Sarah Aziza: Diários do Apocalipse
Acordo cedo, de maneira estranha, em 7 de outubro,
sonolenta após uma noite que terminou tarde. Coloco a chaleira para ferver e
ligo o rádio na BBC. Um momento depois, ouço um noticiário que começa com
“Lutadores palestinos de Gaza cruzaram a fronteira para Israel…”. Viro na
direção do som desencarnado. Estou acostumada a acordar com notícias de
violência na Cisjordânia – pelo menos uma manhã a cada semana começa assim, com
uma história de ataques de colonos ou outra incursão do exercito de Israel.
Labib Dumaidi, um estudante universitário palestino de dezenove anos, foi
baleado ontem durante outro pogrom em Huwara, na Cisjordânia. Mas este relato é
algo diferente, e minha mente luta para compreender as palavras. Gaza? Como?
* * *
Uma imagem: uma escavadeira estoura uma cerca em
torno a Faixa de Gaza, vinda de Israel, e corpos passam pela abertura. Fora da
câmera, um homem rouco grita em árabe: “Quebrei! Deus é grande! Quebrei!” Por
um instante, Gaza já não significa inacessível, encurralada, inerte. Toda a
minha vida, esse nome tem sido uma dor, amada e intransponível, íntima e fora de
alcance. É a terra onde meu pai nasceu como refugiado, um lugar que ele amou
apesar da Grande Tragédia [Nakba] que enroscou sua família por lá. Gaza, um lugar que nasceu em mim da
primeira vez que ele me contou histórias do mar. Quando tinha seis anos, ele
mergulhava no Mediterrâneo a caminho de casa, nadando nu na água até que seu
irmão chegasse para puxá-lo de volta. Vejo Gaza retornar em seus olhos cada vez
que ele avista as ondas.
Gaza, também o lugar onde meu pai viu minha avó
cavar trincheiras à medida que se aproximava a Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Ele não entendeu as valas até que os aviões rasgaram o céu. Por toda a vida,
lamentei os familiares mantidos cativos lá, suas vidas tornando-se mais
desesperadas a cada ano de cerco que começou em 2007. Prendi a respiração com
eles através de quatro guerras, seus corpos presos sob céus em queda, impedidos
de qualquer fuga. Um massacre tão rotineiro que Israel o chama de “aparar a
grama”. Minha família e dois milhões de outros, enjaulados por um poder nuclear
que os chama de ervas daninhas. Muitas vezes desesperei que jamais viveria para
vê-los livres.
No entanto, por um instante, vendo aqueles corpos
correndo sob o sol, parece absurdamente simples. Um muro é apenas um muro.
* * *
“Lutadores palestinos romperam as barreiras
israelenses…”. Aguardo a inevitável sequência – notícias de que esses
guerrilheiros em potencial foram mortos, como é o destino da maioria dos
palestinos que se rebelam. Em vez disso, ouço que dezenas de israelenses foram
mortos – a contagem acabou de começar. Ruptura. O único status quo que já
conheci – aquele em que qualquer violência desvia-se para a morte brutal dos
palestinos – foi, ainda que brevemente, derrubado. Uma sensação estranha: minha
visão embaçando, meu corpo se dividindo ao meio, as partes se separando. Meu
corpo sabe o que ainda está além da minha capacidade de compreensão. Uma
história terminou, e estamos caindo, já sangrando, na próxima.
* * *
Começam a chegar mensagens de um dos meus primos em
Gaza começam: “Exatamente às seis e trinta [em 7 de outubro], acordamos com o
som de mísseis partindo da Faixa de Gaza como relâmpagos. A pergunta repetida
por todos foi: ‘O que está acontecendo???’. . . A situação até este momento não
é nada. . . mas tememos a resposta da ocupação. Eles não nos deixarão dormir
esta noite. . . Pedimos a Deus segurança. . .”
* * *
Levará dias para saber o número final de
israelenses mortos pelo Hamas. Mas quando ultrapassa cem, entro em pânico.
Embora meu estômago se revolte com imagens dos mortos, tenho certeza de que
eles já estão sendo metabolizados pela máquina sionista. Receio a maneira como
a violência – tanto real quanto fabricada – será alavancada para lançar um
arsenal do tamanho de um século em uma jaula humana. Este é o cálculo cruel de
nossa opressão: minha compaixão pelos mortos é ofuscada pelos números altos de
nossos já mortos e dos que em breve morrerão.
