milhão de palavras.
O público, rebaixado à
condição de criança mimada, contempla como espectador a farsa de que é
protagonista. A política vai perdendo sua essência de construção coletiva (que
tem a ver com trabalho) e vai ganhando contornos de atração de circo (que tem a
ver com consumo de emoções). Não há mais militantes, só propagandistas de rede
social.
Em 1920, Vladímir
Lênin diagnosticou no esquerdismo a doença infantil do comunismo. Já não
importa se ele estava certo ou errado; o esquerdismo e o comunismo entraram em
extinção. Agora, o prisma do entretenimento, que redefiniu a forma social da
democracia, é a nossa doença infantil, tão risível quanto mortífera.
¨
O princípio de
autodestruição. Por Leonardo Boff
Os países que formam o
G20, desde 2017, criaram uma articulação entre as academias de ciências dos
países membros para elaborar subsídios científicos e tecnológicos para as suas reuniões
anuais. O país que hospeda o G20 é responsável pela reunião desse grupo, no
caso, o Brasil, onde ocorrerá a Cúpula no Rio de Janeiro em 2024. O grupo criou
o nome Science20. Os estudos e debates foram concluídos no dia
2 de julho do corrente ano.
O tema é “Ciência para
a transformação mundial”. Ele vem detalhado em cinco eixos temáticos –
inteligência artificial, bioeconomia, processo de transição energética,
desafios da saúde e justiça social.
Como se trata de algo
muito importante – cabe uma análise criteriosa sobre as propostas feitas aos
chefes de Estado e de Governo reunidos nessa Cúpula.
Como se trata do tema
específico das áreas de ciência e tecnologia é natural que o resumo apresentado
nas cinco temáticas se concentre nesses ramos de saber.
Entretanto, salta logo
à vista que temos a ver com um discurso intra-sistêmico, sem questionar os
pressupostos subjacentes a este sistema. Nele funciona o paradigma das ciências
da modernidade que atomiza os saberes, é antropocêntrico, pois vê o ser humano
separado da natureza, cujo eixo estruturador de sua prática é a vontade de
poder/dominação sobre tudo e sobre todos. Inscreve-se, sem qualquer observação
crítica, dentro do sistema do capital, criado por este paradigma, com todos os
seus conhecidos mantras.
Neste sentido, no
resumo publicado, não se vê nenhuma apropriação do novo paradigma holístico e
relacional baseada na física quântica (Bohr/Heisenberg), cuja compreensão
fundamental é sustentar que tudo é relacionado com tudo e nada existe fora da
relação; na ciência introduzida por Albert Einstein da equivalência entre
matéria e energia; nem na nova biologia e cosmologia, vistas em processo, por
isso, como cosmogênese e biogênese.
Nem no discurso
ecológico que desde seu fundador Ernst Haekel (1834-1919) que cunhou a palavra
ecologia (1866) se considera a ecologia como a ciência das relações, porquanto
todos os seres estão interligados entre si e todos em permanente diálogo com o
ambiente. Isso o expressou claramente a Carta da Terra, assumida
pela ONU (2003), como um dos documentos oficiais mais importantes da atual
ecologia: “Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e
espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções includentes” (Preâmbulo,
4).O mesmo escreve o Papa Francisco em sua encíclica Sobre o cuidado da
Casa Comum (2015).
Em vão encontramos no
aludido resumo tal “interligação” e a busca de “soluções includentes”. Os temas
correm paralelos sem se notar e interconexão sistêmica entre eles.
Entretanto; que fique
claramente afirmado ser a ciência e a técnica fundamentais para o funcionamento
de nossas sociedades complexas. Mas estamos também conscientes pela
epistemologia contemporânea de que por detrás de todo saber vigoram interesses
de toda ordem, também geopolíticos. Basta lembrar o livro clássico de Jürgen
Habermas, Conhecimento e interesse (Unesp), filósofo e
sociólogo da escola de Frankfurt.
