sábado, 29 de junho de 2024

Aborto: A insensibilidade dos ternos azuis

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. São muitas as mulheres que se tornam mães e que se querem mães. Não há como ser mãe sem modificar corpos e as formas de suas vidas vividas. Saúde e vida podem estar em risco. Por isso a primazia do querer das mulheres e das pessoas que gestam em relação à maternidade e à interrupção da gravidez. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

Corpos de homens não se modificam para se tornarem pais. Suas vidas vividas, pasmem, nem sempre se modificam. Enquanto uns investem, se encantam e persistem, outros, ainda que pais biológicos, não se tornam pais sociais. Porque simplesmente não querem. Companheiras podem até não os chamarem para uma parentalidade conjunta em função do término de uma relação ou da violência doméstica, mas, em geral, são eles que se afastam do cuidar e se responsabilizar dos filhos e filhas. Simplesmente.

Muitas mulheres se tornam mães solo. A realidade desta situação no Brasil é ampla e extensa, ainda que não seja fácil ser mãe solo. Políticas Públicas de cuidados se tornam imprescindíveis, mas são incipientes. São, novamente, as mulheres que desempenham um papel fundamental no cuidado junto às mães solo: são mães das mães e irmãs das mães.

Em muitas nações, o acesso universal à educação sexual, aos métodos contraceptivos e à descriminalização do aborto até as dez ou doze semanas, além do acesso ao aborto sem limitação de tempo quando se trata da saúde da mulher e da gravidez resultante de estupro, asseguram a amplitude da maternidade desejada. Não é o caso do Brasil. Por aqui, os permissivos legais são relativos às mulheres violadas, às mulheres gestantes com diagnóstico de anencefalia e às mulheres que estejam em risco de perder a vida.

O PL 1904, com aprovação do voto de urgência, vem para limitar as condições de acesso ao aborto legal e seguro.

Segundo o PL, as meninas e mulheres violentadas que não querem ser mães devem correr risco à sua saúde e vida caso não consigam acessar os serviços de aborto legal antes das vinte e duas semanas. Devem ser obrigadas a serem mães.

Crianças violadas se tornando mães. É o que querem os propositores do PL 1904. Maternidade que deveria ser considerada impossível e indizível é proposta como Projeto de Lei. Criança não é mãe. Essa fala deve ser sempre repetida e jamais esquecida.

Poderia se esperar que somente homens pudessem ser a favor do PL. Mas há também propositoras mulheres. Como é possível que tenhamos homens e algumas mulheres favoráveis ao PL? São homens e mulheres de poder. Mas como podem, no meu entender, estar tão equivocados e equivocadas?

·        Insensibilidade e distância social

Como é possível tamanha insensibilidade? Será a distância social que separa tais “homens e mulheres de poder” da realidade desigual das mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social? Em geral, pobres, negras e pardas. Será a distância social que produz tal insensibilidade? Devem se perguntar: como pode uma mulher ou uma criança não reconhecerem seus corpos grávidos de forma rápida? E as “mulheres de poder” lembram-se dos exames possíveis de teste de gravidez a que têm acesso. Testes que se podem conseguir na farmácia mais próxima e das informações que receberam sobre educação sexual. Não conseguem se colocar no lugar da maioria das mulheres e meninas numa nação onde o acesso aos serviços públicos e o acesso aos serviços privados é tão desigual. Longe dos centros, longe das farmácias, longe dos testes e dos hospitais e longe da educação sexual. E mais longe ainda dos serviços de aborto legal e seguro. E muito perto do poder familiar que institui muitas vezes o controle dos corpos de todas as mulheres da casa e o controle do segredo.

Infelizmente a resposta dos “homens e mulheres de poder” parece ser apenas esta: uma regra. Caso a gravidez da mulher ou menina violentada tenha alcançado as vinte e duas semanas, não podem mais acessar o aborto legal e seguro que é um direito por ser um permissivo legal. Não cumprida, prisão. Deixo aqui o meu desejo. Homens e mulheres de poder: acolham estas mulheres e meninas. Esqueçam o PL 1904!

Homens de ternos azuis na Câmara Federal e algumas mulheres de poder que aprovaram a urgência do projeto parecem distantes da realidade da menina que sequer entendeu o que é a menstruação e o que foram os toques corporais a que se submeteu por parentes, às vezes pai, padrasto, tio, primo. Uma coisa foi entendida: é segredo. Menina que somente percebe alteração no corpo digna de atenção quando o leite escorre de seu mamilo ou quando a barriga ganha tal volume que pergunta à mãe: o que acontece comigo?