“Eles nos chamam de terroristas, Sarah”. A voz do
meu pai está perplexa, ferida. Por trinta anos, ele esperou, certo de que os
Estados unidos retribuiriam seu amor. Estamos falando no domingo, 8 de outubro,
e as últimas 36 horas passaram por nós como dentes. “Eles chamaram isso de
massa…?”. Sua boca gagueja a palavra em inglês. “Massacre, Baba. Isso significa
matar em grande escala. E sabe de uma coisa? Acho que foi um massacre… Muitas
pessoas foram mortas”. Na cozinha, meu parceiro judeu mantém-se discreto sobre
o fogão, preparando comida que não iremos provar. Meu pai suspira. Estamos nos
afogando em um luto complexo.
É uma pesar muito maior que as palavras. Grande o
suficiente para reconhecer a dor judaica, tanto recente quanto histórica. Como
palestina, recuso-me a imitar o opressor negando a humanidade dos falecidos.
Mas essa tristeza situa-se dentro da cratera da certeza de que o mundo
continuará a recusar a nossa. É um abismo esculpido por décadas de discurso, no
qual apenas certos corpos sangram. Dentro deste consenso, não há desapropriação
violenta da nossa terra, nenhuma forma aceitável em que possamos resistir às
nossas muitas mortes lentas e instantâneas. Recusa o fato de que, por décadas,
enterramos centenas de mortos para cada israelense morto. Nesse olhar seletivo
do Ocidente, só há a nossa barbárie, que deve ser brutalmente contida.
Para o meu pai e para mim, o assassinato de
cidadãos israelenses em 7 de outubro vibra com uma familiaridade primal, uma
espécie de déjà vu. Minha família foi expulsa etnicamente da região a nordeste
da Faixa de Gaza durante a Nakba em 1948 – bem perto do local dos ataques.
Muitos dos meus parentes perderam irmãos, pais e filhos para balas e bombas
sionistas. O horror vivenciado em 7 de outubro pareceu estranho, como se eu já
tivesse visto isso antes. Essa ressonância não mistura tristezas ou histórias
únicas, mas para nós a terra há muito tempo está assombrada, o chão já está
manchado. Por mais chocados que estejamos com os ataques, também os vemos pelo
que são – as convulsões inevitáveis de um corpo político violento. A erupção de
uma verdade purulenta: a de que um regime de apartheid é
sempre um território de morte.
* * *
Passei a maior parte de 2023 em uma profunda
depressão, que se enraizou durante uma visita à Palestina em março. Enquanto
estava lá, senti o sabor de eletricidade de cobre no ar. As condições materiais
atingiram novos níveis de miséria absurda. Recordes de violência foram
quebrados e quebrados novamente, enquanto o governo de extrema direita de
Israel se regozijava na linguagem do genocídio. Das colinas da Cisjordânia
devoradas por assentamentos ilegais a Jerusalém segregada, um sentimento
selvagem pairava vermelho e espesso. Uma vibração, ameaçando se tornar um
grito.
Voltei para as chuvas de abril. Minhas entranhas
estavam secas como ossos. “Sinto que algo violento está iminente”, disse ao meu
parceiro. Diante de mim, vi anos longos e lentos de perda angustiante. Vi
levante. Vi nossas ruas banhadas em sangue.
* * *
O breve silêncio do Ocidente é substituído por um
rugido. Políticos de Washington a Bruxelas gritam com uma sincronia que parece
ensaiada. Apenas horas se passam antes que a justa tristeza pela perda de vidas
judias seja transformada em declarações de guerra. Pedidos para “arrasar” e
“liquidar” conosco. Demandas de “nenhuma restrição” [à ação de Israel]. Somos
declarados “animais” pelo ministro da Defesa de Tel Aviv, e o consenso
ocidental concorda – senadores dos EUA nos chamam de selvagens, que merecem ser
aplainados no chão. Um segundo tipo de déjà vu: o de meus piores pesadelos,
realizados. A retórica da guerra ao terror é reprisada; palestinos, muçulmanos,
ISIS e Hamas são reduzidos a um monte degradado. As facções antiárabes mais
extremas de Israel estão em alta, enquanto celebridades e governos ocidentais
ecoam os clamores do pós-11 de setembro de bem contra o mal. A própria noção de
civis palestinos desaparece. Este é o primeiro tipo de morte.
