“Prefiro
visitar um assentamento do MST do que sentar em um bar com os caras da Faria
Lima”, diz João Paulo Pacífico
"Ninguém
na Faria Lima sabe o que é o MST de verdade.” A frase não saiu de nenhum centro
acadêmico nem de um assentamento do Movimento dos Sem Terra. Foi dita em um
escritório de paredes coloridas com escorregador em um dos metros quadrados
mais caros de São Paulo, na Vila Olímpia, a poucas quadras da avenida que virou
sinônimo da elite econômica brasileira. Seu autor é o empresário
paulistano João Paulo Pacífico, de 45 anos, estranho no ninho naquele
pedaço.
Em
vez de seguir o visual moldado pelos coletes almofadados, típicos da região,
ele cultiva um rabo de cavalo e não raro trabalha de bermuda na sede de seu
Grupo Gaia, focado em investimentos. “É muito mais legal visitar um
assentamento do que sentar em um bar com os caras de coletinho. Eles até podem
parecer bonitinhos no Instagram, mas têm uma vida vazia”, alfineta Pacífico.
Ele
integra uma rara espécie entre os endinheirados brasileiros: aqueles que, para
além da planilha de lucros, levam muito em conta o próximo e o impacto que
causam no mundo. Nascido em uma família de classe média (“com todos os
privilégios que eu não sabia que eram privilégios”, conta), Pacífico cursou
engenharia no Instituto Mauá de Tecnologia e, ao se formar, trabalhou no
mercado financeiro por quase uma década. Primeiramente, atuou na gestora de
investimentos Rio Bravo, fundada pelo ex-presidente do Banco Central Gustavo
Franco, e no Banco Matone. “Fiquei até o momento em que passei a me incomodar
com a falta de humanidade. Comecei a achar os caras meio babacas e a perceber
que, para eles, as pessoas eram apenas números.”
Em
meio à crise financeira de 2008, o profissional decidiu largar o emprego e
montar um “lugar legal para trabalhar”. Nascia ali a securitizadora Gaia,
responsável por emitir títulos de dívidas para clientes do universo imobiliário
e do agronegócio. “Trabalhei com soja, cana, milho, agrotóxico... Estava lá no
meio da bolha. Só nunca emiti título para boi. Por ser vegetariano, nunca
quis”, lembra. Em paralelo, o empresário se envolvia com investimentos de
impacto. Criou a ONG Gaia+, voltada para o apoio de professores da rede pública
e de estudantes em situação de vulnerabilidade social, e transformou sua
empresa em uma companhia do Sistema B, um selo de conscientização
socioambiental. “Conheci a agricultura familiar e pensei em usar o mercado
financeiro para causar impacto. Aí tive contato com o MST e percebi bem que o
lado que queria defender era esse”, diz.
Em
2021, a Gaia ajudou cooperativas do MST a captar R$ 17,5 milhões em uma
operação da qual qualquer pessoa podia participar com um mínimo de R$ 100 — ao
todo, 4 mil investidores se inscreveram e 1.500 garantiram espaço para
participar da transação. “Passamos pelo rito mais difícil da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), com um relatório de 700 páginas. Deu tudo certo. Foi
um cacete de fazer; precisava ser muito maluco para realizar esse negócio”,
recorda, sobre o episódio que lhe rendeu espaço na mídia como “CEO ativista”.
A
essa operação já se seguiram outras, apenas para investidores qualificados (com
mais de R$ 1 milhão aplicados), mas uma das metas de 2024 do empresário
consiste em repetir a dose com outra captação popular. Em março de 2022, ele
voltaria aos jornais ao anunciar a venda da Planeta, divisão da Gaia destinada
a investimentos de mercado, e a transformação do restante num “endowment fund”,
com Pacífico doando parte considerável de sua fortuna (“dezenas de milhões”,
afirma) a uma organização especializada em investimentos de impacto em
educação, agricultura familiar e moradia. “Deixei de ser dono e passei apenas a
executivo com um salário”, comenta.
As
posições do empresário lhe renderam a pecha de comunista. “Vejo ideias
interessantes no comunismo; acredito que o capitalismo deu absolutamente
errado, mas ganhou. Não deveriam existir bilionários, mas o sistema permite que
pessoas acumulem de forma indiscriminada à custa da exploração do outro”,
analisa Pacífico, que acha absurdas as listas de maiores fortunas. “O
capitalismo adora criar ídolos medidos pela acumulação financeira, como o
Lemann, um babaca que trouxe uma cultura de exploração de funcionários e
fornecedores ao Brasil. Não precisamos de super-heróis, mas de seres humanos.”