Se foram principalmente homens de terno azul que aprovaram a urgência na Câmara Federal, há outros de jaleco branco na diretoria do Conselho Federal de Medicina que apoiam e alimentam o PL 1904. Uns e outros distantes e insensíveis. Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) editada em março deste ano impede a utilização do procedimento de assistolia fetal para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro. Duas médicas paulistas que utilizaram o procedimento – e que foram chamadas de aborteiras – estão ameaçadas de perderem o direito ao exercício da profissão.

A Resolução, felizmente, foi suspensa por decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal na espera da reunião colegiada. A suspensão da resolução do CFM se deu pelo entendimento de que há indícios de abuso de poder regulamentar ao limitar a realização de procedimento médico que é reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde e o único que garante o abortamento seguro neste tempo de gestação. E também por contrariar a legislação brasileira, que não estabelece quaisquer limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do aborto legal.

·        Presas?!

Se o PL 1904 fosse lei e a Resolução estivesse em vigor, as duas médicas poderiam não apenas perder o direito ao exercício da profissão, mas também ser presas, assim como as gestantes que foram atendidas. Este é o indizível, o impensável da propositura do PL 1904! Uma das gestantes atendidas por uma das médicas era uma menina de 11 anos que, estuprada por dois anos pelo padrasto, estava grávida de 17 semanas.

Seja o PL 1904, seja a Resolução do CFM, querem impedir, ou, ao menos, criar insegurança jurídica, não somente para o abortamento legal nos casos das mulheres estupradas, mas também para os casos de anencefalia fetal e saúde grave com risco de morte das mulheres e meninas gestantes. Estão em jogo todos os procedimentos dos permissivos legais para gestantes com mais de 22 semanas. A vida das mulheres e meninas que estão entre nós, vidas nascidas e vividas, parecem nada valer para aqueles e aquelas que se dizem pró-vida, marcadas e marcados por uma insensibilidade brutal!

O principal proponente do PL 1904 afirmou em entrevista recente à Globonews que seu projeto é “light”. Sabe por quê? Porque, após propor uma pena de prisão equiparada ao homicídio de 6 a 20 anos para a menina estuprada que abortar após 22 semanas de gravidez, ele incluiu o seguinte parágrafo:

§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

Parece querer jogar toda a responsabilidade dos dizeres do projeto de Lei, e que é sua – pois foi quem elaborou e defendeu tal projeto – ao juiz. Caberia ao juiz mitigar ou não a pena. Contudo, como pode ser considerado um projeto “leve” se a única razão reconhecida pelo PL para mitigar a pena é o aborto ter resultado em consequências tão graves que tornem a sanção penal desnecessária? O que estaria pensando que seria grave, mas que para ele é leve. Imagina ele a destruição mental e física da menina por ter abortado? Ou por ter sido vítima de uma investigação e acusação?

Nas páginas do PL, uma a uma, parágrafos e justificativas mostram profunda insensibilidade. Ainda mesmo quando relatam périplos das meninas em busca dos poucos e distantes serviços de aborto legal.

·        Périplos das meninas em busca dos serviços e a sucessão de Notas Técnicas

No texto do PL 1904, há um reconhecimento do difícil périplo que as meninas de 10, 12 anos e as adolescentes e mulheres devem recorrer para chegar aos serviços de aborto legal. Reconhecimento que não produz sensibilidade do autor do projeto em relação àquela gestante menina. Considerada “outra”, com ela não se identifica.

O sentido interpretativo que o propositor do PL quer dar ao contar o périplo é a de que muitos serviços de aborto legal limitam o atendimento segundo o tempo de gestação e isso deve vir a se tornar uma regra impeditiva e punitiva. Não esclarece que como as técnicas de procedimentos diferem depois das 22 semanas, são poucos os hospitais, em relação aos demais, os que se especializam nessa técnica.

Mudando a chave de interpretação, o périplo de uma menina permite contar não só sua enorme dificuldade e o longo tempo necessário para conseguir o serviço, como permite contar parte da difícil história de se conseguir, nesta nossa nação, a oferta pelo Estado de serviços públicos para a realização do abortamento nos casos de permissivos legais existentes desde 1940.