* * *
“Você acha que o Hamas matará os reféns?” Meu pai
pergunta ao telefone. “Não faço ideia, Baba. Acho que eles querem trocá-los por
prisioneiros palestinos.” “Ahhhh. Eu realmente espero que eles não os matem.
Isso não é… não queremos isso.” “Não. Isso não é o que queremos.”
Meu primo em Gaza manda outra mensagem: “Agora
estamos todos reunidos em um quarto, ouvindo as notícias no rádio e também
pelas redes sociais. Meu irmão Mahmoud [nove anos] sempre sente medo em todas
as guerras, e tentamos acalmá-lo. Ele pergunta: ‘Como é a morte?’ Ele chora,
‘Tenho medo de morrer’. Ele não quer comer nada e está muito assustado. Tentei
fazê-lo assistir a um filme até que esquecesse, mas ele ainda pensa na morte e
pergunta: ‘Como é a morte e o que sentimos quando morremos?’ Seu rosto está
pálido. . . Sinto um sentimento estranho e diferente.”
* * *
Alguns leitores esperam que eu denuncie a
resistência violenta. Eles imaginam que, sem essa garantia, que não pedem de
nenhum israelense, não tenho o direito de falar. Acreditam ter direito a uma
versão de palestina que abre mão de tudo o que o liberalismo branco oferece a
nossos opressores e a si mesmo: o direito de existir, o direito à autodefesa.
Eles criminalizaram nossas formas não violentas de protesto, mataram
manifestantes pacíficos, prenderam nossos poetas e assassinaram nossos
jornalistas. Eles não acreditam em nosso sofrimento histórico ou contemporâneo.
Ao mesmo tempo, acreditam que é nosso estado natural – parte da paisagem marrom
e nebulosa do chamado “mundo árabe”. É uma abjeção que devemos aceitar, em
silêncio e acima da dor dos nossos mortos.
E nossos mortos – oh, nossos mortos. Às vezes me
pergunto se morremos de verdade. Quando centenas de manifestantes pacíficos de
Gaza foram abatidos por soldados israelenses, nós os contamos sozinhos. Este
ano, até o dia anterior aos ataques do Hamas, os palestinos foram assassinados
a uma taxa de cerca de um por dia – mais de duzentos até 6 de outubro. Para
nós, até funerais podem se tornar cenas de assassinato ou lugares para ataques
de soldados.
Se um assassino não se incomoda em cobrir seus
rastros, eles realmente mataram?
* * *
Estou empenhada em manter minha humanidade. Leio
testemunhos de israelenses das áreas visadas pelo Hamas. Quase invariavelmente,
eles narram a busca de esconderijo em uma área segura, um abrigo destinado a
proteger a vida. Um homem diz ao New York Times: “Em cada casa em nossa
comunidade [perto da fronteira com Gaza], há o que chamamos de uma área segura,
que é um construída com concreto muito forte e tem um tipo especial de porta,
supostamente resistente à queda de morteiros e foguetes. É geralmente onde as
crianças dormem”. Acho esse detalhe tão arrepiante. Eu me pergunto, em que tipo
de mundo alguém imagina que vive, em que tais estruturas são normalizadas? Que
tipo de status quo alguém aceita, em que seus filhos se abrigam dessa maneira
todas as noites? Realmente parece paz? Será que ocorre aos arquitetos se
perguntar o motivo de os foguetes serem lançados? Ou essa sociedade aceitou
completamente que os morteiros lançados de Gaza são apenas mísseis de ódio? As
filhas deles não sentem falta de acordar com o sol?
* * *
Mensagem da minha prima. Uma casa em sua rua, no
Campo de Refugiados de Nuseirat, é bombardeada. Outras pessoas são mortas
enquanto compram comida em um mercado próximo. Quando pedem para fugir, ela
responde: “Não sabemos para onde ir… Eles tratam as pessoas de Gaza como
monstros. Por quê?”
* * *
Rehan, uma jornalista de Gaza em seus vinte anos,
usa a bateria do telefone que está acabando para gravar um diário em áudio.
