sábado, 29 de junho de 2024

Alysson Martins: Extrema direita é principal algoz das fake news contra indígenas

O processo estruturado de desinformação digital tem como alvo os povos indígenas, sobretudo a partir de 2018. O MÍDI – Laboratório de Mídias Digitais e Internet (MíDI) da Universidade Federal de Rondônia observou que 70% das mentiras que circulam na internet beneficiam políticos e figuras públicas vinculadas ao espectro político da extrema direita. Já os políticos e personagens de esquerda se favorecem de 8% da desinformação, propagando significativamente menos fake news.

O primeiro passo da pesquisa, que possui financiamento do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, foi a realização de uma busca dos termos “indígena” e “indígenas” na principal agência digital de checagem no Brasil, a Lupa, criada em 2015. Até 2023, foram encontradas 149 publicações, com 103 se tratando de checagens e 36 avaliações focadas na população indígena.

Embora 92% das checagens com foco nos indígenas sejam identificadas como falsas, 25% compartilham etiquetas como “Verdadeiro, mas…”. Isso demonstra que os criadores e propagadores da desinformação se valem também da estratégia de mesclar mentiras e fatos em uma mesma informação, com intuito de ludibriar a população. Das 36, apenas três avaliações não trazem a etiqueta “Falso” de forma explícita, ainda assim, elas contribuem para a desinformação por omitir informações, descontextualizar com mentira e criar causa e efeito inexistente.

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro não deu atenção às demandas indígenas, desconsiderando os seus modos de vida e sua importância para a sociedade. Mesmo assim, as checagens aparecem primeiramente a partir da sua primeira campanha, em 2018. O ex-presidente já apresentava mentiras sobre os povos indígenas, como o Yanomami, que vivenciou uma crise humanitária no final do seu governo, com morte em massa por causa da fome e do deslocamento forçado.

Em 2022, grupos favoráveis ao então presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, espalharam mentiras sobre as terras indígenas no Rio Grande do Sul. As fake news focam no aumento da demarcação de territórios e na desapropriação de casas e terras ocupadas em favor dos povos originários, caso o Lula se tornasse presidente. Já em janeiro de 2023, início do terceiro mandato do presidente Lula, o Ministério da Justiça e Segurança Pública precisou desmentir que a população Yanomami não tinha relação com as comunidades indígenas venezuelanas que chegaram ao Brasil como refugiadas.

Os dados revelam que a Lupa começou a realizar mais produções sobre os indígenas desde a iminência da eleição do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, com checagens e publicações a partir do que ele e seus apoiadores falavam. Em outras palavras, o silenciamento dos indígenas aconteceu não apenas na ausência de políticas públicas e ações necessárias para sobrevivência desses povos e de suas culturas e modos de vida, mas nos discursos de Bolsonaro e de seus apoiadores.

Mais recentemente, entretanto, existe uma maior atenção e dedicação aos povos originários e às mentiras em torno dos indígenas. Ou seja, mesmo que a fala de políticos e apoiadores de extrema direita tenha trazido o assunto e as mentiras sobre os povos indígenas para os olhos da agência, a sua importância se fortalece com o atual governo, que criou, por exemplo, o Ministério dos Povos Indígenas, a partir de 2023.

A Ideologia, das nove temáticas encontradas nas checagens, é a mais presente (81%) nas mentiras sobre os povos originários, que ocorre quando elas se associam a políticos ou manifestações, movimentos e reivindicações. Para entender melhor essa ideologização contida na desinformação contra os povos originários, fizemo-nos as seguintes perguntas: a que grupo político ela serve? Quem, de fato, seria beneficiado com aquela mentira? Com isso, percebemos que 70% das fake news saíram da fala de algum político de extrema direita, ou realizavam um ataque mentiroso a figuras proeminentes da esquerda, como o presidente Lula e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, ou mesmo ao que denominam de “esquerdistas”.

Já 8% teriam partido de pessoas e grupos da esquerda, ou porque saíram da fala de algum político desse posicionamento ideológico ou porque seriam um ataque falso a figuras da extrema direita, como o ex-presidente Jair Bolsonaro e a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e atual senadora, Damares Alves. Todas as três, inclusive, são mentiras disseminadas somente em 2019, primeiro ano do mandato de Bolsonaro.

