Luiz Nassif e o ‘Xadrez da esfinge do
desenvolvimento: ou Lula decifra, ou será devorado’
Se Lula não ousar ou fracassar,
as próximas etapas serão de uma desagregação ainda maior do país, até que surja
um Bonaparte.
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Peça 1 – a perda do futuro
Em meados dos anos 90,
Brasil, China e Índia eram vistos como os novos candidatos a potência. Os três
com grande base territorial, população, matéria prima, sistema
científico-tecnológico razoavelmente desenvolvido, uma boa indústria de base.
Trinta anos depois,
percebe-se que o Brasil perdeu o bonde. A causa maior foi a profunda
financeirização da economia, implementada a partir do Plano Real, mantida pelo
governo Lula e aprofundada no pós-impeachment, que corroeu ano a ano a
industrialização, trazendo de volta a dependência de produtos primários.
Revendo meus artigos
do início do governo Lula, confirmo que ele jamais ousou romper com essa camisa
de ferro imposta pelo FMI e, especialmente, pelo governo FHC.
Mas, em 2008 houve o
milagre. A grande crise global trouxe desafios novos para o país e para Lula,
que percebeu que não conseguiria superá-la mantendo o ritmo dos primeiros anos,
apesar do grande bônus trazido pelo boom das commodities. 2008-2010 foi um
triênio glorioso, com a explosão das conferências nacionais, trazendo lastro
para o grande pacto, um presidente pró-ativo inspirando todas as frentes na
batalha contra a crise.
Por isso, quando
sobreveio o golpe do impeachment, e o pesadelo bolsonarista, o que acalentava a
reação civilizatória era a possibilidade da volta de Lula 2008-2010, não o Lula
2003-2008.
O país passou pelo
desmonte pós-impeachment, pelo terraplanismo de Bolsonaro, pelo impedimento de
Lula concorrer nas eleições de 2018. Finalmente, vieram as eleições de 2022 e
Lula deu a maior contribuição à democracia brasileira, derrotando Jair Bolsonaro.
Venceu a primeira
guerra. E agora?
Há dois desafios pela
frente. O primeiro, mais imediato, reconstruir parcialmente o estado
brasileiro, após a profunda destruição no período Michel Temer-Jair
Bolsonaro.
O segundo, montar um
projeto de país, que possa recriar a esperança no futuro.
As eleições de 2022
foram o primeiro tempo da grande batalha civilizatória brasileira. Mas a
batalha final será travada em 2026. E o que se tem?
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Peça 2 – os vícios da financeirização
O rescaldo desses anos
de financeirização foi uma repetição assustadora dos vícios da República Velha
na Velha Nova República – inaugurada pelo Plano Real.
A financeirização da
economia global, que ficou mais evidente a partir dos anos 90, consagrou dois
modelos de gestão, na área públicas e na privada, em tudo similares às práticas
da República Velha.
Na política econômica:
- Prioridade para o livre fluxo de capitais, com impactos
sobre a inflação e sobre o crescimento.
- Para perseguir a estabilidade, uso férreo da âncora fiscal
e monetária, impedindo o aumento dos investimentos públicos. Na República
Velha através do padrão-ouro (que amarrava a emissão monetária às reservas
de ouro); na Velha República Nova através da obsessão pelo déficit zero e
pelas políticas monetárias restritivas.
- Tratamento preferencial ao investimento externo, direto ou
na forma de empréstimo. Na República Velha através dos altos subsídios
concedidos para as grandes obras (especialmente construção de ferrovias) e
ao pesado endividamento público, da União, estados e municípios. Na Velha
República Nova, através do financiamento da dívida pública com altas taxas
de juros e, a partir do impeachment, a abertura total do setor de serviços
e de construção aos grandes grupos internacionais. E uma política
econômica que contempla exclusivamente os interesses do capital financeiro
não produtivo.
- Como resultado, um profundo descontentamento da opinião
pública, com enorme aumento da agitação pública. Na República Velha,
através das revoltas militares, em torno do Tenentismo; o início da
agitação nos movimentos operários, com greves em 1917, 1920 e 1922; a
ruptura nas artes, através do Movimento Modernista. Na Velha República
Nova, o desmonte da economia com o lavajatismo, o aparecimento de um novo
personagem , o homus bobbus – como o cronista americano H.L.Menchen se
referia ao comportamento irracional das massas -, capturado pela parte
mais irracional da direita.
No plano privado, um
estilo de gestão predatório:
- O predomínio do capital gafanhoto, que entra e sai do país
ao sabor das oportunidades surgidas.
- As grandes tacadas na área pública, seja explorando o
endividamento público, seja se prevalecendo do poder político para obter
concessões, comprar estatais na bacia das almas.
