Potássio do Brasil e indígenas favoráveis à mineração são acusados de
coação
Uma série de denúncias de assédios, coação,
represálias, má fé e danos à saúde mental mostra a pressão que indígenas Mura
estão sofrendo para aprovar o projeto da empresa Potássio do Brasil, do grupo
canadense Forbes & Manhattan, em seu território, no município de Autazes,
no Amazonas, na região do Baixo Madeira. O empreendimento tem também
investimentos de acionistas locais e de outros países.
O projeto é defendido por políticos do Amazonas,
entre eles o governador Wilson Lima (União Brasil), que é favorável ao garimpo
e à mineração, e por ministros do governo Lula (PT) e pelo o vice-presidente
Geraldo Alckmin (PSB), que ocupa o Ministério do Desenvolvimento, Indústria,
Comércio e Serviços.
O empreendimento afeta diretamente a aldeia do Lago
do Soares, que somente em agosto deste ano teve o Grupo Técnico de demarcação e
delimitação constituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas
também impactará outras comunidades indígenas e ribeirinhas. A empresa faz
promessas de benefícios e pagamentos de royalties para tentar convencer os
moradores a aceitar o chamado Projeto Autazes.
Relatos coletados pelo Ministério Público Federal
(MPF) e por um grupo de advogados e juristas do Observatório de Direito
Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia em áudios, vídeos, telefonemas,
oitivas presenciais, documentos e videoconferências atestam a gravidade do que
indígenas Mura contra a mineração estão sofrendo, especialmente nos últimos
meses: risco de perder o emprego, exclusão de entrega de ajuda humanitária
durante a seca; até ameaças de agressão física. Em um dos relatos colhidos pelo
MPF, um indígena Mura disse que recebeu ameaça de uma tuxaua favorável ao
empreendimento de que ela iria “amarrar e bater nele com chicote (lambar)”.
“A Potássio do Brasil, por meio de seu presidente e
prepostos, vem prometendo construir escolas, postos de saúde, distribuir
royalties e recursos aos Mura na região. E que lideranças do CIM (Conselho
Indígena Mura) estão informando a todos os parentes que os indígenas ou aldeias
contrários ao empreendimento ou às decisões tomadas pelo CIM não receberão
qualquer recurso ou benefício”, diz um indígena, em depoimento ao MPF e
incluído em Ação Civil Pública enviada à Justiça Federal nesta quarta-feira
(15/11).
Segundo indígenas ouvidos pelo MPF, o que se
divulga nas aldeias é que “o empreendimento vai acontecer de qualquer jeito, se
concordarem receberão benefícios, se não concordarem ficarão sem nada”. A
atividade de mineração é dada como certa, e pelos relatos dos indígenas
favoráveis, não há outra opção a ser aceita.
“Simplesmente, simplesmente a Potássio teve
consideração de colocar nossas aldeias, porque direito nenhum nós não temos, tá
entendendo? E se de repente… se de repente nós não aceitássemos, de qualquer
forma isso aí, a questão ia ser feita, tá entendendo?” , diz em áudio um
indígena Mura para outro parente, tentando convencê-lo a aceitar o projeto,
conforme consta em Ação Civil Pública do MPF.
Entre as ofertas apresentadas a cada aldeia está o
valor de R$ 27 mil. Individualmente, lideranças também estariam recebendo
valores fracionados de R$ 5 mil ou R$ 10 mil. Um dos indígenas ouvidos relatou
que recebeu – e recusou – oferta de R$ 70 mil da empresa para apoiar o projeto.
“O psicológico de muitos Mura está impactado,
professores que não estão dormindo direito nem conseguindo comer direito,
pensando na crueldade que estão fazendo com os parentes Mura”, diz trecho de
relato ouvido por procuradores da República.
Na quinta-feira (16/11), a juíza Jaiza Fraxe acatou
parte do pedido do MPF e do Observatório – este em nome da Organização de
Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV) e da comunidade
indígena do Lago do Soares, em Autazes – e determinou uma multa de R$ 1 milhão
à Potássio do Brasil por descumprimento de deveres assumidos durante audiências
de conciliação perante a Justiça, ao realizar pressão indevida ao povo Mura.
