Marcelo Uchôa: Genocídio palestino
Não é preciso ser um observador tão atento para
perceber que o que está se passando em Gaza é um massacre coordenado contra a
população palestina. O aniquilamento de uma nação ou grupo étnico a merecer o
título de genocídio, segundo o raciocínio do judeu Raphael Lemkin, a quem se
atribui, desde 1944, a autoria jurídica do conceito. Um ato cometido com
intuito de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso através da matança de membros do grupo, consoante prescrito no art.
2º da Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio, de 1948, entendimento replicado pelo art. 6º do Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional de 1988.
A pretensão do governo de Israel de legitimar semanas
de bombardeios em Gaza sob a alegação de direito de defesa não se sustenta de
nenhuma maneira. O art. 51 da Carta da ONU de 1945 presume o restabelecimento
da paz e da segurança internacionais como limite para eventual ação bélica e
ninguém há de crer que Israel está sofrendo qualquer risco neste momento, pelo
menos um risco que justifique o bombardeio de hospitais, prédios, residências e
logradouros civis, provocando o extermínio de toda uma população espremida em
um território exíguo, atualmente privado de água, luz, gás, telecomunicações,
entrada de alimentos e até mesmo de remédios para assistência aos mais de 20
mil feridos neste conflito que já retirou a vida de 10 mil palestinos, cerca de
5 mil crianças.
Como professor de Direito Internacional Público dói
observar a impotência da sociedade internacional e de seus diversos órgãos
internacionais voltados à manutenção da paz para articular qualquer intervenção
capaz de dar fim a esta barbárie humana alimentada pelo ódio racial e pela
ganância territorial do sionismo. Entristece ainda mais observar a tolerância
tácita com a brutalidade seletiva, transigência que não haveria se na mira dos
bombardeios estivessem os que hoje atacam.
Um ato de terror não justifica o terror de uma
guerra. Um povo inteiro não pode pagar pela ação repulsiva, condenável, de
alguns. A vida de um palestino não vale menos que a de um israelense, assim
como a vida de um judeu não vale menos que a de um muçulmano. Todas as vidas
importam e são fundamentais.
Neste momento em que se exterminam pessoas
indefesas é bom rememorar que a IV Convenção de Genebra de 1949 é toda ela
voltada para a proteção de civis em tempos de guerra. Diz ali o art. 2º que
pessoas que não participam do conflito, inclusive militares que entregam as
armas, bem como enfermos, feridos, detentos ou pessoas que, por outra razão,
estejam fora de combate, devem ser tratados com humanidade, independentemente
de raça, cor, religião ou fé, sexo, nascimento ou riqueza. O Protocolo
Adicional de 1949 desta Convenção sublinha nos artigos 12, 15, 71, 76, 77 e 79
que deve ser garantida proteção reforçada aos profissionais da área médica,
assistência humanitária, refugiados, mulheres, crianças e profissionais de
imprensa, grupos sociais que estão padecendo às claras pela virulência levada a
cabo por Israel, veementemente reprovada pelo Direito Internacional e pelo
Direito Humanitário Internacional.
A propósito, pelo Estatuto de Roma de 1988, o
Tribunal Penal Internacional é competente para apurar e punir indivíduos por
quatro crimes: genocídio (art. 6), crimes contra a humanidade (art. 7), crimes
de guerra (art. 8) e agressão (art. 9). Os senhores da guerra sionistas já
incorreram nos quatro. Socorram os palestinos.
Ø O genocídio palestino e palavras que matam. Por Berenice Bento
O genocídio contra o povo palestino está em curso e
seguirá porque antes do poder bélico do Israel e dos Estados Unidos foram
construídas as condições ideológicas que retiram do povo nativo qualquer
possiblidade de resistência.
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Cena 1: Luto sem corpos?
“40 bebês são decapitados pelo Hamas”. Impossível
não sentir uma corrente elétrica percorrer a espinha depois de ler esta
notícia. Tentei encontrar mais informações. Nada. Poucas horas depois, escutei
o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, repetindo as mesmas informações. Se
produziu uma comoção global. Mas onde estão os pais dessas crianças? Onde estão
os corpos? O mundo ocidental, como um rastilho de pólvora, entrou em luto
imediatamente. Uma punição exemplar foi exigida. Aos poucos a história começou
a girar. Diante da impossibilidade de seguir adiante com a narrativa, a
jornalista que espalhou a notícia, pediu desculpas e reconheceu que não tinha
visto nenhum corpo. Confiou em uma fonte israelense e não fez o necessário
trabalho de investigação. Mesmo depois de toda a história ter sido negada, de
Joe Baden afirmar que, de fato, não tinha visto nenhuma foto, o luto por
crianças que não existiram continuou. Se seguiu justificando o massacre à Gaza
pelas almas de 40 crianças que não existiram. E aqui está a eficácia simbólica
máxima de uma notícia que, embora mentirosa, torna-se verdade: produzir o luto
sem corpos.
