quinta-feira, 30 de maio de 2024

Clima: O Estado em tempo de insegurança crônica

Cidades inteiras debaixo d’água. Uma imensidão de escuro e silêncio. Um cheiro de esgoto que não é de casa, que é de lixo. Gritos de desespero, pedidos de socorro. Uma pausa em tudo o que antes era rotina. O aeroporto está alagado, os ônibus e o metrô de superfície (Trensurb) não rodam mais. Até alguns hospitais fecharam. Não é enchente de água somente, é de barro, que gruda e destrói o que estiver no caminho. É uma lama que não poupa ninguém, mas que fere mais quem é vulnerável, atestando a pertinência do termo racismo ambiental: os mais atingidos são os pobres e vulneráveis, e dentre eles o percentual de negros e negras é maior. É o desespero de não ter pra onde ir, de contar com a casa do parente ou amigo, de buscar um abrigo seguro e seco. E são muitos os acolhidos nos abrigos, aos milhares. O abrigo é a casa de passagem, mas constitui um tempo que demora a passar, é um não-lugar. Para Augé (2000) os lugares têm características identitária, relacional e histórica. Seja no espaço privado da casa, seja nos espaços públicos de uso coletivo, os lugares ajudam a compor os sujeitos sociais, em um conjunto simbólico e concreto de possibilidades de ser e estar. Perder a referência de casa e dos locais comuns, portanto, é perder-se também de si.

Diante de toda essa tragédia, que tamanho um Estado deve ter para conseguir amparar os cidadãos frente a uma catástrofe sem precedentes? O Rio Grande do Sul vive possivelmente o momento mais dramático da sua história. Maio de 2024 está sendo marcado por uma enchente de proporções gigantescas, capaz de colocar o estado inteiro em situação de calamidade pública. Neste sentido, vemos que a organização da sociedade civil, composta por movimentos sociais, associações, sindicatos ou coletivos informais, tem sido fundamental. Por outro lado, todas essas iniciativas seriam insuficientes, se não fossem subsidiadas por políticas públicas, sobretudo de âmbito federal.

É correto afirmar que ‘o povo fazendo pelo povo’ tem não só demonstrado a ausência das políticas, como também tem comprovado a potência das massas organizadas. No entanto, depender da boa vontade de voluntários e de doações não é o bastante para garantir que a população, sobretudo mais vulnerável, consiga se restabelecer. Mais do que isso, devem partir da iniciativa pública as obras de infraestrutura e as políticas de prevenção capazes de impedir que isso volte a acontecer nessas proporções. Ou seja, a ausência de um Estado suficientemente capaz de amparar populações desassistidas significa a permanência dos sintomas sociais de insegurança em caráter crônico.

No ano de 2003, a cientista política Céli Pinto, da UFRGS, durante uma palestra, falava sobre os 10 anos da campanha da Ação da Cidadania, a “campanha do Betinho”. A despeito dos vários aspectos positivos, de mobilização da participação cidadã, da criação de agenda pública sobre o problema da fome, após 10 anos da benemerência da sociedade civil, o fim do problema não havia sido alcançado através dessa mobilização de atores individuais e grupais. Ou seja, seria necessário que o Estado enfrentasse efetivamente o problema, como estava fazendo o recém criado programa Fome Zero. O Estado tem orçamento, tem uma burocracia – um corpo funcional treinado e preparado – para capilarizar as políticas públicas de modo coordenado e organizado, a despeito da discricionariedade dos chamados “burocratas de nível de rua”, aqueles/as que estão lá na ponta, fazendo a política chegar às comunidades, grupos, famílias e indivíduos necessitados.

Nesses 20 anos que nos separam da argumentação da professora Céli, suas palavras se mostraram precisas: o que realmente diminuiu a fome de forma massiva, a ponto de tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, foi a ação estatal. Quando esta reflui, a partir da crise econômica em 2015 e dos governos irresponsáveis e privatistas do período 2017-2022, em 2022 o Brasil volta ao Mapa da Fome, segundo a ONU. O percentual de brasileiros em insegurança alimentar estava novamente acima da média mundial. Mais de 33 milhões de brasileiros passavam fome todo dia. Trata-se, assim, de demandas sociais em uma escala massiva que a sociedade civil, por mais que se esforce e tenha boa vontade, não consegue dar conta.