“Fica expressamente determinado à empresa Potássio
do Brasil S/A, bem como seus prepostos, sejam indígenas ou não indígenas, Mura
ou não, inclusive coordenação atual do CIM, favoráveis ao empreendimento, que
se abstenham de qualquer assédio, cooptação, pressão, aliciamento,
constrangimento, práticas ilícitas ou contato irregular contra parentes do povo
Mura, devendo todos cumprirem o legítimo Protocolo Mura, construído por TODO O
POVO e não pela vontade individual de alguns, alterada pelo oferecimento de vantagens
ilícitas”, diz a magistrada.
Jaiza Fraxe também anulou uma consulta realizada
nos dias 21 e 22 de setembro na aldeia Josefa/Terra Preta, em Autazes, quando
representantes dos Mura teriam aprovado o empreendimento. A “aprovação” é contestada por
diversos moradores das aldeias, que alegam nas oitivas realizadas pelo MPF que
desconheciam o assunto da reunião. Segundo a magistrada, a consulta é ilegítima
por ter “desconfigurado o Protocolo de Consulta” e ter feito “alterações
esdrúxulas” ao documento.
Após essa pretensa consulta, indígenas Mura
divulgaram o “apoio” publicamente, em evento no dia 25 de outubro com a
presença do governador Wilson Lima, parlamentares e diretores da empresa
Potássio do Brasil. Indígenas afetados negaram o apoio.
Jaiza também decidiu pela retirada imediata do
indevido marco afixado no território indígena da Comunidade
Soares, conforme revelado pela Amazônia Real, e fixou multa de R$ 500 mil
à Potássio do Brasil S/A por dia de descumprimento e violações ao território
Soares e a todo povo Mura da comunidade Soares, a contar da intimação da
presente decisão.
Acatando pedido do MPF, ela também anulou o
procedimento de licenciamento ambiental por parte do Instituto de Proteção
Ambiental do Amazonas (Ipaam) em razão dos “vícios mencionados e dos riscos de
conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário
neste cenário acarretam ao povo Mura na região”. Na decisão, a juíza diz
que o Conselho Indígena Mura e prepostos da empresa ré causaram “tumulto
mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens,
conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial”.
O MPF também afirma que os que se posicionaram
favoráveis ao empreendimento (e portanto contra a demarcação do território
Soares) não consultaram o principal interessado e impactado, ou seja, as
lideranças e moradores da aldeia Soares. “Na prática, é como se vendessem
objeto que não é seu, em explicação bem simples para entendimento geral”, diz
trecho da ação.
Na reunião dos dias 21 e 23, indígenas Mura que
defendem o projeto da empresa também decidiram, de forma arbitrária, retirar do
Protocolo de Consulta a participação da Organização de lideranças indígenas
Mura de Careiro da Várzea (OLIMCV). O Observatório de Direito Socioambiental e
Direitos Humanos na Amazônia contestou essa decisão na sua ação civil pública
enviada à Justiça Federal.
·
Disseminação de terror
De acordo com ação civil pública dos advogados do
Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia, as
lideranças e coordenação do CIM, sob patrocínio da empresa Potássio do
Brasil, “empenharam-se na disseminação de terror, falsas promessas, ameaças e
desinformação”.
“A realidade é que muitas aldeias estão sem voz,
pois manifestaram contrariedade aos interesses duvidosos do CIM e foram
silenciadas, outras sendo falsamente representadas por um líder que não fala em
nome de seus aldeados e ainda há aquelas que estão completamente ludibriadas
pelas falsas informações que lhes foram passadas de forma desleal, mentirosa e
desonesta”, afirma trecho do documento.
Natural da aldeia Guapenu, em Autazes, Herton Mura,
assessor da OLIMCV, disse nesta quinta à Amazônia Real que está
aliviado por ter conseguido comprovar a verdade e feliz pela minuciosa peça do
MPF que esclareceu a realidade sobre o processo de consulta (entre aspas) que a
Potássio tem passado aos financiadores.
“A empresa tem ‘vendido’ [o projeto] aos
financiadores dizendo que já foi feito processo de consulta ao povo Mura e que
os Mura por unanimidade aceitaram. Mas eles não falam ou não relatam o teor da
verdade, a história completa. Infelizmente, a empresa conseguiu cooptar algumas
lideranças, os cabeças, e com isso fizeram algumas manipulações. Isso já foi
comprovado em relatos, áudios, fotos. Sem falar no protocolo de consulta, que
foi violado”, disse Herton, que é um dos depoentes no MPF.