Recentemente,
o fundador do Grupo Gaia se tornou o único brasileiro entre 250 “super-ricos” a
assinar uma carta pedindo a taxação de grandes fortunas, divulgada no último
Fórum Econômico Mundial, a reunião da elite econômica realizada anualmente em
Davos, na Suíça. Para ele, é muito melhor pagar impostos do que apostar em
filantropia, como bilionários inspirados no megainvestidor americano Warren
Buffett adoram fazer.
“Filantropia
é importante, eu mesmo faço, mas substituir o imposto por ela é privatizar o
bem-estar social. O imposto garante que o Estado possua recursos para dar
moradia a milhares de pessoas ou combater problemas urgentes como a dengue”,
observa ele, que diz reter “o suficiente” para levar uma vida confortável e não
deixar suas duas filhas, ainda crianças, passarem necessidade. “Não quero que
elas sejam pessoas desconectadas da realidade.”
·
De banqueiro a companheiro
Responsável
por apresentar Pacífico ao Movimento dos Sem Terra, o empresário Eduardo
Moreira, 48, é outro egresso do mercado financeiro que vive sendo chamado de
comunista — rótulo que ele aceita com alguma ironia. Sua trajetória já virou
título de livro: “De banqueiro a companheiro” é como define a guinada à
esquerda ao longo da última década. Nascido no Rio, Moreira possui uma história
parecida com a de Pacífico, tendo estudado engenharia na PUC-Rio e trabalhado
por mais de uma década com finanças. Iniciou no banco Pactual, que teve entre
os fundadores o ex-ministro Paulo Guedes. Depois, lançou o banco Brasil Plural,
do qual se desligou em 2017, quando escreveu o livro “O que os donos do poder
não querem que você saiba”.
“Após
anos de mercado, comecei a refletir sobre meu papel no sistema. Descobri que eu
era o vilão do filme. Achava que construía um país melhor, mas só ajudava o
dinheiro a permanecer entre os mais ricos”, conta. A epifania, em meio a uma
internação de hospital traumática, o levou a escrever o volume, que lhe rendeu
um ultimato. “Meus sócios falaram: ‘ou o livro ou a empresa’, e eu escolhi o
livro. Só fui receber meu dinheiro da empresa parcelado em vários anos; acabei
em uma situação financeira apertada.”
Moreira
começou a dar aula de educação financeira rodando o Brasil com palestras, nas
quais ensinava que ninguém se torna rico da noite para o dia apostando em
ações. “Quem fica rico no mercado é o dono da corretora, que faz isso com o
dinheiro dos outros. Trata-se da banca do cassino”, alerta. Enquanto o Brasil
vivia um processo de radicalização à direita, entre o impeachment de Dilma
Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, Moreira se radicalizou... à esquerda.
“As fichas começaram a cair tanto que decidi morar com quem vive a
desigualdade. Não queria visitar, mas passar dias plantando e colhendo,
dormindo na lona, viajando no mesmo ônibus de quem sofria”, diz o carioca, que
passou temporadas não só ao lado do MST, mas também no sertão nordestino e
junto dos índios guarani-kaiowá em Dourados (MS).
A
curiosidade também o aproximou de figuras progressistas, a exemplo do sociólogo
e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Jessé de
Souza, com quem fundou, em 2020, o Instituto Conhecimento Liberta (ICL).
Sediado em um sobrado na Vila Mariana, em São Paulo, onde Moreira bate ponto
diariamente, o instituto nasceu como plataforma de cursos. “Eu desejava
disputar a narrativa da história que chega às pessoas, trabalhando a
consciência crítica, a espiritualidade e a ação”, explica Moreira sobre o
catálogo de 250 disciplinas disponíveis no site. O cardápio vai de Excel e
idiomas a hatha yoga, feminismo para homens e teologia da libertação com um de
seus principais idealizadores, o teólogo Leonardo Boff. Amigo de Moreira, o
ex-padre católico é professor ao lado de superstars da esquerda, como os
americanos Noam Chomsky e Nancy Fraser e a filósofa brasileira Marilena Chaui.
Interessados
em acessar os conteúdos pagam R$ 47 por mês ou buscam acesso gratuito junto a
uma instituição parceira do ICL — são mais de cinquenta, da Central Única dos
Trabalhadores (CUT) à torcida organizada Gaviões da Fiel. “Hoje temos quase 30
mil bolsistas e mais de 40 mil alunos pagantes, sem fazer propaganda nem usar
monetização no YouTube”, gaba-se Moreira.