Estranhamente estamos diante de um tipo de ordem
discursiva que não tem como função descrever a realidade ou contar uma
história, mas criá-la, próxima àquilo que John Auster aponta sobre a potência
de algumas palavras para criar realidades. Politicamente, estas crianças
existiram e foram mortas por todos aqueles que conferiram veracidade à mentira.
Foi o luto sem corpos de 40 crianças israelenses que segue justificando a morte
de 2.300 crianças palestinas em Gaza, de um total de 8.100 (dados da OCHA, em
29/10). Depois de ter consumido à exaustão a informação, o trabalho de negação
não terá o mesmo alcance. Uma realidade foi criada. E as crianças de Gaza?
Matar 2.400 crianças palestinas e matar simbolicamente 40 crianças israelenses
parece estar subsumido na expressão “Israel tem direito de se defender”.
Estamos diante de um poder soberano de um Estado sem registro na história da
humanidade.
·
Cena 2: O estupro visual
Uma importante feminista gravou um vídeo e publicou
em suas redes para lembrar de nossas lutas pela tipificação do estupro como
crime de guerra. Para ilustrar sua fala, mostra uma foto de uma jovem
israelense, sentada numa moto, sendo capturada pelos militantes do Hamas em 07
de outubro. O tema do vídeo é o estupro como crime de guerra. Como a
pesquisadora concluiu que aquela mulher tinha sido estuprada? Qual o indicador
objetivo que ela cita para chegar a esta conclusão? Não há perguntas, mas um
vínculo entre a imagem da mulher e o estupro. Não há dúvidas de que os
estupros como arma de guerra devem ser apurados e punidos. As mulheres
palestinas de 1948 seguem esperando a justiça. Infelizmente, até o momento,
Israel não teve nenhuma de suas autoridades processadas em tribunais
internacionais pelos estupros cometidos contra mulheres e adolescentes
palestinas em 1948. As histórias narradas por mulheres sobreviventes de
estupros coletivos cometidos pelos soldados de Israel que foram pesquisados por
Fatma Kassem (como a história da pequena Faik Abu Maneh que foi estuprada
por seis soldados israelenses (Kassem, 2011: p.161)) seguem esquecidas.
A exemplo dos bebês que não foram assassinados, mas
simbolicamente foram assassinados e provocaram o luto, eu me pergunto o porquê
de a pesquisadora precisar estuprar simbolicamente a jovem da foto. A
acusação leviana, por si só, configura-se também como uma arma de guerra, neste
caso explicitamente a favor do Estado de Israel. É um tipo de instrumentalização
das lutas feministas que nós, feministas antirracistas e anticoloniais, já
conhecemos.
A força da fotografia para mobilizar afetos
humanizadores em contextos bélicos ou em massacres foi tema da polêmica entre
Judith Butler (2010) e Susan Sontag (2006). Ao contrário de Sontag, Butler
irá apontar que a fotografia tem uma força singular como texto, sendo
desnecessário textos escritos ou mesmo legendas para afetar o outro. Cita
especificamente as fotos das cenas de tortura cometidas pelos soldados dos
Estados Unidos em Abu Ghraib. Para Sontag, ao contrário, a fotografia não tem a
força de mobilizar sozinha a indignação ou a humanização de quem vive sob uma
situação de opressão, sendo fundamental o texto escrito.
A forma como a pesquisadora acusa os militantes do
Hamas de estupro pela interpretação de uma fotografia, enseja novas questões
que mereceriam outras problematizações que não estão totalmente contempladas
nas reflexões de Butler e Sontag. Se não há nenhum indicador na foto de
estupro, me pergunto por que a pesquisadora chegou a esta conclusão e o que a
levou a fazer tal acusação. Ela aciona uma foto como prova testemunhal contra
um crime de guerra que só existiu no olhar dela e ao tornar público este olhar,
com o poder de verdade que seu lugar a coloca no mundo (pesquisadora), termina
por praticar um estupro simbólico.
Fiquei curiosa para saber a solidariedade da
pesquisadora às mulheres palestinas que são presas e torturadas ou a outras que
são obrigadas a dar à luz dentro de carros e no chão, porque soldados/as
israelenses que controlam os checkpoints não permitem que elas acessem os
hospitais. Tentei encontrar uma palavra de indignação que a conectasse com o
sofrimento das crianças palestinas presas e também torturadas sob a acusação de
atirarem pedras nos soldados. Atualmente, dos 5.200 presos palestinos, 1.264
estão presos sem nenhuma acusação (sendo 33 crianças que, quando julgadas,
devem se submeter ao tribunal militar israelense). O Hamas propõe trocar os
reféns israelenses pelos presos palestinos que se encontram nos cárceres
de Israel. Eu procurei, mas não vi uma única palavra de solidariedade da
pesquisadora às mulheres palestinas que vivem sob o domínio colonial israelense
há 75 anos.
Talvez se possa perguntar por que estou evocando estas
duas cenas muito particulares, em um momento em que os mais de dois milhões de
palestinos de Gaza estão submetidos a um genocídio. Eu não estou focando em
pontos excessivamente específicos e secundarizando o fundamental? As duas
cenas, no entanto, nos ajudam a entender a autorização que o Ocidental confere
a Israel para seguir matando. O que elas têm em comum?