- A exploração dos serviços públicos, através de concessões
descabidas.
- A busca incessante de resultados imediatos, em detrimento
do crescimento e da perpetuação das empresas.
O resultado foi essa
semelhança desanimadora. De um lado, a economia se tornando cada vez mais
dependente de produtos primários. Do lado político, um predomínio do poder
financeiro – na República Velha representado pelos cafeicultores-financistas do
eixo São Paulo-Minas, na Nova República Velha pelo poder político da Faria
Lima. Debaixo dessas camadas, na República Velha uma nova classe média,
modificada pela chegada de imigrantes, rompendo a submissão aos coronéis
regionais, trazendo novos conhecimentos comerciais e industriais, mas amarrada
pela política econômica vigente; na Velha República Nova o terraplanismo
ocupando o desânimo da classe média.
Na República Velha,
esse modelo foi rompido pelo Senhor Crise, que derrubou Washington Luiz, abriu
espaço para a Aliança Libertadora e a ascensão de Getúlio Vargas. Depois, a
crise da dívida externa obrigou Getúlio a interromper o livre fluxo de capitais.
Cortando as pernas do capital gafanhoto, ele se transformou em capital
produtivo, que ajudou a inaugurar o início da industrialização brasileira.
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Peça 3 – o Brasil do pós-guerra
A Segunda Guerra
Mundial foi a segunda grande crise que chacoalhou o país. Trouxe de volta o
conceito de planejamento, a ideia do esforço articulado para superar problemas
nacionais.
Depois, houve um salto
no desenvolvimento através de dois movimentos centrais.
O primeiro, o
investimento na indústria de base que, curiosamente, começa com o governo Dutra
e os leilões para as primeiras refinarias nacionais. Depois, por Vargas, com a
criação das grandes estatais que garantem os insumos básicos: energia
(Eletrobras e Petrobras), financiamento (BNDE), siderurgia (com a expansão da
Companhia Siderúrgica Nacional), o início do estudo para a construção de
grandes usinas hidrelétricas; os primeiros planos de desenvolvimento, o Plano
Lafer e os primeiros estudos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos.
Além da indústria de
base, houve o desenvolvimento de setores como cimento, produtos químicos,
alumínio e bens de capital.
Somado a isso, o
desenvolvimento do know how de planejamento, especialmente através da Cemig
(Centrais Elétricas de Minas Gerais), criada em 1952 pelo então governador
Juscelino Kubitscheck; e dos próprios quadros iniciais do BNDE.
Com essa a base
inicial, o governo seguinte, de Juscelino Kubitscheck, trouxe o capital
produtivo internacional, através da indústria automobilística, associado ao
capital financeiro nacional – que é induzido a se associar às montadoras e aos
fabricantes de autopeças.
Mas tudo isso em cima
de objetivos claros e de um planejamento minucioso, expresso no Plano de Metas.
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Peça 4 – o cenário atual
O que é o Brasil de
2024? Há um conjunto enorme de atores inexistentes nos anos 50:
- um mercado financeiro hipertrofiado, mas com uma poupança
que, dependendo das políticas públicas, poderia ser canalizado para
investimentos de longo prazo;
- um sistema robusto de financiamento da inovação, que
resistiu aos tropeções ao período Temer-Bolsonaro;
- uma capacidade de planejamento inexistente nos períodos
anteriores;
- uma demanda por otimismo que, à falta de um projeto de
país, se expressa ou na insatisfação generalizada com a situação ou na
explosão do bolsonarismo irracional;
- e o grande trunfo, da transição energética.
Além disso, há um
conjunto de perigos capazes de estimular a reação civil:
- o avanço avassalador do crime organizado, trazendo consigo
a ameaça concreta a qualquer projeto nacional;
- a desagregação total da política, submetida ao controle do
pior Congresso da história;
- um vácuo político que, durante a década passada, foi
ocupado por militares, por corporações públicas, pela Faria Lima, pelos
coronéis políticos, em um sintoma nítido de desagregação nacional.
Lula representa o
último laivo de racionalidade na política, a última esperança de um projeto
político agregador, de uma derrota final do terraplanismo. Mas desde que
consiga definir um projeto de futuro viável e planejado.
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Peça 5 – as limitações de Lula
Mas aí surgem as
limitações, parte derivada do estilo Lula de governar, acirradas pelo ambiente
político extremamente desfavorável.
No impeachment, o
Supremo Tribunal Federal convalidou a tese inconstitucional do impeachment sem
crime de responsabilidade. Fragilizou ainda mais o frágil presidencialismo
brasileiro.
