“Violência no campo vai aumentar”, afirma professor da Unesp
Movimentos e intelectuais do campo da
resistência costumam dizer que no Brasil nunca ocorreu uma reforma agrária que
efetivamente desconcentrasse a propriedade de terras. Para o professor Bernardo
Mançano Fernandes, professor livre-docente da Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do Núcleo de
Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), o que temos é a
reforma agrária possível. Para ele, o campo hegemônico do agronegócio e da
bancada ruralista define ou aprova, por exemplo, quem será o nome à frente do
Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). A vantagem de um governo
progressista é a de poder criar políticas públicas que fortaleçam comunidades e
povos excluídos; e que, no médio e longo prazos, isso possa corroer o poder
hegemônico. Mançano tem entre seus temas centrais de estudo o capitalismo
agrário, a reforma agrária, desenvolvimento territorial, Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Via Campesina. O pesquisador aponta
os movimentos sociais como impulsionadores da reforma agrária — por isso as
tentativas fracassadas de criminalização, como a CPI do MST. Ele prevê mais
violência no campo com o aumento das armas, mas acredita que o modelo
destruidor vigente está se esgotando. “O agronegócio não é sustentável,
está morrendo; as forças populares estão nascendo”.
>>> Confira a entrevista:
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Nós tivemos uma contrarreforma agrária nos governos
Temer e Bolsonaro, sendo que já no governo Dilma Rousseff houve uma diminuição
de assentamentos depois de um pico nos governos FHC e Lula. Agora, no novo
governo de Luiz Inácio, foram anunciadas algumas medidas de retomada. A gente
pode dizer que o Brasil está de novo numa marcha de reforma agrária? São
medidas compatíveis para compensar os déficits dos governos anteriores?
Bernardo Mançano Fernandes – Temos
diferentes leituras desse tema. Algumas entendem que a reforma agrária deve ser
feita de uma única vez e deve desconcentrar a estrutura fundiária. Ou seja, se
não diminuir o índice de GINI (medida de desigualdade), nós não temos
uma reforma agrária, mas apenas uma política de assentamentos rurais. Na minha
opinião essa leitura é muito ortodoxa, e nós sabemos que a política é sempre um
processo que deve considerar cada momento. Mesmo os Planos Nacionais de Reforma
Agrária (PNRA) 1 e 2, de 1985, voltados para uma fração do território com
estimativa de número de famílias e área a ser desapropriada, não conseguiram
cumprir essa meta. Porque o histórico do Brasil é o da concentração de terras
na sua estrutura formativa, determinada pelos grandes latifúndios e pelas
corporações nacionais e multinacionais que controlam esses territórios.
Teríamos de ter um governo com grande poder para desconcentrar essa estrutura
fundiária e isso não existe. [Desde a redemocratização] cada governo adotou
medidas contra ou a favor da reforma agrária. Nunca houve uma iniciativa de
estado ou governo em defesa da reforma agrária. Todas as políticas e planos já
criados foram resultado da pressão dos movimentos sociais e camponeses. Esses
números atuais de 1 milhão de famílias em 90 milhões de hectares de terras que
foram destinadas à reforma agrária, [são terras] não necessariamente
desapropriadas, porque muitas eram terras públicas, com uma parte sendo
negociada e os latifundiários receberam pela terra. No Brasil, a reforma
agrária não é de expropriação, mas de negociação. E isso é mérito da luta
popular, que avança e recua conforma a conjuntura, que se transforma e que
contribui com alimentação saudável. Nós temos a reforma agrária possível derivada
da luta dos sem-terra e dos governos progressistas. Quando temos um governo
conservador, o processo para completamente. Esse é um novo momento de reforma
agrária. O que eu quero enfatizar aqui é que essa é uma política do futuro,
porque o modelo do agronegócio é predatório, que gera alimento ultraprocessado,
com desmatamento, com uso de veneno, contaminação e problemas para a saúde
ambiental e saúde pública.
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Sobre essa correlação de forças, o governo Lula não
se dispõe a enfrentar o agronegócio. Faz uma distinção do agronegócio
“malvado”, mas não está disposto a enfrentar uma bancada ruralista com 300
deputados. Então, como implementar uma reforma agrária nesse contexto? Será que
as medidas anunciadas, ao lado da primeira-dama, não foram mais identitárias do
que as realmente necessárias? Temos uma configuração de ministérios alinhadas a
uma demanda internacional, de defesa do ambiente e dos povos originários, com
Marina Silva e Sônia Guajajara, e atendendo a uma parte da esquerda. As velhas
matrizes econômicas foram deixadas de lado nesse anúncio?
