Carlos Wagner: Semelhanças e diferenças entre o 8 de janeiro em
Brasília e o incêndio dos ônibus no Rio
O chefe da milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro,
Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, não mandou incendiar na segunda-feira
(23/10) 35 ônibus, quatro caminhões e um vagão de trem só para vingar a morte
do seu sobrinho e vice-líder da milícia, Matheus da Silva Rezende, 24 anos, o
Faustão, morto em confronto com a Polícia Civil. Ele armou toda a confusão, que
custou alguns milhões de reais e um imenso transtorno para milhares de pessoas,
para lembrar ao governador do Estado, Cláudio Castro (PL), e ao prefeito da
cidade, Eduardo Paes (PSD), que ele manda na Zona Oeste da capital fluminense.
E avisar ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que é o dono
do pedaço. E também anunciar aos candidatos a prefeito e vereador nas eleições
de 2024 na Região Metropolitana do Rio que já está negociando os votos do seu
feudo eleitoral.
Esse é o assunto sobre o qual vamos conversar. Mas
antes vamos seguir a regra de ouro do jornalismo e contextualizar o assunto
para melhor informar ao leitor e facilitar o trabalho dos jovens repórteres, em
especial do interior do Brasil, que trabalham na cobertura do dia a dia das
redações. O Rio de Janeiro é o berço do crime organizado no Brasil. Nasceu com
o jogo do bicho, um sistema de jogatina ilegal que tinha capilaridade em todos
os cantos do Estado. E seus dirigentes, os bicheiros, lavavam o dinheiro
financiando desfiles das escolas de samba no Carnaval, clubes de futebol e
outros eventos. Os bicheiros foram substituídos pelos traficantes de drogas,
que montaram as facções, sendo que a mais famosa e eficiente é o Comando
Vermelho (CV), que controla os presídios e o tráfico de cocaína e armas de
países vizinhos, principalmente Paraguai e Colômbia, para o Brasil. Aqui é
importante prestar atenção ao seguinte. Os bicheiros e os traficantes conseguem
acesso aos policiais e outros funcionários públicos pagando, a famosa
corrupção. As milícias nasceram com outra lógica. Foram gestadas entre
policiais civis e militares aposentados que se uniram para se proteger dos
traficantes. Com a adesão de policiais da ativa, as milícias se organizaram,
expandiram e diversificaram os negócios. Inicialmente, operavam com o
transporte clandestino de vans, depois com a venda de gás e serviços, como a
“gatonet” (TV a cabo e internet piratas), a construção de condomínios ilegais
e, por último, se associaram ao tráfico de drogas. Diferentemente dos bicheiros
e traficantes, os milicianos não precisam corromper os policiais e outros
servidores públicos porque eles próprios são funcionários do Estado. O que
significa que têm acesso a informações privilegiadas sobre os cidadãos. Esse
detalhe em particular colocou as milícias entre as organizações criminosas mais
eficientes do mundo. Vou citar um exemplo. O miliciano Faustão, morto em
confronto com a polícia, na segunda-feira (23/10), estava trocando tiros com os
agentes utilizando a pistola do terceiro-sargento Bruno Bento do Nascimento, do
Batalhão de Choque da Polícia Militar. O sargento foi preso, enquanto os
policiais investigam como a arma foi parar nas mãos de Faustão.
Termino a contextualização da nossa conversa
citando as fontes com as quais obtive esses dados: reportagens que fiz quando
estive no Rio trabalhando nas favelas, pesquisas de documentos, anotações de
organizações como a Fogo Cruzado e livros, entre eles o escrito pelo
pesquisador, professor e jornalista Bruno Paes Manso chamado A República das
Milícias – Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. Um livro cuja leitura
recomendei no post de 31 de outubro de 2020 chamado Mergulho nas entranhas das
milícias do Rio, inimigo público número um do Brasil. Dito isso, vamos passar
para a próxima fase da nossa conversa. Ao contrário dos traficantes e outros
bandidos, os milicianos dominam como ninguém as comunidades onde se estabelecem
porque fornecem serviços (transporte, TV e internet), produtos (gás e moradias)
e, claro, homens armados até os dentes, que se encarregam de proteger o
território. Isso torna o morador local um refém das milícias, portanto,
vulnerável a ser pressionado a votar em quem mandarem. Trocando em miúdos: os
moradores se tornam um feudo eleitoral do chefe da milícia. Esse feudo
eleitoral tanto pode ser negociado com os candidatos em troca de favores como
pode ser usado para eleger candidatos milicianos. É assim que funciona. Um exemplo
do que estou falando. Nas últimas eleições presidenciais, o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) era apoiado na Zona Oeste do Rio de Janeiro pelos pastores
evangélicos e milicianos. Bolsonaro fez 58,24% dos votos na região e Lula,
33,42%, uma diferença de 24,82%. Sendo que no restante do Estado do Rio a
diferença foi de 4% em favor do ex-presidente. O fato é o seguinte: o poder das
milícias de influenciar nas eleições é real. Especialmente nas eleições
municipais. Lembro que dois filmes, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O
inimigo agora é outro, tratam da influência dos milicianos na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Claro que se trata de uma ficção. Mas o
roteiro foi baseado em notícias dos jornais e em dados da CPI das Milícias da Alerj,
de 2008, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, que indiciou
225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. O
relatório final está disponível para leitura na internet.