É importante contextualizar, evidentemente, que as mentiras sobre os indígenas começam, historicamente, com a chegada dos europeus em nosso continente, perceptível pela forma como os povos originários foram representados em cartas e pinturas, por exemplo. Mas esse processo estruturado de mentira se mantém e adquire novos formatos com as fake news, que são disseminadas principalmente pelas redes sociais digitais.

As fake news são compreendidas, portanto, como um fenômeno contemporâneo de manipulação de informação falsa apresentada como verdadeira, dentro da lógica de espalhamento midiático. Ela acontece sobretudo através das redes sociais, podendo ou não imitar a estrutura e o formato jornalístico, até se passando por possíveis fontes. Esse processo acontece dentro de uma lógica mais ampla da desinformação, em que mentiras são propagadas de forma deliberada (fraude, fake news ou disinformation) ou não intencional (erro, false news ou misinformation), ou ainda com informações verdadeiras, mas que são recortadas e descontextualizadas com intenção de enganar (malinformation).

 

•           A nova função do jornalismo na era das “várias verdades”. Por Carlos Castilho

Até a chegada da internet, o grande paradigma do jornalismo era a preocupação com a verdade, mas a partir do momento em que passamos a ter que conviver com “várias verdades” na era digital, surgiram inevitáveis questionamentos ao discurso e à estrutura da profissão. A nova realidade da comunicação e informação está nos forçando a ser mais conselheiros do que vendedores de notícias, uma mudança que implicará o desenvolvimento de novas rotinas, regras e valores.

A busca da verdade como atividade profissional estava ligada ao objetivo de colaborar no surgimento de “bons cidadãos”, categoria social indispensável ao funcionamento de sistemas políticos baseados no liberalismo econômico e na democracia política. Mas quando as novas tecnologias digitais de comunicação e informação criaram uma avalanche noticiosa na internet, surgiram o que se convencionou chamar de “várias verdades’’, ou seja várias percepções e opiniões sobre um mesmo dado, fato ou evento.

Com isto, os jornalistas são jogados num novo ambiente informativo onde deixam de ser os porta-vozes do que é certo ou errado em matéria de informação publicada, para funcionar como curador de notícias. Curador (1) é aquele profissional que ajuda as pessoas a identificarem qual das “várias verdades” é a que melhor atende as necessidades individuais ou coletivas. Foi o próprio público que passou a exigir este tipo de aconselhamento, como mostra a multiplicação de influenciadores na internet.

A superoferta de notícias na internet disponibiliza em média dois milhões de artigos inormativos online produzidos por grandes empresas jornalísticas e de marketing, segundo dados da empresa Userarch. Fica evidente a enorme sobrecarga de trabalho e a responsabilidade de fazer escolhas envolvendo temas cada vez mais complexos e diversos. Este novo contexto profissional é complicado ainda mais por fenômenos novos como as fake news e a desinformação gera inevitáveis conflitos com as rotinas, regras e valores ainda vigentes na maioria das redações.

Segundo a pesquisadora norte-americana Nikki Usher, estamos começando a viver uma “democracia pós-imprensa”, um regime onde os jornais continuarão a existir e ser importantes, mas com uma função social diferente da atual. Menos um negócio lucrativo e mais um equipamento comunitário, similar a uma assessoria jurídica ou curadoria de consumo.

<><> Do cidadão bem-informado ao cidadão comunicador

Mas, seja qual for a nova função da imprensa na era digital ela terá que achar soluções para a crise no modelo de negócios responsável pelo fechamento de jornais, revistas e emissoras de rádio. Aqui no Brasil, 17 publicações fecharam as portas entre 2018 e 2021 por conta de dificuldades financeiras. Só em 2021, foram 12 os jornais, revistas e emissoras de rádio que saíram do mercado, quase um por mês. Nos Estados Unidos, 2.500 jornais deixaram de circular desde 2005, um fenômeno cuja intensidade é maior entre publicações locais que, em 2023, desapareceram ao ritmo de 2,5 jornais por semana. Os dados levantados por pesquisadores da Faculdade Medill de Jornalismo, da Universidade Northwestern , em Illinois, Estados Unidos indicam também que cerca de 1/3 dos 24 mil jornais locais norte-americanos também desaparecerão até o final deste ano.

A sobrecarga de trabalho dos profissionais que ainda estão empregados e o contínuo fechamento de jornais mostram que a imprensa convencional encontra cada vez mais dificuldades para atender seu objetivo de formar cidadãos bem-informados. As consequências destas dificuldades podem ser medidas na queda da credibilidade na imprensa no mundo (2) e o aumento do chamado negacionismo informativo (3), pessoas que não se interessam mais por notícias.