Eu entendo que o que a bancada ruralista representa
é um reflexo da hegemonia do agronegócio no mundo. Ou seja, essa conjuntura de
formação da bancada ruralista no Brasil se repete em outros países. Os governos
são reféns do agronegócio. O Lula não vai definir quem é o ministro no Mapa, é
o agronegócio quem define. A bancada ruralista é fascista, mas ele vai ter que
negociar, porque parte dela faz parte da bancada de apoio do governo. É uma
conjuntura que pode se romper a qualquer momento e que pode derrubar o
presidente da República. É um problema seríssimo com o qual o governo tem que
saber lidar. A situação da base de apoio é quase intratável, mas ela representa
a hegemonia do poder. O papel do PT e do presidente é o de tentar negociar a
outra parte que está excluída do processo [de poder]. Aí entra a questão
identitária, os sem-terra, os indígenas, as mulheres, os negros e negras, todas
as pessoas que estão fora desse processo hegemônico. O governo progressista
tenta transferir uma parte dos recursos para atender as demandas dessa
população excluída. E quanto mais esse povo excluído se organiza, mais ele
disputa o Estado e seus recursos e fortalece o governo. E isso vem acontecendo.
O governo Lula de 2003 foi a primeira experiência de um governo popular nesse
país. Talvez estejamos vivendo agora a quarta experiência. Não sabemos se essa
tendência será mantida ou nas próximas eleições será eleito um fascista. O
mundo todo tem alternado os ciclos entre governos progressistas e
conservadores, que podem ou não chegar ao fascismo, mas entre os progressistas,
não passam da centro-esquerda. Não há avanço para um governo revolucionário
porque não há conjuntura para isso. Por isso é fundamental construir políticas
públicas para que essas populações possam alcançar melhor qualidade de vida,
que possam tentar mudar o mundo e construir espaços para tentar romper com essa
hegemonia, que se enfraquece pelo enfrentamento e pela sua insustentabilidade.
Os contra-hegemônicos conseguem aos poucos criar estruturas para minar esse
poder.
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Como avalia ponto-a-ponto esse programa, junto com
o anúncio do Plano Safra 2023/2024, com cifras recordes (R$ 71,6 bilhões ao
crédito rural para agricultura familiar), retomada da reforma agrária, com
prioridade para famílias comandadas por mulheres e previsão de 40 mil famílias
regularizadas; Programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais, com meta de 90
mil até 2026; Bolsa Verde, com auxílio a famílias de baixa renda vivendo em
áreas a serem protegidas ambientalmente; Programa Nacional de Cidadania e Bem
Viver para Mulheres Rurais; Lavanderias Coletivas, instalação de nove unidades
em assentamentos em três estados do Nordeste; Criação da Comissão Nacional de
Enfrentamento à Violência no Campo; Pacto Nacional de Prevenção aos
Feminicídios?
Sabe qual é a grande vantagem dessas políticas?
Elas existirem. Quem proporia isso do poder hegemônico? Ninguém. Quem propõe
essas políticas são os próprios sujeitos, ocupando um espaço político
fundamental em Brasília e construindo essas experiências. Quatro anos de
desenvolvimento dessas políticas constroem novas experiências, transforma novos
espaços, supera novos problemas. É por aí que é possível avançar, disputar o
poder. As mulheres cantam isso há décadas. A ação das mulheres na reforma
agrária é o que faz avançar essa luta. A reforma agrária não acontece sem elas,
mas elas nunca foram beneficiárias de políticas como essas, que fazem parte
desse território onde a vida delas acontece. Essas são sementes da
transformação. Mas eu esperava nessa lista a inclusão dos mercados, para que
essas mulheres possam levar a produção diretamente para aquelas que consomem.
Em relação à verba, podemos avaliar que foram valores muito superiores para o
agronegócio em comparação com a agricultura familiar, mas é o que a correlação
de forças está permitindo. E essas forças estão nascendo, enquanto o modelo
hegemônico está morrendo, essa é a diferença.
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Em relação ao poder da bancada ruralista e do
agronegócio face às escolhas do governo, se o governo não “obedece”, não
escolhe um ministro do Mapa, por exemplo, o que acontece? O risco maior é o
impeachment?
Se o governo indicar alguém que esse poder aceita,
tudo bem. Mas vai colocar um Paulo Teixeira (ministro do Desenvolvimento
Agrário) no Mapa e vê o que acontece? Ele é ministro do MDA e não do Ministério
da Agricultura porque não faz parte desse projeto político (hegemônico). Alguns
ministérios são estratégicos para ceder e ter o apoio (parlamentar). Desde o
primeiro governo Lula em 2003 o agronegócio “indica” o ministro. Foi o caso de
Roberto Rodrigues. As corporações já estão fazendo essas negociações desde
antes das eleições, declarando apoio, “mas quem vai indicar o ministro da
agricultura somos nós”. Para eles, não importa quem é o governo, se é o
(Gustavo) Petro (presidente da Colômbia), (Alberto) Fernández (Argentina) ou o
Lula, desde que não mexam nas estruturas que controlam o capitalismo. Só
avançamos por esse conjunto de políticas como essas citadas da reforma agrária.
O poder progressista abre uma brecha para avançar um pouco, mas sob o controle
do poder hegemônico. Se o avanço é maior do que o que eles permitem, eles
usarão sua força para derrubar o governo.
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O avanço da extrema direita e o governo Bolsonaro
são fruto de uma percepção de que essas políticas populares permitem algum
avanço?
Por que eles anularam o Pronera (Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária)? Por que associaram o Pronaf (Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar) com a produção de commodities e não
com agroecologia no governo anterior? Porque o modelo da agroecologia bate de
frente com o agronegócio. O Pronera parte de uma educação crítica, que vai
levar ao enfrentamento com o agronegócio. Qualquer tipo de política pública que
questione a hegemonia é anulada ou destruída, se possível. Ou invertem o
processo, como fazer que a agricultura familiar sirva ao agronegócio.
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Sobre a CPI do MST, você acompanhou as sessões?
Como avaliou essa CPI?
Uma das avaliações é a estupidez da bancada
ruralista. Chega a ser cômica. Eles estão tão confortáveis com a zona
hegemônica que fazem perguntas que permitem respostas que desmontam tudo o que
eles afirmam. Eles realmente acreditam que o MST é um movimento criminoso e aí
eles perdem a noção do que é o conhecimento de fato. Durante toda CPI o que se
demonstrou foi a existência de um movimento (MST) que contribui com a
agricultura e com o desenvolvimento econômico do país.
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A CPI teve algum poder de barganha junto ao governo
Lula?
Acho que num primeiro momento eles consideraram
que, como MST era um parceiro forte do governo Lula, se conseguissem desbancar
o movimento, fragilizariam o governo. Mas não conseguiram. Eles iriam barganhar
de qualquer maneira.
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A oposição conseguiu convocar muitos depoentes, ao
contrário da bancada do governo. Acha que o depoimento do (João Pedro) Stédile
(líder do MST) influenciou no andamento da CPI?
A participação do Stédile foi a mais importante. De
todas as participações que eu assisti, o conteúdo mais elaborado veio da defesa
(do movimento), não da acusação. A acusação não conseguiu atingir seu objetivo.
E o Stédile colocou uma pá de cal na CPI. Ele não ficou encurralado em nenhuma
questão.
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Não houve uma terceirização da bancada ruralista
para os bolsonaristas assumirem a linha de frente da CPI?
A bancada ruralista não é homogênea. Há tendências
mais esclarecidas, que conhecem o papel do MST, como Kátia Abreu, Roberto
Rodrigues, o próprio ministro da Agricultura (Carlos Fávaro). O que ficou claro
é que participou da CPI a parte mais conservadora da bancada e os bolsominions.
Muitos nem sequer são ruralistas. Alguns representam, mas outros apenas se
identificam, votam com o setor. Os bolsominions eram os menos preparados. Ou
tiveram uma assessoria ignorante, ou não tiveram assessoria. Apesar de ser poderosa,
a bancada tem diversos pontos fracos.
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Considerando que temos um governo de
centro-esquerda, como você está vendo a situação da violência no campo? Por
exemplo, o assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete (Maria Bernadete
Pacífico), entre outros. Você vê uma perspectiva de combate à essa violência?
Se nós pegarmos todo o contexto de armamento do
governo Bolsonaro, e agora estão se armando mais porque têm mais medo, as
evidências apontam para um aumento, e não para a diminuição da violência.
Agora, a maior parte dos assassinatos que acontecem decorrem de uma milícia que
está organizada para isso no Brasil inteiro. O problema maior é que essas
milícias têm o apoio da polícia. Precisaria de um trabalho muito bem-feito de
criação de uma força não identificada com a bancada ruralista nem com a
milícia, que pudesse apurar os crimes e capturar os criminosos de fato. Um
exemplo. Eu aqui no Pontal (do Paranapanema) já fui ameaçado de morte várias
vezes. Todos os boletins de ocorrência que eu fiz desapareceram. A segurança do
país é uma segurança que ameaça. Esse governo poderia criar uma polícia
agrária. Por exemplo, com a volta do governo Lula, os organismos de combate ao
trabalho escravo, desmontados no governo Bolsonaro, voltaram a funcionar.
Precisamos de instituições que não concordem com o assassinato de quilombolas,
população de rua, negros, pobres.
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Seria possível desmilitarizar as forças policiais?
A estrutura da corporação existe pela lógica da
militarização. Desmilitarizar seria criar uma outra polícia e este seria um
processo de longo prazo.
Fonte: De Olho nos Ruralistas
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