O governo Lula e o Rio Grande do Sul
São raros os momentos
históricos em que é possível ver estadistas em ação. Estes são forjados nos
momentos mais desafiadores. É quase impossível que tal reconhecimento ocorra no
calor dos eventos e por seus contemporâneos. Somente a passagem do tempo fornece
as condições para que as paixões políticas sejam temperadas por maior
objetividade. Nos últimos anos, crises financeiras, como a de 2007-2009,
pandemias, aumento nas desigualdades sociais e econômicas, ataques ao Estado
Democrático de Direito, polarização social, guerras e a crise climática, para
citar alguns desafios, estão pressionando as sociedades, as capacidades
estatais e as lideranças nas esferas pública e privada.
Em 2017, o relatório
“Paradoxos do Progresso”, elaborado pelo Conselho Nacional de Inteligência dos
Estados Unidos já alertava que: “A capacidade das lideranças gerirem tensões
será intensamente testada … terão menos espaço para implementar políticas difíceis
e menos tempo para mostrar resultados.”. As democracias liberais seguiriam sob
tensão; e os radicalismos que emergiram nas últimas décadas se organizariam,
ainda mais, para capturar e canalizar as frustrações e o desespero das pessoas
que ficarem para trás a cada nova crise.
Em meio ao impactante
choque climático vivido no Rio Grande do Sul, os cenários que se desenham são
desafiadores. A reconstrução não será simples ou rápida. Os problemas se
tornarão cada vez mais complexos e as lideranças políticas, habituadas aos
exercícios de ilusionismo e procrastinação, serão testadas. Ao reconstituir o
que estamos vivendo, cientistas sociais do futuro observarão que, assim que
ficou claro que o Brasil estava diante do que poderia ser a maior crise
climática de sua história (até então), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
não hesitou em organizar uma comitiva, com ampla representação dos Três
Poderes, para sobrevoar o estado. Seu governo atuou rapidez e largueza
política. Desde então, não faltaram anúncios de medidas de apoio, bem como a
mobilização de pessoal, de estruturas governamentais e de recursos estratégicos
para o enfrentamento dos aspectos mais urgentes da crise em curso. O Congresso,
por sua vez, foi na mesma direção e suas lideranças merecem reconhecimento pelo
apoio e a agilidade na aprovação das iniciativas do governo federal.
O governo federal
criou o portal “Unidos pelo RS”, o qual registra ações nas mais diversas áreas.
Em 21 de maio, o principal indicador financeiro indicava R$ 60,7 bilhões em
“investimentos”, o que equivale a 0,6% do PIB do país em 2023. Tais números
merecem algumas qualificações. Assim, por exemplo, dos R$ 50,9 bilhões de um
conjunto de doze medidas anunciadas em 09 de maio, o dinheiro efetivamente
“novo”, com “impacto primário”, nos termos do governo, é de R$ 7,7 bilhões, dos
quais cerca de R$ 6 bilhões foram direcionados para capitalizar Fundos
Garantidores de Crédito. Esta medida, por sua vez, cria a expectativa de que os
bancos terão condições de emprestar R$ 30 bilhões em novos financiamentos no
RS.
Trata-se, portanto, de
uma possibilidade de acesso a recursos, a qual ainda dependerá de disposição
dos bancos realizarem novas operações de crédito e das pessoas físicas e
jurídicas terem o desejo e a possibilidade em assumir novas dívidas. Tal
crédito não é “investimento” no sentido macroeconômico do termo, pois não
necessariamente se traduzirá em gastos para reconstituir o estoque de capital
comprometido pela destruição em larga escala. Estes potenciais novos
financiamentos, muito provavelmente se direcionarão às necessidades mais
imediatas de recomposição do caixa de empresas e famílias, que já estão
endividados e perderam patrimônio. Metade dos “investimentos” reportados no
portal do governo federal não representa a difícil temática da “reconstrução” –
pontes, estradas, moradias, fábricas, fontes de energias renováveis, redes de
distribuição, manejo de bacias hidrográficas, recuperação de biomas
estratégicos etc. Por isso mesmo, novas medidas deverão ser tomadas no futuro.