Quais seriam esses
interesses? O mais importante comparece na manutenção do atual sistema
socio-econômico, o capitalismo, como modo de produção e sua expressão política,
o neoliberalismo com seu mercado. Em seguida, a preocupação da potência
dominante, os EUA, pela segurança no sentido de garantir um mundo unipolar,
fundado na tecno-ciência e na produção de armas cada vez mais sofisticadas,
muitas delas tão poderosas que podem liquidar com a vida humana. Em função
deste propósito investem-se trilhões de dólares que, se aplicados, resolveriam
o grave problema da fome, da saúde e da moradia para os milhões de
marginalizados do atual sistema dominante.
Afora estas reflexões
de viés teórico, cabe ressaltar os efeitos concretos deste tipo de ciência e de
técnica desenvolvido a partir da modernidade e vigente ainda hoje. No afã de
dominar tudo, criou-se o princípio de autodestruição com todo tipo de armas
letais, o que mostra que a racionalidade técnico-científica se fez totalmente
irracional.
A fúria por acumulação
devastou praticamente todos os ecosistemas terrestres e marinhos. O consumo dos
países opulentos exige mais de uma Terra e meia de bens e serviços, coisa que
ela não pode atender: a conhecida “Sobrecarga da Terra”. A extração extremamente
intensiva dos recursos naturais, alguns commons coletivos (como
água, florestas e sementes), levou à crise ecológico-social de hoje.
Esta crise se mostra
pelo aquecimento global que é sem precedentes desde o último período
interglacial há 125 mil anos atrás. As temperaturas globais atingiram o recorde
em 2023 e em 2024, chegando a 1,5ºC acima do período pré-industrial
(1850-1900). As inundações e queimadas assolaram várias regiões como entre nós
no Rio Grande do Sul e no Pantanal.
A desigualdade social
é uma das realidades mais perversas: 1% mais rico possui mais da metade da
riqueza mundial. A poluição do ar por mini-partículas é responsável por muitas
doenças e anualmente por sete milhões de mortes prematuras. E poderíamos prosseguir
com muitos outros efeitos danosos resultantes deste paradigma.
O importante é dizer
que esta degradação do planeta Terra e da vida tem como principais agentes
exatamente aqueles que se reúnem na Cúpula dos G20 (com algumas exceções): os
Governos onde estão os poderosos e endinheirados deste mundo. É sintomático que
no item “Justiça Social” não há uma palavra sobre a brutal desigualdade social
mundial. Concentram-se na expansão do acesso universal à internet.
No item “Bioeconomia”
esperávamos que se referisse à superação do tipo atual de economia, altamente
excludente, centrada na produção de bens materiais. Ao invés de colocar, como o
título sugere, a vida no centro e a ciência e tecnologia, a política e a economia
a serviço da vida. Mas faz-se uma conclamação “para formular um quadro de
políticas conjuntas que permite os países implantar programas de
bioeconomia…melhorar a qualidade de vida e proteger os recursos naturais”.
Sem tocar no sistema
acumulador e excludente, é um belo propósito como o Acordo de Paris de 2015 que
não foi posto em prática. Tal propósito idealista vai contra a lógica do
sistema dominante. Seguramente não será implantado.
Estas são algumas
ponderações críticas às propostas dos técnicos e cientistas que serão
apresentadas na Cúpula do G20 no Rio de Janeiro.
Ressalvo a proposta do
Presidente Lula de formar uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Mas a
verdade tem que ser dita: esse tipo de tecno-ciência, sem consciência, não é
suficientemente bom para a transformação mundial. Se ficarmos apenas nos meios
sem definir outros fins humanitários e ecológicos, sob outro paradigma,
caminharemos na direção de uma catástrofe incomensurável.
Quanto de verdade e
quanto de mudança de rumo suporta o espírito do capital? Eis a questão que
dificilmente encontrará uma resposta.
Fonte: A Terra é
Redonda
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