Na justificativa do PL 1904 é citado o périplo de uma menina de 10 anos de idade, vítima de estupro, grávida de quatro meses e meio, no interior de Goiás:

Os pais de CBS recorreram a diversos hospitais de vários estados que ofereciam serviços de aborto em casos de estupro, mas todos se recusaram a realizar o procedimento, alegando não apenas o protocolo, mas principalmente o risco de um aborto de uma menor naquela idade gestacional. O Dr. Jorge Andalaft, que não havia sido consultado, soube dos fatos pela imprensa e fez saber, também pela imprensa, que se a menina viesse para São Paulo, o Hospital do Jabaquara poderia fazer o aborto. (…) no dia 4 de outubro, o Dr. Jorge Andalaft realizou o aborto da menor de idade com 18 semanas de gestação. Os jornais noticiavam que, até aquela data, o Hospital do Jabaquara havia realizado um total de 111 abortos (número de abortos segundo a Folha da Tarde, São Paulo, 01/10/1998].

Estava então em vigência o protocolo do primeiro “Programa de Aborto Legal por Estupro”, lançado em 8 de março de 1989 no Hospital Jabaquara, que oferecia serviços até o terceiro mês da gestação (12 semanas). A sensibilidade de Andalaft em relação à necessidade de interrupção da gravidez da menina de dez anos, que estava com 18 semanas de gestação, não apenas o levou a atender a menina, mas também a propor uma nova Norma Técnica para “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”. Prescreve então o atendimento até a vigésima semana de gestação. Dispensa o laudo médico do Instituto de Medicina Legal que era até então solicitado, mas permanece a necessidade de apresentação de boletim de ocorrência.

No dia 15 de dezembro de 2004, uma nova Norma Técnica, intitulada “Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento”, declarava:

O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses casos e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento.

Recentemente, em resposta ao Ministério Público, foi iniciada a proposição pelo Ministério da Saúde de uma nova Norma Técnica que venha a inserir o protocolo dos procedimentos específicos para atender a interrupção de gestação das meninas e mulheres para além das 22 semanas, conforme legisla o Código Penal de 1940.

·        O impacto dos estupros

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais de 74 mil estupros foram registrados em 2023, vitimando 46 mil crianças e adolescentes menores de 13 anos. Na última década, mais de 20 mil meninas por ano foram forçadas a vivenciar a maternidade devido à violência sexual… Mais de 70% delas eram negras.

Em pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM) da UnB, ao final dos anos 1990, já era evidente a predominância quantitativa dos estupros cometidos por conhecidos, geralmente dentro das residências e perpetrados por familiares, em comparação aos estupros por desconhecidos.

De todos os registros de estupro na Delegacia de Atenção a Mulher do Distrito Federal (DEAM), “60% dos casos eram de autoria de conhecidos” (Machado, 1999: 298). Muito mais difícil era que tais casos se tornassem processos judiciais e mais ainda que fossem julgados e se tornassem apenados. Os familiares da vítima ou a própria vítima de autores conhecidos tendiam a pedir o arquivamento. Os casos que prosseguiam tendiam a ter mais dificuldade por falta de concessão de credibilidade ou por falta de provas. Na prisão, ao contrário dos registros na DEAM, prevaleciam claramente os que haviam estuprado desconhecidas. “Entre os apenados por estupro na prisão da Papuda do Distrito Federal, entre os anos de 1994 e 1995, cerca de 25% dos casos advinham de sentenciados cujas vítimas eram conhecidas” (Machado, 1999, p. 298).

Um dos casos de estupro entre conhecidos registrado na DEAM que seguiu adiante em 1996 foi o de um pastor que, como pai, estabeleceu contatos íntimos com sua filha de 15 anos. Relevante notar que na primeira denúncia a declarante foi uma tia da nora do acusado e não diretamente algum dos nove filhos ou a mãe. Contam-nos Bandeira e Almeida:

Em mais de uma ocasião, essa senhora presenciara o pai chamar uma das meninas ao seu quarto e percebido que algo estranho ali se passava. Todavia, o caso só tornou-se realmente público e a Justiça foi acionada quando Eunice deu à luz uma criança – seu filho-irmão – em fevereiro de 1996. (…) Eunice, filha de 15 anos, com a qual o pai mantinha contatos íntimos desde fevereiro de 1993. Naquela ocasião, aproveitando a ausência da mãe, Leonardo levou-a ao quarto e tentou abraçá-la. Ela não queria esse tipo de aproximação e foi saindo do cômodo, porém seu pai puxou-a pelo braço, tirou sua calcinha bem como a própria roupa. Durante muito tempo tais contatos não consumaram o sexo vaginal. Depois de fevereiro de 1994, no entanto, perdeu a virgindade e foi forçada a manter aproximadamente outras quinze relações com o pai. Essas cessaram somente ao ser confirmada sua gravidez, já no sexto mês (Bandeira & Almeida, 1999: 147-148).