O próprio Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que tem protagonizado uma ação nacional das Cozinhas Solidárias, o faz na intenção de que esse projeto se institua enquanto política pública, pensando na criação da agenda. A propósito, já foi aprovado o projeto de lei nº 491/2023, que cria a Política Nacional de Cozinhas Solidárias, proposto pelo deputado federal Guilherme Boulos, que é líder do MTST. Essa estratégia demonstra a intenção do próprio movimento de instituir formalmente o programa enquanto uma ação do Estado.

Ao fazer referência às ações do Estado, especificamente ao caso atual, das enchentes que acometeram o RS, dentre as principais medidas anunciadas pelo governo, destacam-se as seguintes:

Em sete de maio, através do Decreto Legislativo nº 36/2024, foi reconhecido pelo governo federal o estado de calamidade pública decorrente dos eventos climáticos no Rio Grande do Sul. Com isso, foram previstas algumas medidas, como a União não computar as despesas autorizadas por meio de crédito extraordinário e as renúncias fiscais para o enfrentamento da calamidade. Na mesma data, o Decreto nº 12.106/2024 dispensou o intervalo mínimo para novo saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em situações de calamidade pública. Esta foi a primeira medida federal voltada à facilitação de acesso da população à recursos em um momento de necessidade, e foi complementada, em 15 de maio, pelo Decreto nº 12.019, que dispensou a documentação comprobatória para o saque do FGTS em situações de calamidade pública.

Não obstante, a Medida Provisória nº 1.219, de 15 de maio de 2024, instituiu o Apoio Financeiro às famílias desalojadas e desabrigadas, consistindo em um pagamento de R$5.100,00 por família elegível. Para o apoio às pequenas empresas, a Medida Provisória nº 1.216, de 9 de maio, autorizou a concessão de subvenção econômica a mutuários que tiveram perdas materiais nas áreas afetadas pelo desastre, e a facilitação do acesso à crédito, visando compartilhar os custos com as pessoas jurídicas.

Quanto ao governo estadual e aos municípios afetados pela tragédia, as políticas vêm sendo voltadas ao crédito público, flexibilização da dívida pública e das regras para licitações e apoio financeiro. A Medida Provisória nº 1.218, de 11 de maio, abriu crédito extraordinário em operações nas áreas de agropecuária sustentável, educação, segurança pública, saúde, transporte, trabalho, alimentação, defesa, assistência social e gestão de riscos e desastres. Entre os valores, destacam-se os recursos previstos para a subvenção econômica a micro e pequenas empresas, conforme a Medida Provisória nº 1.216, também a subvenção econômica para operações do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e investimento rural e agroindustrial, e recursos para ações de proteção e defesa civil, incluindo o emprego das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança Pública. A saúde também conta com grande parte dos valores, para o atendimento de demandas farmacêuticas e para atenção à saúde em procedimentos de atenção primária, assim como para procedimentos em média e alta complexidade. Por fim, ressalta-se o crédito disponível para a recuperação e restauração das rodovias federais e para o pagamento do seguro-desemprego.

O pagamento da dívida pública pôde ser postergado conforme a Lei Complementar nº 206, de 16 de maio, sendo reconhecida a dificuldade enfrentada em meio à calamidade pública. Os montantes postergados deverão ser direcionados a planos de investimento em ações de enfrentamento e mitigação de danos. A excepcionalidade também é observada na necessidade de aquisições, em caráter de urgência; portanto, a Medida Provisória nº 1.221, de 17 de maio, dispôs sobre a flexibilização para a aquisição de bens e a contratação de obras e serviços para esse enfrentamento. Finalmente, em 21 de maio, a Medida Provisória nº 1.222 previu a prestação de apoio financeiro aos municípios afetados pelas enchentes, em destinações de recursos que ainda deverão ser observadas.