“O que a gente viu foi a empresa indo nas
comunidades, falando de vantagens. Dizendo que se houvesse demarcação de terra
que era para as lideranças se posicionarem contra. Inclusive, o CIM tomou essa
postura de protelar contra a demarcação de Soares, que será afetada diretamente
pelo empreendimento”.
Os relatos dos Mura ouvidos pelo MPF e pelo
Observatório comprovam que a ofensiva em apoio à mineração não se restringe aos
empresários e indígenas da etnia. Até mesmo indígenas de outros povos, em cargo
público, se mostram favoráveis.
De acordo com Herton Mura, o diretor do Ministério
dos Povos Indígenas (MPI), Jecinaldo Sateré, em reunião realizada em maio de
2023 com os Mura, disse que era preciso “ter cautela, que tem muito interesse
federal no projeto Potássio, que o empreendimento deve sair de qualquer jeito,
então os Mura deveriam refletir melhor em como fazer parte disto”. Segundo
Herton, a fala de Jecinaldo “influenciou bastante na mudança de posições de
algumas lideranças, pois ficaram ainda mais preocupados”.
O presidente da Fundação Estadual dos Indígenas
(FEI), Sinésio Tikuna, também teria pressionado os Mura e colocando como
condição de apoio às comunidades afetadas pela seca a autorização do
empreendimento.
Indígenas das aldeias Ponta das Pedras e de Moyray,
que são contra a mineração, afirmam que não receberam cestas básicas por conta
da vazante extrema. Para eles, conforme consta no parecer do MPF, as aldeias
foram excluídas propositalmente por Sinésio Tikuna. O presidente da FEI também
teria ameaçado influenciar na demissão de um motorista do povo Mura que
trabalha no Distrito Sanitário Especial Indígena de Manaus (Dsei Manaus).
Sob intensa pressão está o tuxaua Sérgio
Nascimento, de Soares. Na sua oitiva ao MPF, ele contou que já foi procurado
pelo presidente da Potássio do Brasil, Adriano Espeschit. Este mencionou uma
oferta de R$ 1 milhão para cada aldeia, compra de um avião para Soares e de
terrenos novos para outra área para onde os moradores da aldeia seriam
transferidos. De acordo com Sérgio, o tuxaua da aldeia Urucurituba, Adinelson
Pavão, conhecido como Piraca, que antes lutava por demarcação e era contra o
empreendimento, agora é favorável. O GT criado pela Funai em agosto, contempla
as duas comunidades.
A Amazônia Real procurou o tuxaua Piraca
e este confirmou que, por decisão da maioria dos moradores aldeia, Urucurituba
agora é a favor da exploração de potássio.
“Fiz uma reunião na aldeia e infelizmente a aldeia
determinou que seria a favor do empreendimento, mas nada contra a demarcação.
Somos a favor. Eu sou apenas a liderança. Só determino o que a aldeia
determina. A aldeia determinou ser a favor. Não tomo decisão sozinho. A maioria
das lideranças decidiu apoiar o Potássio do Brasil. O que vence é a maioria.
Nesse momento não posso fazer nada”, disse.
Ø Munduruku
estão cada vez mais cercados pela soja e agrotóxicos
Cada árvore que cai na terra do povo Munduruku não
significa apenas mais uma área da Amazônia sendo desmatada para dar lugar à
soja. Para os indígenas, a invasão do agronegócio representa também o
adoecimento do corpo e o esgotamento da espiritualidade, ensina o cacique
Josenildo dos Santos da Cruz, 37 anos, que habita a Terra Indígena (TI)
Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno, em Santarém (PA).
Josenildo recebeu a Agência Pública em 2019 para
mostrar os riscos e violências que os indígenas enfrentam na luta para que os
sojicultores saiam de seus territórios.
Na ocasião, a reportagem esteve em uma área entre
duas glebas públicas federais, a Ituqui e a Concessão de Belterra, onde se
localizam ao menos quatro aldeias indígenas, habitadas pelos Munduruku, e três
comunidades quilombolas – Murumuru, Murumurutuba e Tiningu.
Ao revisitar a região agora em 2023, nada mudou –
ao contrário, piorou a situação. Os processos demarcatórios seguem sem
definição, enquanto fazendas de grãos se expandem sobre territórios
tradicionais. Em vez de floresta amazônica, o que se vê são vastos campos de
soja.