É bastante claro neste caso o exercício do poder pelo pai e sua capacidade de impor silêncio sobre o que estava acontecendo. Quantos filhos-irmãos ainda terão que ser gerados para que os poderosos se sensibilizem da importância de acolher crianças e adolescentes, ao invés de forçá-las a se tornarem mães? O que será necessário para se entender que o poder familiar patriarcal pode se transformar em poder sobre os corpos e sexualidades das mulheres e meninas de sua casa e poder de impor segredo?

Caso meninas e adolescentes vitimadas por parentes e familiares recorressem aos serviços de aborto legal, seria necessário negar o procedimento por não terem percebido a gravidez a tempo ou por terem sido impedidas pelo controle familiar sobre seus corpos e segredos?

·        Pela humanização. Contra a imposição do sofrimento

Negar o aborto legal a elas, se a ele recorressem depois de vitimadas, seria a produção do sofrimento em grau intenso, como afirmam as notas dos Conselhos de Psicologia (Federal e Regionais):

O Sistema Conselhos de Psicologia destaca que o PL 1904/2024 ignora o sofrimento psicossocial produzido por essas violências e expõe vítimas a comprometimentos físicos, emocionais e psicossociais, bem como à perpetuação dos ciclos de violência e de vulnerabilidade social.

O Programa de Pós-Graduação em Tocoginecologia e o Hospital da Mulher da UNICAMP (CAISM) afirmam:

As meninas e mulheres vítimas de violência sexual precisam de acolhimento, cuidado humanizado e atendimento baseado em boas evidências científicas, e não de punição. No contexto da violência sexual, quem deve ser punido é o estuprador. (…) A criação de barreiras ao acesso terá como consequência o aumento das mortes maternas decorrentes de aborto inseguro, do agravamento de condições psíquicas e das complicações próprias da gravidez. Serão mais afetadas aquelas que chegam mais tardiamente aos nossos serviços: as meninas muito jovens e aquelas em situações de vulnerabilidade social.

A Associação Brasileira de Antropologia, através de seus comitês, finaliza sua nota com uma das frases que quero comentar: “No fundo, a pergunta que sustenta o PL é: quais são as vidas que contam?”. E acrescento outra pergunta: Quais os sofrimentos e as mortes que não importam?

Não há como não concluir sobre o estigma e a desumanização provocados pelo PL 1904 em relação às mulheres e meninas vítimas de estupro, assim como às mulheres e meninas que optam por abortar. Além de demonstrar indiferença ao sofrimento, os proponentes desse PL sustentam uma desumanização flagrante.

A desumanização se faz através do discurso que atribui a um “outro” atributos destituídos de humanidade e que tornam suas vidas descartáveis, matáveis e sacrificáveis, destituindo-as de humanidade (Agamben, 2013).

De onde viria a insensibilidade?, pergunta Talal Asad (2003). Seria uma insensibilidade advinda do disciplinamento religioso em que o princípio religioso torna necessário infligir sofrimento no outro que não aceita o mesmo princípio religioso? Ou seria o funcionamento secular da desumanização do outro a quem se quer fazer sofrer por necessidade para se manter um determinado ordenamento social do qual nos fala Asad (2011)?

As falas públicas recentes da vereadora paulista Aava Santiago, evangélica, do pastor Ariovaldo Santos, evangélico, e da socióloga Maria José Rosado, católica, se posicionando contra o PL 1904, confirmam e afirmam que entre evangélicos e católicos há diversidade.

Termino e conclamo. Pelos direitos à igualdade de gênero e raça. Pela maternidade desejada. Pelo estado laico. E pelo bordão: criança não é mãe.

 

Fonte: Por Lia Zanotta Machado para a coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

 

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