Depois
dos cursos, veio um canal de jornalismo, que traz em suas fileiras nomes como
Chico Pinheiro, Cristina Serra, Guilherme Amado e Xico Sá, além do próprio
Moreira, que comenta o noticiário toda manhã. E ele quer mais: neste ano, sua
meta é produzir reality shows, séries documentais e ficcionais “do nível de
Netflix”. Após a entrevista à GQ Brasil, ele foi à Cuba para filmagens, quando
jantou com o presidente Miguel Díaz-Canel.
Todo
o trabalho é custeado com as assinaturas do ICL e a venda das aulas de educação
financeira rotineiramente oferecidas por Moreira. À primeira vista, quem
assiste aos anúncios de cursos como “Mapa da mina” pode achar que Moreira é só
mais um coach das finanças, mas ele afirma tratar-se de uma tática de marketing
digital. “Há um sentido em radicalizar no conteúdo: na pele de um ex-banqueiro
branco e loiro, sou visto como muito rico na cabeça das pessoas. Então, elas
acham que eu sou moderado; se apegam à forma para usar o conteúdo”, analisa.
Casado
com Juliana Baroni, ex-paquita nos anos 90 e antiga atriz da série “Malhação”,
Moreira diz que a guinada à esquerda o levou a um estilo de vida quase
monástico. “Hoje, devo ter uns três casais no meu círculo íntimo de amizades,
mas é uma vida isolada por escolha”, afirma. Regrado, Moreira acorda cedo,
apresenta o “ICL Notícias” e, antes do almoço, faz reuniões e atividade física.
À tarde, segue na pesquisa de novas ideias para livros e cursos (“O Aloísio
Mercadante me disse uma vez que eu não podia ser cantor de uma música só, então
estou sempre compondo”).
Ele
dedica o período da noite para preparar os comentários do noticiário da manhã
seguinte, quase sempre marcados por declarações contrárias a figuras do naipe
do ex-presidente Jair Bolsonaro e do senador paranaense Sergio Moro. O
envolvimento político, aliás, rendeu-lhe ameaças de morte. Passou a andar com
escolta armada e a vivenciar questões como pressão alta, crise crônica de
sinusite e dificuldade para dormir, tratada com canabidiol. Nas poucas horas
vagas, Moreira prefere o sítio da família a frequentar restaurantes da moda.
“Não sinto saudade da vida sedutora do sistema, mas tenho medo de que, se eu
voltar a frequentar, comece a sentir. O sistema faz a gente achar indispensável
algo de que nunca deu falta, como o Steve Jobs fez com o iPhone”, finaliza.
·
Adeus, Mickey
Vender
apenas o essencial é uma das guinadas que a empresa de borracha Mercur deu ao
longo dos últimos quinze anos (mesmo que, para isso, fosse preciso reduzir o
faturamento e abrir mão de antigas parcerias). Não é só: acompanhia — que
fabrica de borracha escolar a materiais ortopédicos, passando por bolsas de
água quente — também começou a se preocupar com a cadeia de suprimentos,
comprando, por exemplo, a borracha de seringueiros na Amazônia. “É mais caro,
mas ajuda a manter a floresta de pé”, afirma o presidente da marca, Jorge
Hoelzel Neto. Membro da terceira geração da família que construiu a Mercur,
sediada em Santa Cruz do Sul (RS), ele há tempos está atendo à responsabilidade
socioambiental.
“A
gente rouba matéria-prima do planeta, transforma esse material para vender e
daqui a pouco tudo vira lixo. Isso começou a pegar muito forte na minha
cabeça”, conta o executivo. “Conversando com professores, descobrimos que
nossos materiais escolares licenciados haviam virado um problema sério nas
salas de aula. As borrachas da Barbie ou da Disney custavam mais caro,
tornavam-se brinquedos e geravam competição eaté mesmo bullying”, diz.
Para
piorar, os licenciamentos atiçavam o desejo consumista das crianças, fazendo-as
comprar além do necessário para o ano letivo. Hoelzel decidiu desistir dos
licenciamentos, que representavam cerca de 10% do faturamento na época, em
2014. “Ninguém queria abrir mão, mas, quando a gente olha para a
responsabilidade na educação de uma criança, a questão bate muito forte.”
Deixou de lado outros projetos de “impacto negativo”, entre eles uma peça de
suporte para atiradores de metralhadora, encomenda do Exército argentino, e uma
esteira de borracha para o manuseio de tabaco, o principal produto da cidade
onde a Mercur está sediada. “Tenho amigos que trabalham com tabaco, e um deles
chegou a perguntar se poderia continuar frequentando a minha casa. Respondi que
sim, mas não queria mais participar desse negócio.”