Como os sistemas de disseminação de notícias já começaram a mudar em consequência de inovações tecnológicas, esta transformação incide diretamente sobre o modelo de participação dos cidadãos e a função exercida pelos jornalistas. O “bom cidadão” num regime democrático está deixando de ser avaliado pelo grau de consumo de informações e notícias e sim pela intensidade com que promove a circulação destas informações e notícias no ambiente social onde está inserido. O cidadão bem-informado está deixando de ser o paradigma da sociedade para ser substituído pelo cidadão comunicador, aquele que promove o bem-estar geral por meio da circulação de informações.

Já o jornalista, está deixando de ser uma espécie de empacotador de dados, fatos e eventos para transformá-los em notícia capaz de atrair a atenção do público e, portanto, vendável a anunciantes. Sua função como participante insubstituível na qualificação dos fluxos de informações torna-se ainda mais relevante na era digital, pois cabe aos profissionais papel chave na checagem da veracidade, relevância e pertinência das ‘várias verdades’ a que uma comunidade está sujeita no caos informativo das redes sociais na internet.

 

•           Relatório Reuters reitera crise de confiança. Além de bom jornalismo, é preciso educação midiática. Por Marco Britto

A publicação do Digital News Report 2024, maior compilação de dados de consumo de notícias do mundo, organizada pelo Instituto Reuters, mostra mais uma vez o terreno acidentado pelo qual caminha o jornalismo neste primeiro quarto do século 21. Além de uma crise de confiança, os dados revelam também uma realidade de crise informacional que extrapola o alcance da imprensa e compõem o cenário de “transtorno de informação”, o que pede soluções mais amplas do que apenas uma mudança de formato nas notícias. Entre elas, a educação midiática.

No Brasil, entre as tendências destacadas pelos pesquisadores do instituto, vê-se o aumento de leitores que evitam notícias, com um salto de 41% no ano passado para 47% da população leitora em 2024, praticamente metade dos entrevistados. O número junta os que evitam notícias “às vezes” e “frequentemente”.

Um componente importante dessa desconexão dos leitores com o jornalismo brasileiro é o nível de confiança. Apesar de manter o índice mais alto entre seis países pesquisados na América Latina, os 43% que afirmam confiar na imprensa deixam um enorme contingente de quase 60% de cidadãos desconfiados com o que publicam hoje portais, jornais e noticiários televisivos no país. Grupo Globo, Folha de S.Paulo e Veja são os mais rejeitados, ainda que mantenham ao mesmo tempo índices altos de apreciação.

A paisagem é similar em escala mundial. Examinando dados globais sobre confiança, o relatório esmiúça o perfil dos leitores, em busca de explicações para a falta de prestígio que acomete o setor. No mundo, 40% dos entrevistados nos 47 mercados sondados pelo Instituto Reuters afirmam confiar na maioria das notícias.

•           Não importa se o leitor é de esquerda ou direita

“Quando a confiança nas notícias é baixa, o problema geralmente não é que as pessoas não saibam o que procurar. É que muitos não sentem que estão encontrando. Se estiverem certos, a imprensa tem um problema de produto. Se estiverem errados, a imprensa tem um problema de comunicação”, destaca a análise do relatório, assinada pelo professor Rasmus Kleis Nielsen e Richard Fletcher, respectivamente diretor geral e diretor de pesquisa do instituto.

Em linhas gerais, leitores e leitoras acima de 35 anos, com maiores poder aquisitivo e nível de educação confiam mais na imprensa. Ainda assim, em nenhum dos três casos o índice ultrapassa 50%.

Uma novidade no relatório, os fatores considerados decisivos para a formação de confiança foram enumerados pelos entrevistados, sendo eles, do mais popular para o menor popular: transparência (72%), alto padrão jornalístico (69%), “representa pessoas como eu de maneira justa” (65%), viés (61%), “valores como os meus” (56%), sensacionalismo (55%), publicação com tradição/marca (52%), visão excessivamente negativa (46%).