Michel Temer e,
principalmente, Jair Bolsonaro praticamente terceirizaram o orçamento para o
Congresso. Turbinado pelo orçamento secreto, o chamado Centrão conseguiu
ampliar substancialmente sua bancada, criando um risco concreto para a
democracia: se, nas próximas eleições, ampliar a bancada conservadora no
Senado, ela ver-se-á em condições, inclusive, de impor o impeachment de
Ministros do Supremo.
A única maneira de
Lula conquistar o apoio do Congresso será através do aumento da sua
popularidade.
Mas a estratégia
cautelosa de Lula não tem futuro:
- Mantém os freios no investimento público para a manutenção,
a ferro e fogo, do déficit zero, visando não descontentar o mercado.
- Aguarda a queda lentíssima e gradual da taxa Selic para
destravar o investimento privado, sabendo-se refém de um Banco Central
dominado pelo bolsonarismo de Roberto Campos Neto e seu grupo.
- Trata a questão dos investimentos ambientais de forma
tópica e isolada, com cada Ministério cuidando individualmente de suas
prioridades.
- Promove um conjunto de concessões sucessivas aos poderes
político, militar e de mercado, o que garante a governabilidade imediata,
mas corrói, a cada concessão, o potencial político de Lula.
E há dois pontos de
chegada relevantes: as eleições municipais de 2024 e as eleições presidenciais
de 2026. Mesmo que acelere a queda da taxa Selic, a partir do próximo ano, não
haverá tempo útil para a retomada do crescimento, ainda mais com o pé quebrado
do agro, que atravessa um momento difícil de queda nas cotações de commodities.
O resultado dessa
falta de projetos está na mídia voltando aos tempos do pré-impeachment, uma
desagregação institucional por todo o país, permitindo o avanço do crime
organizado,
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Peça 6 – os trunfos
Até agora, houve duas
tentativas de ação articulada dentro do governo. Uma, reunião de secretários
executivos de Ministérios. Outra, a tentativa de articular uma frente
interministerial para definir o conteúdo nacional nas contas públicas. Ambas,
por iniciativa de secretários e ministros, sem envolvimento direto de Lula ou
da Casa Civil.
A Neoindustrialização
exige uma ação articulada entre ministérios, só possível com um grupo de
trabalho juntando todos eles e respondendo diretamente ao presidente da
República.
Por outro lado, a
única forma de se contrapor ao poder político avassalador do mercado, será
definir novos aliados fora do circuito capital financeiro-ruralistas-bancada da
bala.
Eles estão aí, à vista
de todos, no chamado campo do capital produtivo. Tem as confederações da
indústria, do comércio, a ABDIB (Associação Brasileira da Indústria de Base), a
Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Autoveículos), a Abimaq (Associação
Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos), as associações comerciais,
as centrais sindicais, os sistemas de apoio às pequenas e micro empresas, o
sistema de financiamento à inovação, os sindicatos representando a construção
civil e a construção pesada.
Todos esses setores
seriam aliados de um projeto de crescimento, de desenvolvimento, de
reindustrialização. Juntos, têm capacidade de influenciar o legislativo, de se
contrapor ao lobby do mercado, mas desde que surja uma liderança agregadora com
projeto de futuro: o presidente da República.
Sem esse projeto,
pressionar para onde, em que direção? O máximo que se ousa é a criação de algum
instrumento novo de captação para o BNDES, uma meta tímida de conteúdo
nacional, uma tributação sobre o contrabando praticado pelas grandes
plataformas estrangeiras. Com a Petrobras, haverá a possibilidade de um
reinício da construção pesada, através dos investimentos em estaleiros.
Mas é só.
Sem esse fio de prumo,
o bolsonarismo cresce inclusive nas federações industriais, nas associações
comerciais, na classe média. Há o risco concreto das volta das milícias ao
poder em 2026.
Há duas opções para
Lula:
- Marchar lenta e progressivamente rumo à derrota em 2026.
- Ousar colocar em marcha um plano nacional. A ousadia poderá
lhe custar o impeachment – como ocorreu com Dilma Rousseff. Mas será a
aposta na única tentativa capaz de reverter essa marcha inapelável para o
obscurantismo de um novo período bolsonarista. Seria o fim do país.
Mas, para tanto,
precisará de um planejamento minucioso, um grupo de trabalho que concatene as
ações, receba os inputs do setor produtivo, filtre as decisões mais relevantes
e as submeta à análise de Lula, dando-lhe instrumentos para pactos e ações
políticas.
Se não ousar ou
fracassar, as próximas etapas serão de uma desagregação ainda maior do país,
até que surja um Bonaparte, um déspota esclarecido, que sele definitivamente o
fracasso da democracia brasileira.
Fonte: Jornal GGN
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