Coloca sua filha na cama. Abre a janela para alimentar um gato faminto. Diz ao
gravador: “Minha gata Yara teve três gatinhos adoráveis há três semanas… mas
como posso cuidar deles agora?” Por trás de sua voz, há o som de bombas caindo.
* * *
Segunda-feira, 9 de outubro. A previsão em Gaza é
de tempo ensolarada com nuvens passageiras. Eu acordo em Nova York. O ar está
frio.
* * *
“Cinco em Khan Younis”, diz meu pai. Está falando
dos nossos parentes mortos. Não usa a palavra mortos. “Cinco se foram em Khan
Younis”, ele diz. “Apenas duas crianças sobraram.”
* * *
“Mas e o Hamas?” Cresci com esta pergunta sendo
lançada em minha cara toda vez que declarava o direito de meu povo à
sobrevivência. “E o Hamas?” Não importava se eu acabara de pedir água limpa ou
o direito de retornar à nossa terra roubada. “E o Hamas?”, perguntavam,
mantendo minha humanidade como refém. Seus sorrisos presunçosos a esta
pergunta, que eles viam como um golpe retórico. Eu lhes dei horas, páginas das
minhas palavras. Enchi salas com o meu hálito quente, ofegando: “Nós não somos
terroristas – o Hamas é um sintoma da opressão – sim, claro que condeno o
extremismo – esta é uma luta pelos direitos humanos – Israel sustentou o Hamas
por anos – por favor, olhe para nossas crianças – por favor, você não vê nossos
idosos indefesos? – por favor, se você não nos respeita como seres humanos,
poderia poupar um pouco de piedade?”
* * *
Outra tia desaparece.
* * *
“Seu nariz está sangrando”, meu parceiro aponta
enquanto choro.
* * *
Israel anuncia que a fronteira com Gaza está
novamente “totalmente segura”.
* * *
O telefone da minha prima está morrendo; Israel
cortou toda a eletricidade, gás, água e comida. “Também sentimos cheiro de
fumaça agora. Acho que é gás [branco] de fósforo que eles jogaram no céu hoje”,
ela manda mensagem. “Me sinto sufocada por isso. Meu amigo morreu inalando gás de
fósforo branco na guerra de 2008.”
* * *
Você está bem?
Você está bem?
Você está bem?
Você está bem?
* * *
A matemática do apocalipse: 1,1 milhão intimados a
evacuar o norte de Gaza em vinte e quatro horas. Pediram a mais de um milhão
que empurrem seus corpos para um pedaço de terra onde mais de um milhão de
corpos já estão.
Isso não é algo que corpos humanos possam fazer.
Notícias de nossa não existência vêm e vêm novamente.
* * *
Atravesso uma passarela de pedestres em Queens
várias horas antes do amanhecer. Eu me curvo. Minha mão está na minha boca. Não
sei mais como mover o ar para dentro ou para fora.
* * *
Como é ficar à beira da aniquilação? Só posso falar
do meu ponto, distante alguns graus do epicentro da guerra. Aqui, parece que
estou caindo por uma garganta infinita. É a incredulidade misturada com a
sensação de que este dia já chegou. É saber que qualquer possível sobrevivência
estará inscrita na consciência de que este planeta é um lugar onde seu
extermínio foi decretado, e milhões o acolheram.
* * *
Um amigo palestino me manda uma mensagem: “Você já
comeu hoje?”
* * *
Outro me manda mensagem de sua casa na Cisjordânia,
onde mais de trinta palestinos foram mortos em uma semana. “É difícil, mas
apenas nos tornará mais determinados a sermos livres.”
* * *
Os Estados Unidos anunciam que duplicarão sua
presença militar no Oriente Médio. Eu fico acordada até tarde em um quarto
cheio de amigos libaneses e sírios, cercada por fantasmas.
* * *
O desafio: manter um senso de agência no meio de
formas sobrepostas de déjà vu; reconhecer que o ímpeto de um século de
tentativas de apagamento está por trás dos eventos atuais e, no entanto,
resistir ao desespero. Acreditar, até insistir, que de alguma forma ainda é
possível deter a máquina imperialista genocida.
É uma esperança que morre e ressuscita a cada hora.