A aparente desconexão entre os dois
casos encontro no orientalismo seu ponto de unidade. Para o pensador palestino
Edward Said, o Orientalismo define-se como uma instituição presente no
imaginário ocidental de várias maneiras, desde a associação de árabes aos
bárbaros, aos selvagens, aos animais, ao estuprador (camada nova oferecida pela
pesquisadora) e ao terrorista. São seres desconectados de qualquer ponto de
unidade com os valores universais da civilização e, por outro lado, a
identificação de Israel como a única expressão civilizada no Oriente Médio. É
esta economia ontológica que está em jogo nas duas cenas. As inverdades
produzidas pela jornalista e pela pesquisadora só foram possíveis pela
identificação de ambas com este imaginário orientalista e que tem no sionismo
um herdeiro legítimo.
Vejamos o que aconteceu no caso do hospital
Al-Ahli, quando mais de 500 palestinos/nas foram mortos em Gaza (17/10/2023).
Israel negou a autoria do ato terrorista. Se Israel negou, não foi ele. Ponto.
Não importa se, mais uma vez, foi comprovado que o atentado terrorista foi
feito por Israel (vide a reportagem da Al Jazeera). É interessante observar que
aqueles/as identificados com orientalismo/sionismo, que se disseram
horrorizados com o ataque, depois da comprovação da autoria de Israel, não se
pronunciaram mais. A identificação com o colonizador transforma a fala dos
colonizados, dos oprimidos, em ruídos, em grunhidos ininteligíveis. E
quem disse que o subalterno pode falar?
O genocídio contra o povo palestino está em curso e
seguirá porque antes do poder bélico do Israel e dos Estados Unidos foram
construídas as condições ideológicas que retiram do povo nativo qualquer
possiblidade de resistência. Mas pode um estuprador e decapitador de crianças
afirmar-se oprimido e resistir? Mas não houve estupro nem decapitação de
crianças. Não importa. E se eles não decapitaram ou não estupraram,
poderão fazê-lo, afinal, não são israelenses. São terroristas.
Ø SEM LUZ NO FIM DO TÚNEL: Hamas e Estado Israel concordam em um ponto -
e isso não é nada animador
Israelenses e palestinos não têm concordado em quase nada nas últimas
6 ou décadas, mas nesta quarta-feira (1) concordaram em um ponto que,
infelizmente, não é nada animador. Tanto Ghazi Hamad, líder do Hamas, como Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel, e Rafael Erdreich, o
cônsul-geral de Israel em São Paulo, deram declarações apontando que
a guerra está longe de terminar.
Hamad falou à LBC, meio de comunicação do Líbano,
que os ataques promovidos em 7 de outubro vão se repetir até que possam “aniquilar”
os israelenses. A tradução de sua fala foi feita para o inglês pelo Instituto
de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio, um think tank localizado em Washington -
capital dos EUA.
“Israel é um país que não
tem lugar na nossa terra. Temos que removê-lo porque constitui uma catástrofe
securitária, militar e política à nação árabe e islâmica. Não temos vergonha de
dizer isso. Temos que ensinar uma lição a Israel e faremos isso sucessivamente.
A Tempestade Al-Aqsa foi a primeira. Haverá uma segunda, terceira, quarta”,
declarou.
Do outro lado da trincheira, Yoav Gallant, ministro
da Defesa de Israel deu um ultimato no partido palestino: “O inimigo só
tem duas opções: morrer ou se render incondicionalmente. Não existe uma
terceira opção”, disse durante coletiva em Tel-A-Aviv.
A troca de farpas, inclusive, chegou ao Brasil.
Nesta tarde o cônsul-geral de Israel em São Paulo, Rafael Erdreich, deu uma
coletiva para a imprensa paulista em que afirmou não haver a possibilidade de
negociar a paz.
“Procuramos pelos cerca
de 40 mil combatentes do Hamas e não queremos o mal dos palestinos”, disse o
cônsul, que também agregou: “Israel não está lutando só contra o Hamas, mas
também contra o Irã. Achamos que vamos vencer isso, não temos outra opção.
Temos que vencer e não será fácil”.
A fala faz referência às ligações que o país persa
tem com o partido islâmico-palestino. O Irã é uma verdadeira potência regional.
De Ancara, na Turquia, seu ministro de Relações Exteriores, Hossein
Amirabdollahian, declarou que “se um cessar-fogo imediato não ocorrer na
Faixa de Gaza e os ataques rápidos dos EUA e do regime sionista continuarem, as
consequências serão duras”.
Israel confirmou horas atrás o bombardeio do campo
de refugiados de Jabalia. Militares israelenses e dos EUA atacaram na última
semana grupos apoiados pelo Irã na região. Existe um grande temor de que o
massacre sobre Gaza escale para uma guerra mais ampla e, ao que parece, ao
menos de acordo com as autoridades, os acontecimentos caminham nesse sentido.
Fonte: Fórum
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