Enquanto estadista, o
presidente Lula assumiu importante protagonismo no enfrentamento dos impactos
iniciais desta tragédia humanitária. Já a disputa pelos rumos da reconstrução
do estado – e pela introdução de uma agenda nacional robusta de resiliência climática
– está só começando. Lula, o político, tem diante de si uma sociedade que segue
dividida e um Parlamento hostil à “redistribuição de ganhadores e perdedores”
das políticas públicas. Não será trivial criar, de fato, uma “transição
climática justa” em uma das sociedades mais desiguais do planeta.
BRDE e FUNDOSUL
Em entrevista recente,
Nelson Barbosa, Diretor de Planejamento do BNDES, e um dos mais destacados
economistas de sua geração, sugere a necessidade da constituição de um fundo
especial para a reconstrução do RS. Sinaliza que o Fundo do Clima não tem recursos
suficientes para atender a demanda potencial de projetos na área ambiental:
informa haver um saldo de R$ 2 bilhões diante de consultas para novas operações
de R$ 30 bilhões. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS fez sugestão
convergente no dia 08/05, porém com uma diferença: consideramos mais adequado
que se estruture um Fundo para a Mitigação de Riscos Climáticos direcionados
para a Região Sul, a ser operado pelo Banco Regional de Desenvolvimento do
Extremo Sul (BRDE). Esta instituição, criada em 1961, atua em quatro estados
(RS, SC, PR e MS) e trabalha em parceria e em moldes similares ao BNDES, ainda
que em condições financeiras mais restritivas.
Os bancos públicos
federais têm maior acesso às fontes compulsórias de poupança, que se constituem
em uma rede ampla de robusta de instrumentos de funding. Há fundos
constitucionais criados pela Constituição Federal de 1988, desenhados para
reduzir assimetrias de desenvolvimento com ênfase nas regiões Norte,
Centro-Oeste e Nordeste. Tais recursos são geridos e aplicados pelo Banco da
Amazônia, o Banco do Brasil e o Banco do Nordeste, respectivamente. O BNDES,
por sua vez, tem no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) a sua principal fonte
de funding; e a Caixa Econômica Federal gere e utiliza o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS). Em conjunto, tais fundos mobilizam recursos da ordem
de R$ 1,4 trilhão, que equivalem a 13% do PIB nacional de 2023 ou cerca de 7%
do estoque de capital fixo da economia brasileira.
Não existe nenhum
fundo equivalente para a Região Sul. Um instrumento deste tipo seria
fundamental para ampliar os esforços em investimentos de longo prazo na região.
Antes desta crise, a aplicação de parâmetros internacionais para o Brasil,
indicaria a necessidade de algo entre R$ 300 bilhões a R$ 400 bilhões
adicionais em inversões, ao ano, para adaptação aos riscos climáticos (3% a 4%
do PIB). Para a região de atuação do BRDE, que respondeu por 23% da formação
bruta de capital fixo (FBCF) do país na década de 2010, em média, isso
implicaria montantes da ordem R$ 66 bilhões a R$ 92 bilhões/ano.
Para atender esta
demanda adicional, tanto o BNDES precisará de mais recursos, quanto o BRDE
deverá originar, com novas fontes, operações de crédito que viabilizem projetos
nos estados mais meridionais do Brasil. Estas e outras opções devem fazer parte
do menu de escolhas dos estadistas.
A Complexa Agenda do
Futuro
A Região Sul é
particularmente sujeita à recorrência de eventos climáticos extremos. Hoje, a
crise está no RS. Amanhã poderá estar em outro estado. Hoje, são enchentes.