Revivida, incontáveis vezes, pela narrativa em mudança radical nas ruas. Em
mais de dez anos de organização em prol das vidas palestinas, nunca vi tanta
solidariedade vibrante, diversa e urgente. A mudança que senti em 2021, quando
um ciclo anterior de brutalidade israelense instigou protestos em massa de um
público pós-George Floyd, parece ter se mantido. Embora eu tenha cuidado em
confiar no meu feed de mídia social para refletir a realidade política, estou
chocada com o volume da resposta antissionista de base.
Meu telefone é inundado com mensagens de texto e
postagens em redes sociais de amigos, colegas e figuras culturais de todo o
mundo. Esmagadoramente, as mensagens reconhecem o contexto do colonialismo e da
violência desproporcional, bem como a piora da crise humanitária em Gaza.
Tentando subverter uma resposta da mídia norte-americana lamentavelmente
distorcida, os amigos compartilham relatos de organizações humanitárias e
jornalistas independentes no local. Postagens de judeus antissionistas
proclamam este como um momento para cumprir o juramento de “nunca mais”. Meu
parceiro, membro ativo da Jewish Voice for Peace, participa de ações diárias
enquanto o grupo denuncia a manipulação do luto.
Mais importante talvez, seja o rápido movimento
para as ruas. Dezenas de milhares se reúnem de cidade em cidade, bandeiras
palestinas voando de Nova York e Londres a Bagdá e Kuala Lumpur. Manifestações
pró-Palestina são proibidas na França, Viena e Berlim. Manifestantes franceses,
desafiando essas ordens, são pulverizados com gás lacrimogêneo. Centenas de
ativistas judeus bloqueiam a casa do senador Chuck Schumer no Brooklyn,
protestando contra seu apoio enfático aos bombardeios israelenses. Dezenas,
incluindo descendentes de sobreviventes do Holocausto, são presos. “Isso parece
diferente”, sussurramos eu e meus amigos um para o outro. A pergunta que não
fazemos: Vai durar?
Há momentos que sempre desafiarão palavras. Há
crimes tão hediondos que toda a alma humana estremece. Bombas atingem o
Hospital al-Ahli em Gaza, matando pelo menos quinhentas pessoas. A negação de
Israel segue rapidamente. Meios de comunicação norte-americanos, após
inicialmente relatarem a bomba como israelense, logo se alinham sugerindo que
os palestinos podem ser culpados.
* * *
“Costumava ter esperança”, meu pai me diz ao
telefone.
“E agora?”
“Eu não sei”, ele diz. “Eu não sei. Mas sei que
continuaremos.”
Conheço essa verdade, embora não conheça sua forma.
Não é necessário chamá-la de esperança, mas não se pode negar que o ethos
palestino é esmagadoramente de vida. Insistimos em sobreviver, em amar mesmo as
versões destroçadas da existência que nos foram concedidas. Somos mestres em
paradoxo, criando beleza e cuidado dentro de jaulas, sob destroços. Somos
fluentes em absurdo, mudando de forma para sustentar nossa humanidade dentro de
paredes cada vez mais estreitas. Setenta e cinco anos de justiça adiada não
apagaram nossa determinação de construir, reconstruir, escrever, casar, dar à
luz, dançar, permanecer.
Mesmo assim, sabemos que merecemos muito mais, e
por isso pressionamos contra nossa opressão com imaginação e amor desafiantes.
Como a estudiosa palestina Sophia Azeb coloca, “Não estamos obrigados a
estruturar nossas epistemologias, estéticas e políticas apenas dentro da
arquitetura desta catástrofe.” Embora nunca tenhamos conhecido uma Palestina
livre, nenhum número de bombas pode extinguir a vontade inata de viver com
dignidade. Desta forma, nossa resistência é, para citar Mahmoud Darwish, incurável.
Este é o cerne do problema de Israel – não se trata de barbárie palestina, mas
de vida palestina. É uma praga para o projeto sionista, nossa recusa de um
século em desaparecer. Continuará sendo uma praga enquanto o Estado de Israel
existir como uma estrutura baseada em nossa morte. Israel está enganado se
acredita que esta será a última palavra. A Palestina viverá.
Fonte: The Baffler - Tradução: Antonio Martins para
Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário