Venezuela vive 'ano dos acordos' e termina 2023 com menos sanções e mais
aliados
O ano de 2023 na Venezuela foi repleto de grandes
acordos que pautaram a vida nacional e definiram a política externa do atual
governo de Nicolás
Maduro. Se no plano interno chavistas e opositores conseguiram de alguma forma
encontrar consensos para planejar as eleições presidenciais que devem acontecer
no próximo ano, externamente as relações foram harmoniosas com amigos vizinhos
e até inimigos distantes.
O retorno
de Lula à Presidência do Brasil reaproximou os dois países que viveram
anos de tensão quando o Palácio do Planalto foi ocupado por Bolsonaro. Ao sul
da fronteira, o primeiro mandatário de esquerda da Colômbia, Gustavo Petro,
também se mostrou interessado em aprofundar a reaproximação iniciada na sua
posse, em agosto de 2022.
Até mesmo os EUA, que desde 2014 impõem sanções
contra a economia da Venezuela, decidiram alterar o curso de algumas diretrizes
diplomáticas e fizeram acenos à Caracas que resultaram em alívios no bloqueio
contra a indústria petroleira, acordos migratórios e a soltura de aliados do
governo venezuelano que estavam presos.
"Os acordos significam muito, porque eles
possuem camadas visíveis e outras invisíveis", opina Edgardo Lander,
sociólogo venezuelano e professor emérito da Universidade Central da Venezuela
(UCV). Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador afirma que,
no caso das relações com os EUA, o retorno de empresas
estrangeiras ao negócio do petróleo são pontos concretos, mas existem
"movimentações importantes".
"Eu acredito que isso se deu por iniciativas
dos EUA que estão ligadas a dois aspectos: primeiro a guerra na Ucrânia, que
alterou a visão sobre o mercado petroleiro global, pois eles querem garantir
que a Europa se desprenda das fontes energéticas russas. Além disso, há
interesse em explorar reservas territorialmente próximas, ou seja, no
continente americano. No entanto, com a deterioração da indústria petroleira e
com a falta de investimentos, não é possível aumentar muito a produção da
Venezuela a curto prazo, pois os EUA bloquearam completamente o setor",
disse.
O interesse estadunidense em voltar a fazer
negócios com Caracas começou a ser aventado ainda no ano passado, quando o
presidente Joe Biden enviou uma delegação oficial em duas ocasiões para se
reunir diretamente com o governo de Nicolás Maduro. Já em 2023, Washington
esperou que chavistas e opositores assinassem um acordo eleitoral em
Barbados para suspender as sanções que mantinham a estatal petroleira
venezuelana, a PDVSA, praticamente impedida de fazer negócios no exterior.
Em dezembro, após uma troca de prisioneiros entre
EUA e Venezuela, que terminou com a libertação do empresário Alex
Saab e de dez cidadãos estadunidenses, se tornou público um processo de
diálogo entre ambos os países que vem sendo mediado pelo governo do Catar.
Por conta de todos esses contatos, diretos e
mediados, Lander acredita que "a Venezuela vai ser um tema muito central
nas eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2024". Na visão do
professor, petróleo e migração serão os pontos principais e, por esse motivo,
além de aliviar sanções energéticas Washington também liberou a extradição
direta de venezuelanos para o país de origem, algo proibido até setembro deste
ano.
Ainda de acordo com Lander, há um "consenso
petroleiro" sendo formado em torno da economia venezuelana que é
construído não apenas no exterior, mas também entre os atores internos. "O
governo e a oposição de direita estão de acordo que a Venezuela é um país
petroleiro e que a única maneira de sair da crise econômica é com a produção de
petróleo. Isso parecia uma coisa superada, mas é novamente um consenso
nacional", disse.
·
Oposição, governo e setor privado
A palavra "consenso" também foi utilizada
ao longo do ano por diversos atores políticos e econômicos venezuelanos. Em
repetidas ocasiões, o presidente Nicolás Maduro falou sobre a construção de um
consenso em torno dos apelos a Washington para a eliminação das sanções. O
chamado foi atendido pela principal entidade empresarial do país,
a Fedecamaras.
Em julho, o empresário Adán Celis, que havia
acabado de ser eleito presidente da instituição, se juntou às reivindicações do
governo. "Nenhum país quer estar sancionado, o venezuelano que diz querer
sanções é um louco. Evidentemente, nós pedimos que as sanções sejam eliminadas,
elas não fizeram outra coisa senão empobrecer o país", disse Celis à
época.
A postura do sindicato patronal marcou um
distanciamento, pelo menos discursivo, entre a Fedecamaras e a ala mais radical
da oposição de direita, que foi uma das principais promotoras e defensoras das
sanções econômicas impostas contra a economia venezuelana. Além disso, a
presença do empresário em atividades presidenciais e os contatos diretos entre
ele e Maduro marcaram o início de um clima amistoso entre o governo e o setor
privado após anos de conflitos marcados por apoios a golpes de Estado, por um
lado, e uma política de expropriações, por outro.
A busca por entendimento também esteve presente no
mês de outubro em Barbados, quando as delegações do governo e da oposição
viajaram ao pequeno país caribenho para assinar o acordo que definiu as regras
eleitorais para 2024. Ali, as partes decidiram, entre outras coisas, diminuir o
clima de tensão política e respeitar os resultados do próximo pleito
presidencial.
"Levando em conta o cenário que predominou nos
últimos anos, pensar em um tratado nesse sentido era algo utópico", opina
Stephanie Braun Clemente. Ao Brasil de Fato, a doutoranda em
Relações Internacionais e pesquisadora do Observatório Político Sul-Americano
(OPSA) da UERJ destaca a complexidade por trás do consenso e afirma que a
assinatura do acordo de Barbados se deveu "à pressão dos Estados Unidos".
"Mas a efetividade do acordo ainda não é algo,
de fato, concreto para avaliação. Afinal, suas principais pautas, que versam no
sentido de haver eleições limpas, livres e democráticas no país em 2024 e a
suspensão das inelegibilidades que pesam sobre candidatos opositores, ainda não
foram colocadas em prática", aponta.
A pesquisadora ainda acredita que o acordo entre
governo e oposição "se apresenta como um instrumento da capacidade do
governo Maduro de dialogar com a oposição, visando a suspensão de sanções,
ainda que não existam planos concretos para tirar do papel todas as pautas
levantadas na reunião".
"Já para a oposição, esses diálogos
representam uma tentativa de concorrer nas eleições de 2024, principalmente
tendo em vista que a candidata que venceu as primárias opositoras, Maria
Corina Machado, ainda se encontra inelegível. Como a linha de atuação anterior
dos EUA se mostrou pouco efetiva em conseguir abalar, desestabilizar e retirar
Maduro do poder, o foco agora é ter algum grau de participação no pleito
presidencial", diz.
·
Essequibo: consenso, tensão e acordo
Um dos pontos que esteve presente no acordo de
Barbados e angariou a concordância de ambas as partes foi a reivindicação
pelo território
do Essequibo, que dominou a pauta venezuelana no último trimestre do ano. O tema
foi, de fato, o grande consenso nacional que conseguiu unificar governo,
oposição e praticamente todos os setores da sociedade civil em torno do
referendo realizado no dia 3 de dezembro.
A comprovação foi a vitória expressiva da opção
"sim", que recebeu mais de 96% dos votos e referendou o apoio dos
eleitores à condução do governo sobre a controvérsia territorial. A defesa da
soberania venezuelana sobre o território de 160 mil km² rico em petróleo se
tornou um tema nacional e acirrou ainda mais as tensões do país com a vizinha
Guiana, a contraparte interessada na disputa.
O país acusa Caracas de "expansionismo" e
diz que o Essequibo é parte de seu território. A disputa, no entanto, ganhou
contornos mais tensos desde 2019, quando a Guiana emitiu concessões à empresa
estadunidense Exxon Mobil para que ela explorasse as enormes reservas marítimas
de petróleo na costa no território, estimadas em 11 bilhões de barris.
Mas a Venezuela classifica os contratos como
"ilegais" por se tratar de autorizações envolvendo um território não
delimitado. O governo Maduro chegou a cogitar possíveis mecanismos de
cooperação para explorar a área de maneira conjunta, mas analistas veem com
ceticismo essa opção.
"Acredito que é muito difícil recuperar o
território do Essequibo para o país", opina o economista Manuel
Sutherland. Ao Brasil de Fato, ele alega que a Venezuela não teria o apoio
de aliados tradicionais como Nicarágua e Cuba na disputa territorial e que,
além disso, do ponto de vista econômico, seria difícil pensar em empresas
mistas de petróleo no Essequibo.
"Atualmente a PDVSA tem dificuldades
econômicas enormes, não tem fluxo de caixa, não tem uma poupança grande e as
sanções não permitem que a PDVSA acesse o mercado mundial de maneira
orgânica", diz.
A controvérsia envolvendo o Essequibo, entretanto,
não é apenas econômica e chegou a suscitar ameaças bélicas nas últimas semanas
do ano. O envolvimento de militares venezuelanos na campanha pelo referendo e
os exercícios militares realizados pelos EUA em conjunto com a Guiana no
Essequibo elevaram as tensões na fronteira dos dois países sul-americanos.
O clima só se arrefeceu após os presidentes da
Venezuela, Nicolás Maduro, e da Guiana, Irfaan Ali, se reunirem em São
Vicente e Granadinas no dia 14 de dezembro. Ambos se comprometeram a não
utilizar a força para solucionar a disputa territorial e agendaram uma próxima
reunião que deve ocorrer dentro de três meses no Brasil. O governo Lula,
representado pelo assessor especial da Presidência, Celso Amorim, foi um dos
mediadores do diálogo entre Caracas e Georgetown.
Para o próximo ano, a resolução da disputa na
fronteira deve dividir a atenção do governo Maduro com pautas internas como a
campanha presidencial e a manutenção dos alívios no bloqueio, opina a
pesquisadora Stephanie Braun Clemente.
"Manter a suspensão das sanções é importante
para o governo, por isso eu acho que temáticas domésticas como a questão das inabilitações,
a definição da data das eleições, as regras de campanha e o calendário
eleitoral acabarão ganhando maior atenção em 2024", diz.
Ø Itamaraty
emite nota sobre Essequibo: 'Demonstrações militares de apoio devem ser
evitadas'
O governo brasileiro se manifestou sobre as
recentes movimentações e disse em nota que "acompanha com preocupação os
últimos desdobramentos do contencioso em torno da região de Essequibo".
Na quinta-feira (28), o presidente da Venezuela,
Nicolás Maduro, anunciou o envio de tropas para a fronteira com a Guiana em
resposta ao Reino Unido, após Londres decidir enviar o navio de guerra HMS
Trent para a região.
Hoje (29), o Ministério das Relações Exteriores
relembrou que o Brasil considera a Declaração de Argyle para o Diálogo e a Paz,
assinada por Caracas e Georgetown em 14 de dezembro, "um marco nos
esforços para abordar pacificamente a questão, tendo em mente o espírito de
integração que nos move, como uma região de paz, cooperação e
solidariedade".
"A declaração estabeleceu o compromisso de
Guiana e Venezuela de não utilização da força ou da ameaça do uso da força, de
respeito ao direito internacional e de comprometimento com a integração
regional e a unidade da América Latina e o Caribe. Os dois países concordaram,
ademais, em cooperar para evitar incidentes no terreno e medidas unilaterais
que possam levar a uma escalada da situação", diz a nota da chancelaria.
Ao mesmo tempo, o Itamaraty frisou que
"demonstrações militares de apoio a qualquer das partes devem ser
evitadas" para que o diálogo estabelecido e acordado há duas semanas
"possa produzir resultados".
O Brasil "está convencido de que instituições
regionais como a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos [CELAC]
e a Comunidade Caribenha [CARICOM] são os fóruns apropriados para o tratamento
do tema".
O governo brasileiro também pediu às partes
"contenção, retorno ao diálogo e respeito ao espírito e à letra da
Declaração de Argyle".
O Ministério da Defesa britânico anunciou
anteriormente o envio do navio de patrulha da Marinha Real para proteger a
Guiana, que faz parte da Commonwealth. A presidência venezuelana classificou o
movimento britânico como uma provocação e mobilizou tropas na fronteira.
A reunião do dia 14 de dezembro foi celebrada pelo
Brasil como tendo "superado as expectativas", uma vez que ambas as
partes prometeram "continuar o diálogo" e evitar que a situação
tomasse proporções reais de conflito.
A disputa por Essequibo persiste há mais de um
século, envolvendo laudos de 1899, acordos internacionais e alegações
históricas.
Fonte: Brasil de Fato/Sputnik Brasil
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