“Lucro
é muito bom, mas de que forma ele é construído e repartido? É só o empresário e
o investidor ou o seringueiro também consegue uma vida melhor?”, questiona
Hoelzel, que almeja para breve a chegada ao mercado de um produto específico
feito com borracha nativa da Amazônia, ecologicamente correto. Até 2023, o
volume comprado pela empresa ainda se mostrava ínfimo para justificar um
lançamento. Hoelzel se vê também preocupado em reduzir a quantidade de
importações, buscando diminuir a pegada de carbono e aumentar o investimento no
Brasil.
Após
tantas transformações, o lucro da Mercur caiu significativamente nos últimos
anos. “Algumas empresas dizem que virar sustentável dá dinheiro, mas depende do
ramo, porque os custos aumentam. Por outro lado, tem quem acredite que sou
contra o faturamento, mas não. Acho que devemos vender mais, desde que saibamos
o que fazer com o crescimento”, atesta Hoelzel, que pretende reforçar o lado
financeiro da Mercur nos próximos tempos. “Trata-se de uma questão de adequar a
velocidade de transformação, mas, para mim, é um movimento que já deu certo.”
·
“Olhar míope” do mercado
Dono
de rótulos como “o brasileiro mais criativo do mundo”, concedido pela revista
americana "Fast Company", Lourenço Bustani se considera um
indignado com “o olhar míope e consumista do mercado”. Filho do diplomata José
Maurício Bustani, ex-diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas
Químicas (OPAQ), e formado em ciências políticas e relações internacionais pela
Universidade da Pensilvânia, galgou uma carreira que muitos chamariam de
exemplar no começo dos anos 2000. Passou por startup, banco, escritório de
advocacia e consultorias de gestão e branding, tudo nos EUA. Ao voltar ao
Brasil, em 2006, queria contribuir para que as empresas “percebessem que
existem escolhas mais sábias e menos ecocidas”.
Fundou,
então, a consultoria Mandalah, que, entre outros projetos, ajudou a General
Motors a se reinventar como uma companhia de mobilidade em 2007, olhando menos
para os motores e mais para o propósito. Afastado do dia a dia da firma que
criou, Bustani acredita que cumpriu o objetivo de pautar um propósito nos
negócios. “Mas isso não muda o quadro no qual a sociedade e o planeta foram
parar. Hoje, damos de cara com nossa autossabotagem, e já não há como refutar a
ciência. Algum grau de colapso é irreversível, por termos excedido a capacidade
da Terra de sustentar nosso modo de viver”, diz. Para ele, “as empresas não dão
mais conta de mudar o destino da espécie, mas não há sentido em jogar a toalha.
Precisamos nos adaptar e gerar resiliência para o futuro, numa realidade de
contingência.”
Pouco
afeito a rótulos (“não posso afirmar que todas as minhas bandeiras façam parte
de uma visão progressista”), Lourenço acredita que o mundo corporativo poderia
contar com muito mais gente usando sua influência para “avançar pautas que
visem ao bem da sociedade e do planeta”, mas ainda percebe muita acomodação no
Brasil. “Dito isso, se há o surgimento de lideranças mais propositivas e
vocais, talvez seja porque ficou constrangedor e insuportável testemunhar
passivamente a injustiça social e a calamidade climática. Progressistas com
dinheiro podem influenciar bastante a sociedade com sua visão e ações”,
observa.
Agora
dedicado a cuidar do filho de 1 ano e mais recluso, Bustani é também um dos
raros nomes dessa pauta a se envolver diretamente na política. Atuou como
coordenador da campanha à Presidência de Marina Silva (Rede) em 2018. “Vi de
perto os bastidores sanguinários e decadentes da política brasileira”, atesta.
Hoelzel, da Mercur, se esquiva de falar em nomes de candidatos, enquanto
Pacífico e Moreira se mostram declaradamente de esquerda (ambos apoiaram a
candidatura do presidente Lula em 2022, por exemplo), mas evitam se aproximar
desse universo.
Moreira
afirma já ter até recebido convites de “partidos menores” para concorrer à
Presidência. “Não senti que era o meu chamado”, afirma o carioca. Pacífico vê o
futuro de maneira pessimista. “Se a gente olhar de forma racional, já deu ruim,
seja pelo que fizemos como humanidade, seja pela cabeça das pessoas. Quando
você vê o Fórum de Davos aplaudindo um imbecil negacionista como o Milei, dá
vontade de dizer 'foda-se'. Mas, quando o mosquito pica, você luta. Vou
continuar lutando, até porque sigo aquela frase do Darcy Ribeiro: ‘Eu
detestaria estar do lado de quem venceu’.”
Fonte:
GQ Lifestyle
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