Outro ponto importante para entender a diferença
entre as milícias, os bicheiros e as quadrilhas de traficantes. A milícia não
pertence a uma família. O mais forte e articulado toma o poder e, caso seja
morto, será imediatamente substituído por outro. Hoje, a milícia se perfila
entre as organizações criminosas mais eficientes do mundo. Esse é um dos
motivos pelos quais tenho afirmado que as milícias não são um problema do Rio
de Janeiro, mas do Brasil. Uma historinha para terminar a nossa conversa. Na
queima dos ônibus, caminhões e do vagão de trem foram presas 12 pessoas. Seis
foram libertadas por falta de provas. As outras seis foram contratadas para
“fazer o serviço”, não têm ligações profundas com a milícia. Há comentaristas
políticos tentando comparar a queima dos veículos com a destruição causada pelos
bolsonaristas radicalizados no dia 8 de janeiro nos prédios do Congresso, do
Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três
Poderes, em Brasília (DF). São coisas diferentes: os bolsonaristas
radicalizados agiram acreditando que conseguiriam dar um golpe de estado. Os
contratados para colocar fogo nos veículos o fizeram em troca de pagamento. Nos
dois episódios, os investigadores da Polícia Federal (PF) estão rastreando o
caminho percorrido pelo dinheiro do financiador até as mãos dos executores. Os
caminhos que essas duas investigações estão percorrendo podem revelar
surpresas.
Ø Preferência atual por “populistas autoritários” está relacionada à
criminalidade e corrupção
Os resultados das eleições na Argentina e na
Polônia levaram analistas a decretarem a morte do chamado voto econômico. Na
Argentina, Massa logrou sair da terceira posição nas primárias para a primeira
em um quadro de inflação de 140%, e expectativas de debacle financeira. Na
Polônia, o PiS foi defenestrado, a despeito do PIB per capita ter aumentado
inacreditáveis 31% nos últimos 8 anos que governou.
A relação entre economia e voto é um tópico
clássico da pesquisa empírica em ciência política. O conhecimento acumulado é
que a economia é o mais importante preditor em qualquer modelo. Mas a questão é
complexa. Não se trata apenas da economia real, mas a percebida pelos
eleitores, a qual expressa viés partidário.
A avaliação da economia por eleitores do governo e
da oposição pode variar em mais de 40%. Os eleitores não conseguem distinguir o
efeito de políticas de outros fatores (choques).
Para além das respostas às pesquisas de opinião, a
economia real influencia o voto de forma indireta porque produz sentimentos de
mudança ou continuidade. O efeito é defasado: há evidências de memória curta
por parte dos eleitores.
Pesquisas de séries temporais cobrindo décadas
mostram que os eleitores reagem ao desempenho da economia no semestre anterior,
e não ao mandato como um todo.
A escolha eleitoral tampouco é unidimensional:
outros fatores importam. A disputa política é também uma disputa de narrativas
rivais. Na Argentina, uma entre opção autoritária e semente do caos vs status
quo. A arquitetura da escolha também importa. A proposta de mudança estava
dividida, a continuidade unificada. O peronismo perdeu, embora Massa tenha
ganho.
Na disputa de narrativas, Milei e o PiS são
apontados como ameaças à democracia. Parece ter funcionado. Mas a demanda por
líderes autoritários seria produto da crise econômica?
A questão é controversa. As evidências empíricas
mais robustas sugerem que, como regra geral, o apoio normativo ao sistema
democrático não é afetado pelo comportamento da economia, mas a satisfação com
a democracia —que tem uma dimensão instrumental, de como ela está funcionando—,
sim.
Claaseen e Guimarães examinaram a questão
utilizando séries temporais cobrindo 91 democracias, de 1988 a 2018.
O achado mais instigante é que há dois outros
fatores que afetam o apoio à democracia: a criminalidade violenta e a
corrupção. O desempenho dos serviços de saúde, questão central para o bem-estar
dos eleitores, não se mostrou significativo.
Para os brasileiros, não é novidade que a demanda
eleitoral por “populistas autoritários” está relacionada com a criminalidade
violenta e corrupção.
Fonte: Histórias Mal Contadas/Folha
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