O cacique está cansado de ver as denúncias feitas
pela comunidade indígena serem ignoradas pelos governos estadual e federal. “A
gente luta e pede que os órgãos ambientais façam o seu trabalho. Mas quando
ligamos na Sema [Secretaria de Meio Ambiente do Pará], quando denunciamos, nada
é feito. Parece que há um aparelhamento dentro dos órgãos de fiscalização”,
afirma a liderança indígena. Por sua vez, a Sema afirma que a fiscalização em
terra indígena é de responsabilidade dos órgãos federais.
·
Degradação
Desde o final da década de 1990, quando a soja
entrou no Planalto Santareno, os indígenas têm visto a floresta tombar. Em
2008, os Munduruku reivindicaram a demarcação da TI Munduruku e Apiacá, uma
área de 1,7 milhão de hectares que faz parte do território tradicional da
etnia. Diante da morosidade do Estado, em 2015 os próprios indígenas demarcaram
seu território, mas a Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciou os estudos
para a demarcação só em 2019, devido a uma intervenção do Ministério Público
Federal (MPF) que culminou em um acordo entre o órgão, a Funai e a União. Mas
nada mudou nos últimos quatro anos.
A expectativa de Josenildo era de receber notícias
sobre o estudo no final do mês de abril, o que não ocorreu. A Pública solicitou
informações à Funai, que afirmou: “O procedimento demarcatório, em todas suas
fases, especialmente em sua etapa de estudos, possui grande complexidade,
dependendo de uma série de fatores e atores, não sendo possível definir
expectativas de prazo”.
Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai), mais de 600 indígenas residem nas quatro aldeias do
território autodemarcado, que são: Açaizal, Amparador, Ipaupixuna e São
Francisco da Cavada. Na Açaizal, aldeia em que Josenildo vive, localizada a
oeste da área definida pela comunidade, é onde ocorre a maior degradação
ambiental, devido ao avanço da monocultura. Também é o centro do conflito com
os sojeiros.
A Pública teve acesso a um laudo técnico solicitado
pelo MPF ao Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas (ICTA), da
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), que mostra o grau de destruição
ambiental provocado pela soja. Entre 2018 e 2021, foram identificados mais de
100 hectares com sinais de alteração branda a forte na Açaizal, além de uma
possível degradação de nascentes, associada ao processo de mudança de uso do
solo.
O documento “Avanço de Áreas Agrícolas na TI
Munduruku do Planalto Santareno desde Início do Processo de Demarcação”,
elaborado pelo professor doutor João Paulo de Cortes, constata o avanço do
agronegócio para dentro dos limites de autodemarcação da TI. O laudo foi
requisitado pelo MPF devido à percepção dos moradores locais da invasão da
monocultura no território. Na área apontada com maior índice de degradação,
foram identificados ao menos dez imóveis registrados no Cadastro Ambiental
Rural (CAR) com algum grau de sobreposição com as áreas alteradas identificadas
através de imagens de satélite.
Como apurou a Pública em 2019, na área total da TI,
há 101 registros do CAR. A Funai conseguiu o bloqueio integral das glebas
públicas onde estão as comunidades indígenas, até que terminem os trabalhos
administrativos de demarcação. Ou seja, nenhuma dessas terras pode ser
regularizada sem que todas as fases do processo demarcatório sejam cumpridas.
“O que a gente chama de área degradada é uma
mudança da vegetação primária para uma vegetação mais rala e de solo exposto. O
avanço é identificado a partir da evolução do uso do solo nas imagens de
satélite”, explica Cortes. Segundo o professor, a análise, somada a outros
dados sobre o avanço da monocultura no Planalto Santareno, permite observar que
famílias que vivem mais próximas da soja têm uma perspectiva pior do que
famílias em zonas mais protegidas ou mais afastadas do cultivo. “A monocultura
tem esse efeito de desestabilizar as comunidades. Tem uma série de comunidades
extintas que a gente observa dentro dessas zonas de monocultura”, afirma o
pesquisador.
A fala de Cortes coincide com o relato do cacique
Josenildo: “O pessoal que mora próximo à plantação de soja não demora muito
tempo ali. Porque não aguenta. Não consegue viver com a quantidade de veneno
que entra na sua casa. Nós estamos aqui [na aldeia], porque nós somos fortes e
aqui é a nossa terra. É o local onde a gente vive. Onde a gente nasceu. E onde
a gente quer continuar vivendo. É por isso que a gente luta e ainda acha força
para resistir”, afirma o cacique.