Amanhã serão ventos fortes ou estiagens mais intensas do que as historicamente
registradas. Esta região também se caracteriza por ter experimentado a maior
destruição de biomas, especialmente o Pampa e a Mata Atlântica. Nestas regiões,
de acordo com dados do INPE, a vegetação natural remanescente representa 34% e
27% das coberturas originais, respectivamente. No conjunto do país, tal
parâmetro é de 59%.
Para evitar o cenário
da destruição seria fundamental, conforme detalhamos em artigo anterior,
recalibrar vários dos instrumentos do governo federal e tornar mais efetiva a
utilização de tecnologias já disponíveis. O INPE consegue fazer o monitoramento
espacial detalhado das regiões com desmatamento ou com recuperação de biomas.
Esta informação deveria fazer parte das políticas de crédito dos bancos
públicos e do uso de todos os fundos que financiam empresas e municípios,
constitucionais e outros. Pessoas físicas, jurídicas e municípios localizados
em regiões com níveis crescentes de desmatamento deveriam ser excluídos de
quaisquer modalidades de crédito direcionado, com custos menores. Seriam
elegíveis, apenas, para financiamentos com recursos livres e taxas de juros de
mercado. Tais diferenciações seriam parte de uma “política verde de
financiamento”. O governo federal tem o poder de alterar os parâmetros para o
uso do crédito direcionado que, em março de 2024, apresentava financiamentos de
R$ 2,4 trilhões ou 41% do saldo total de crédito bancário do país (R$ 5,9
trilhões).
Para recuperar acesso
ao crédito direcionado, aquelas pessoas físicas e jurídicas teriam de se
comprometer com a execução de planos imediatos de recuperação de biomas
destruídos. O acompanhamento do cumprimento destes planos se daria com o
monitoramento por satélite do INPE, de modo a minimizar os riscos de
greenwashing. Tratar-se-ia de um indutor em potencial de melhores práticas
ambientais, empregos e renda, estabelecendo um circuito virtuoso no qual o
crescimento induzido por condicionalidades verdes se disseminaria por outros
setores da atividade econômica. As tecnologias derivadas destes investimentos
fazem parte daquilo que se domina de “tecnologias de fronteira”, um mercado que
pode ultrapassar vendas de US$ 9,5 trilhões em 2030.
No lado dos incentivos
positivos, há linhas verdes para crédito, como as geridas pelo BNDES,
particularmente via Fundo do Clima. Seria importante ampliar esta rede, tanto
no BNDES, quanto pela criação de novos fundos, dentre eles o FUNDOSUL. Este,
por sua vez, poderia utilizar recursos originados na tributação verde, na
emissão de títulos verdes, nas negociações no mercado de carbono, em espaço
fiscal gerado por renegociações de dívida entre União e UFs, na retenção
integral de lucros e juros sobre o capital próprio gerado pelos bancos de
desenvolvimento, bancos comerciais e agências de fomento controladas pelos
entes governamentais, dentre outras fontes. Os depósitos compulsórios dos
bancos que captam depósitos poderiam ser mobilizados de distintas formas, como
foi feito em crises anteriores, inclusive na pandemia. Atualmente é da ordem de
R$ 640 bilhões, dos quais R$ 40 bilhões são originados no RS.
A tragédia do RS e a
sua superação reforçam a necessidade de recuperar as capacidades de indução e
de ação por parte do setor público. Isso afetará a distribuição de renda,
riqueza e poder, o que está no núcleo dos conflitos nas modernas sociedades de
mercado. O desafio do governo federal passará, necessariamente, pela discussão
sobre o desenho das regras fiscais e o questionamento das convenções mentais,
que seguem contaminadas por parâmetros que estão sendo abandonados nos países
centrais. Este será um teste decisivo para todos os governos e lideranças,
tanto no setor público, quanto no privado. Suas biografias serão marcadas por
aquilo que se fizer (ou não) daqui para frente.
Fonte: Por André
Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Alessandro Miebach, em Sul 21
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