Visando ao planejamento e à coordenação das ações federais, assim como a uma articulação entre ministérios e órgãos, interlocução com a sociedade civil e promoção de estudos técnicos especializados, em 15 de maio foi aprovada a Medida Provisória nº 1.220, que criou a Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul. As casas legislativas são relativamente atuantes, principalmente através daqueles/as parlamentares identificados com as causas populares.

As iniciativas da sociedade civil são inúmeras, muitas em articulação com as governamentais, nos três níveis (federal, estadual e municipal), outras totalmente independentes. Universidades abriram suas portas para criar abrigos, em diálogo com as prefeituras; igrejas, clubes e casas viraram centros de recepção, triagem e envio de doações. Caminhões e carros vieram de todo o Brasil, trazendo voluntários e doações; a empresa pública Correios transportava toneladas de doações, sem custo aos remetentes. Um mapeamento das iniciativas cidadãs hoje seria de enorme complexidade, tal a abrangência que a solidariedade tomou, atuando em várias frentes, do resgate de pessoas e animais à abrigagem, alimentação e demais cuidados. Acontece que esta mobilização tende a diminuir com o tempo e não atinge a escala necessária para o amparo/assistência social de uma população inteira, e muito menos para a reconstrução de um estado devastado.

Para explicar de forma mais clara o caráter social e múltiplo da economia, utilizamos o aporte do economista húngaro Karl Polanyi (1886-1964), que mostrava a dimensão plural do fenômeno socioeconômico, abordando-o em pelo menos quatro vertentes complementares:

Os princípios são os de redistribuição (o Estado coleta e redistribui recursos, seja em serviços, seja em valores diretos, viabilizando a vida coletiva em sociedades desiguais), de reciprocidade (filantropia, associativismo, cooperativismo popular, solidariedades várias), de domesticidade (economia doméstica, ajuda intra e entre famílias, mutirões comunitários etc.) e de troca mercantil (mercado/lucro). O problema foi que, modernamente, com a “grande transformação” do mundo feudal para o mundo industrial-capitalista, a economia de mercado assume vida própria e domina a totalidade da vida social, perdendo-se de vista essa pluralidade de princípios e práticas que cada um envolve (STIGLITZ, 2012).

As enchentes e suas trágicas consequências, justamente, nos mostram esses princípios em ação. Deixaram bem claro quem pode fazer o maior volume de aportes necessários, pelas razões já citadas através da professora Céli Pinto no início deste texto: a redistribuição estatal e seu orçamento de grande porte cuja função precípua é o bem estar social. A função precípua da empresa privada é gerar lucro aos proprietários ou acionistas; se diminuir o bem estar social faz o lucro crescer, torna-se ético na lógica puramente mercantil, que obedece à lógica do lucro e da acumulação, às leis do valor. Para que o primado dos interesses privados de acumulação adquirisse legitimidade social, foi necessário difundir a ideia do Estado como ‘pesado’, ineficaz, lento e corrupto. Casos de corrupção de grandes corporações raramente são tratados nas mídias com a mesma espetacularização que casos de corrupção governamentais (lembrando: governos são ocupantes das estruturas do Estado por sistema eletivo, não são o próprio Estado). A enchente de 24 demonstra claramente os argumentos de Polanyi e de Céli Pinto, na prática.

A catástrofe que estamos vivendo no Rio Grande do Sul tem proporções suficientes para causar uma variação nas nossas premissas de tempo e espaço, para o bem e para o mal. Isso porque o lugar que era seco, protegido e seguro, agora se mostrou passível de ser inundado, se perder, se desfazer em minutos. O tempo, que era cronológico, e aparentemente natural, se tornou paralisado, deslocado e fez a vida ‘pausar’ num vácuo. De tudo, o que estava estático se transformou em uma emergente situação de insegurança, que a nossa geração não vai conseguir esquecer. Nossos parentes mais velhos nos contavam sobre a famosa ‘enchente de 41’. Nós contaremos aos mais jovens sobre a enchente de 24, com a diferença que, 80 anos depois, enfrentamos o risco real das alterações climáticas pela ação humana.