·
Terra e identidade
Em setembro de 2018, dez sojicultores que cultivam
dentro da TI Munduruku e Apiaká acionaram a Justiça para serem considerados
“litisconsortes passivos necessários” na ação movida pelo MPF, como apurou o
site de Olhos nos Ruralistas. Litisconsorte passivo necessário é aquele que tem
interesse em comum com o réu e que será afetado pelas decisões que resultarem
da ação. O pedido foi negado em primeira e segunda instância. Os requerentes
foram: Ildo Valentin Borsatti, Rodrigo Borsatti, Adriano Gabriel Maraschin,
Fábio Luis Maraschin, José Maraschin, Ignácio Maraschin, Germano Rene Durks,
Francisco Alves de Aguiar e Ivo Luiz Ruaro.
A Pública esteve na aldeia Açaizal em abril deste
ano, ocasião em que Ildo Valentin Borsatti aceitou falar com a reportagem. O
argumento do sojicultor é que não há indígenas no território. “Criaram esse
negócio de indígena aí há pouco tempo. Esse negócio do PT de se autodeclarar
indígena. Aqui não existia índio. É tudo cearense que veio pra cá”, afirma o
sojicultor. E continua: “Não existia [indígena na área]! Aliás, existir, deve
ter existido. Tinha índio pra todo lado quando o Brasil foi descoberto, né? Mas,
se for pra declarar alguém assim, tem que declarar o país inteiro”, disse Ildo,
ao questionar a identidade dos Munduruku.
Um discurso muito usado pelo agronegócio local,
como constatou o pesquisador Fábio Zuker, doutor em antropologia social pela
Universidade de São Paulo (USP) e professor na Princeton University (EUA),
nos seis anos em que realizou sua pesquisa de doutorado na região do Baixo
Tapajós. “Um argumento racista e que se vale de uma imagem folclorizada de
indígenas como parados no tempo. Como se os indígenas não pudessem se
transformar, ao longo da história, a partir de lógicas inerentes à sua
cultura”, afirma.
Zuker explica que ali houve uma incorporação de
migrantes nordestinos às aldeias indígenas. “Uma vez forasteiros, chegados ao
longo do século XX de estados como Ceará e Maranhão, eles foram indigenizados.
Casaram-se com indígenas – usualmente é o homem de fora que se casa com a
mulher indígena – e aprenderam a caçar com seus sogros e genros. De modo que
ninguém questiona seu pertencimento ao povo indígena, ou que seus filhos sejam
indígenas”, explica o professor.
E conclui: “Desta forma, é pelos laços de
parentesco que diversas comunidades indígenas do Baixo Tapajós incorporaram
pessoas vindas de outras regiões às suas comunidades. Cabe aqui também entender
que muitos desses migrantes nordestinos são, eles mesmos, netos de indígenas, e
que puderam, na Amazônia e na acolhida comunitária que lhes foi oferecida,
encontrar um solo fértil para onde recuperar traços culturais com os quais já
conviviam em suas famílias”.
Em 2019, Josenildo já havia declarado que, além de
ser “uma praga”, a expansão da soja causava violência na região. Seu irmão,
Belarmino Cruz, foi assassinado durante uma visita à cidade de Mojuí dos Campos
em setembro de 2018. “Ele foi morto com seis facadas nas costas e, segundo o
assassino, foi assassinado por engano. Existe uma investigação em curso em
relação a isso, mas a gente não pode negar que algumas pessoas ouvidas pela
polícia disseram que não era pra ter sido meu irmão, era pra ter sido eu, como
liderança”, afirma. Outra linha de investigação dá conta de que Belarmino foi
assassinado em uma briga de bar. O caso está sendo investigado pela Polícia
Civil de Santarém até hoje.
Agora, em 2023, ele desabafa novamente: “A gente é
ameaçado em tudo nessa vida. O sentimento é de impotência. Se a gente denuncia
alguma coisa, é ameaçado. Quando derrubam a floresta, acabam com as nossas
plantas medicinais e nossos frutos. Nosso espírito enfraquece. A gente fica
preso numa área, porque já não nos deixam andar por onde a gente andava antes”.
Fonte: Amazônia Real/Agencia Publica
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