Ainda dentro dos novos dados deste ano, uma leitura chama a atenção. A de que, em ambos os lados do espectro político, as impressões sobre a imprensa são parecidas, o que fortalece a ideia de “câmara de eco”, onde leitores consomem apenas informação de acordo com sua preferência, o que tende a enfraquecer a visão crítica sobre os acontecimentos. Os índices de confiança na mídia não variam entre eleitores de direita (45%), centro (42%) e esquerda (42%). A margem de erro da pesquisa é de 2 pontos percentuais.

•           Onde a imprensa é vilã, a desinformação prospera

É pouquíssima a diferença na opinião de direitistas e esquerdistas em relação à importância dos fatores relacionados à construção de confiança. A análise aprofundada do relatório revela, portanto, que independentemente da orientação política, o leitor não parece estar feliz com o que encontra (quando procura), deixando o terreno fértil para teorias da conspiração e reclamações de perseguição da mídia.

Um quadro assim pode gerar câmaras de eco em que o eleitor da esquerda tem certeza de que vive em um mundo manipulado por uma imprensa de direita, enquanto o leitor conservador vê claramente uma “ditadura” da esquerda na mídia. E ainda, as publicações em questão são as mesmas (!), seja a Folha de S.Paulo ou a TV Globo, dado os números parecidos de confiança e desconfiança nestas marcas revelados pelo Instituto Reuters. Este estado de alarme fabrica cidadãos mais propensos a consumir e disseminar desinformação.

Levando em conta o raciocínio dos diretores do instituto (problema de produto x problema de comunicação), diria que ambos os problemas coexistem, e nem tudo é culpa da imprensa. Há certamente questões de produto, em que o jornalismo pode e deve sempre se adaptar. Porém, a realidade do consumo de informação passa por uma transformação que extrapola os “poderes” do jornalista em consertar.

O absoluto controle sobre o fluxo de conteúdo hoje exercido por plataformas como Facebook, Instagram e YouTube remodelou a maneira como as pessoas consomem notícias e toda a informação restante que passa pelos feeds da internet diariamente. O empoderamento prometido pela rede tem diversos casos de sucesso, mas uma grande massa de leitores está habituada a ver apenas o que quer, o que gosta, do jeito que gosta, “mimada” por algoritmos especialistas nisso. Afinal, as big techs nunca tiveram obrigações com isenção. Mudanças na distribuição de notícias na internet estão no horizonte com a ascensão da inteligência artificial, e a previsão é de um “banho de sangue”.

•           Educação midiática não faz mágica, mas educa

Enquanto o jornalismo estuda sua sobrevivência, a conservação da democracia precisa de reforços. O amadurecimento da educação midiática nas últimas décadas mostra que o uso deste mundo digital de consumo de informação precisa ser ensinado. Não bastam tablets para os alunos sem providenciar um conhecimento aprofundado sobre tudo discutido neste artigo: o papel das big techs, a polarização em relação à mídia, a diferença editorial entre publicações e o papel do cidadão digital. Como comentou outro dia a pesquisadora Mariana Ochs em oficina do Educamídia, é como dar a chave do carro e esperar que a pessoa aprenda enquanto dirige.

Se os jovens estão preferindo ver memes em vez de notícias, é possível pensar em atividades na aula de história que usam memes e notícias do Brasil Império. Se as redes sociais fabricam consumidores viciados, é possível usar o Instagram para discutir influência política na aula de sociologia. A “camada de educação midiática” se insere e abre as portas para velhos (e importantes) conceitos entrarem na vida digital do cidadão, que percebe que há vida além do algoritmo. Temas como empatia, visão crítica e práticas que espantam a preguiça de pesquisar um pouco antes de sucumbir ao impulso de sair compartilhando.

Não se trata de bala de prata, mas uma educação desejável, assim como a educação ambiental, a financeira, a alimentar. A escola pode e deve dar ferramentas que fortaleçam o cidadão ante o automatismo que coordena a sociedade em modelo industrial.

Um leitor melhor educado para as mídias do século 21 estará menos suscetível a paixões, entendendo que a imprensa não é perfeita e tem seus interesses econômicos, mas também um compromisso com seu negócio. Jornal não é Bíblia, não exige fé, apenas discernimento. A educação midiática, quando presente na formação dos cidadãos, permite perceber essas realidades e acalmar ânimos, desenvolver o “ceticismo saudável” e conviver com o mar de informação e desinformação com mais sabedoria. Quem sabe assim, com menos medo e mais consciência, o jornalismo volte a ter mais leitores.

 

Fonte: Observatório da Imprensa/objetos

 

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