Para o sociólogo britânico Anthony Giddens (2002) a segurança ontológica é gerada nas pessoas quando se sentem seguras num sentido contínuo e estável. Seria a possibilidade de crer na continuidade de nossas auto-identidades, na constância dos ambientes sociais e materiais em que vivemos, um senso de confiança nas pessoas e coisas ao redor. O autor faz uma interpretação sociológica da presença do sentimento de insegurança, referindo que o tempo passa a “ser entendido como uma série de momentos descontínuos separando as experiências prévias das subsequentes de tal maneira que nenhuma ‘narrativa’ contínua possa ser sustentada”.

Ele mostra como a noção de tempo vai se alterando de acordo com as vivências ou as posições de cada sujeito no mundo, produzindo diferentes significados e sensações. A emergência dos problemas socioambientais, que passa a ganhar ainda mais concretude, se consolida, portanto, em mais uma insegurança ao contexto brasileiro. Giddens (2002) também faz referência à descontinuidade na experiência temporal que é característica de múltiplos sentimentos. Para ele o tempo passa a ficar ‘vazio’, o que é um modo de ser que consegue a proeza de relacionar o passado e o futuro. A catástrofe que estamos vivendo no RS será vista como um marco, simbolizando o que a água levou, e o que depois disso pode – ou não – ser refeito. A dicotomia que estabelece uma noção entre segurança ou risco depende de “conjunções historicamente únicas nas condições da modernidade”. Assim, novos cenários inseguros, tanto locais quanto globais, são criados por mecanismos de desencaixe, como os perigos ambientais, que hoje ameaçam os ecossistemas como um todo, gerando uma desorientação cognitiva e emocional. Entretanto, nos territórios desprotegidos ou desalentados, esses efeitos da insegurança tendem a ser mais expressivos.

Importa destacar que os efeitos desta crise ambiental também são efeitos do capitalismo. Harvey (2019) enfatiza que o modo como estamos tratando a natureza é altamente contestado e que essa questão “não pode ser abordada independentemente da compreensão do funcionamento da circulação e expansão do capital”. O Estado deve assumir, portanto, uma função de controlar, averiguar e mitigar os efeitos predatórios das cadeias produtivas. O autor ainda afirma que quando uma parte significativa da população “expressa o desejo de estabelecer uma relação diferente com a natureza […] o processo geral de acumulação de capital pode ser forçado a seguir caminhos alternativos”. Ou seja, a função estatal também deve intervir na prevenção das catástrofes climáticas, mesmo que isso implique em uma mudança radical das formas privadas de produção. Neste caso, ainda que a opinião dos cidadãos (aqui considerados clientes) possa ser uma preocupação dos capitalistas, as ações regulatórias (e punitivas) aos predadores ambientais tendem a ser mais efetivas quando protagonizadas por órgãos do Estado. Nesse contexto, um ‘Estado mínimo’, é também um Estado omisso em relação às regulamentações ambientais emergentes. Um Estado responsável deve ter medidas claras para atenuação dos problemas socioambientais, sobretudo responsabilizando as empresas.

O Estado precisa ser democrático e submetido ao controle social dos cidadãos e cidadãs; mas ao mesmo tempo forte, funcional, ágil e consistente para prover um espaço seguro, permanentemente seguro. É preciso que tenhamos políticas públicas estruturantes, para que a população não dependa apenas da boa vontade da comunidade. Por mais que os inúmeros casos de solidariedade altruísta sejam positivos e absolutamente necessários em tempos extremos, as doações da sociedade civil não são sustentáveis a longo prazo, indefinidamente. Precisamos também de uma sociedade civil que compreenda seu papel e que participe do processo de democratização do Estado.

 

Fonte: Por Julice Salvagni, Marília Veríssimo Veronese e Maira de Souza Ricardo, em Outras Palavras

 

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