Búfalos: a origem do fogo que escurece Manaus
Os moradores de Manaus convivem desde setembro com
uma densa
fumaça no céu da cidade. A poluição esconde a luz do
dia, como voltou a ocorrer nesta segunda-feira (30), dando contornos sombrios à
capital amazonense, que registrou em 11 de outubro a terceira pior qualidade do
ar do mundo, de acordo com a plataforma World Air
Quality Index.
Dados de monitoramento de queimadas do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que a escuridão no céu manauara foi causada pelo deslocamento
da fumaça de incêndios florestais nos municípios de Autazes e Careiro —
intensificados pelo período de estiagem que acomete o Norte do país. A
superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Renováveis (Ibama) no Amazonas foi categórica ao afirmar que o fogo foi causado por
pecuaristas que atuam nos dois municípios da região metropolitana de Manaus. O
Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, por meio da ministra Marina
Silva, corroborou dizendo que “o principal vetor das
queimadas é o desmatamento” e que “não existe fogo natural na Amazônia”.
Mas, afinal, quem são esses fazendeiros “sem nome”
que devastam o Amazonas? O que eles produzem? Quais suas conexões políticas?
A partir do cruzamento entre os dados geoespaciais
do Inpe e a base fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), De Olho nos Ruralistas identificou a concentração dos
primeiros focos de incêndio em um grupo de fazendas situadas no entorno das
terras indígenas (TIs) Murutinga/Tracajá, Cuia, Iguapenu e Recreio/São Félix,
habitadas pelo povo Mura. Entre os casos, destaca-se uma propriedade rural em
nome de André Maia dos Santos, um dos principais criadores de búfalos da região
de Autazes.
Localizada no corredor entre as duas primeiras TIs,
a Fazenda AM-359 concentrou boa parte das manchas de fogo registradas nos
primeiros dias de setembro. Foi a partir dessas queimadas — realizadas para
renovar o pasto para os rebanhos — que o incêndio se alastrou para as terras
indígenas vizinhas, em especial para a TI Cuia. A origem das queimadas e a proporção
alcançada pelo fogo no entorno da Fazenda AM-359 coincidem com os períodos e
locais citados pelos órgãos ambientais.
FAMÍLIA MAIA PROTAGONIZOU
CONFLITO COM POVO MURA
Dono da Fazenda AM-359, o criador de búfalos André
Maia dos Santos é pai de um ex-vereador de Autazes — Marcelinho Maia, falecido
em 2020, vítima da Covid-19. Referência na produção de laticínios, o
ex-vereador dá nome ao Parque Marcelinho Maia, localizado na comunidade Vila
Novo Céu, em Autazes, onde é realizada anualmente a Festa do Queijo. O evento é
promovido pela prefeitura em parceria com criadores de búfalos da região.
No ano passado, ao falar sobre a Festa do Queijo, o
prefeito Anderson
Cavalcante (União) celebrou a vocação municipal:
“Autazes tem a maior bacia leiteira do Amazonas, um rebanho bubalino muito
grande. Temos a característica de ter o maior queijo do Estado”. Na Vila Novo
Céu, comunidade onde se encontra o Parque Marcelinho Maia, está localizada a
Cooperativa dos Produtores de Leite da Região de Autazes (Cooplam), uma das
maiores fábricas de laticínios do estado do Amazonas. Atualmente, a Cooplam é
presidida por Manuel do Rosário Maia dos Santos, irmão de André Maia.
O presidente da cooperativa é dono de dois imóveis
sobrepostos à TI Murutinga/Tracajá — as Fazenda Manuela e Não Esmureça (sic).
Além das propriedades privadas, a própria planta da cooperativa está inserida
dentro dos limites da TI.
No relatório “Violência
Contra Povos Indígenas do Brasil – 2019”, publicado
pelo Conselho Indígena Missionário (Cimi), André Maia e seu filho, o
ex-vereador Marcelinho Maia, que dá nome ao parque de exposições, são citados
como agressores de indígenas Mura na TI Murutinga. A ocorrência é do ano de
2019. Segundo o relato, uma área ocupada pelos indígenas fora da TI foi cercada
por André Maia, que passou a tentar impedir o deslocamento dos indígenas que
viviam fora do território homologado.
O desentendimento evoluiu para episódios de
violência por parte da família Maia: “O filho do fazendeiro, Marcelinho Maia,
vereador, bateu num indígena, que se defendeu. O fazendeiro (André Maia)
tentou, então, matar uma pessoa da comunidade, primeiro a punhaladas; depois,
utilizando um terçado e, por último a enxadadas”. O relato publicado pelo Cimi
narra que “ao ser impedido, o fazendeiro chamou guardas municipais para
invadirem a aldeia” e que “outro filho do fazendeiro passou a rondar a aldeia,
sempre armado”.
BÚFALOS CONTAMINAM RIOS E
IGARAPÉS NO TERRITÓRIO MURA
Segundo relato dos indígenas, o fogo comprometeu o
principal meio de subsistência dos Mura, que têm tido dificuldade em encontrar
áreas disponíveis para plantar e colher mandioca e outros alimentos. “Acabou
que a queimada levou todas as matas, todas as matas virgens, mata capoeira onde
as nossas famílias fazem o roçado”, lamenta Adilio Mura, morador da Aldeia
Moyray, na TI Iguapenu.
“Os pecuaristas põem fogo para fazer os roçados
novos”, conta um morador da região, que pede para ter a identidade mantida em
sigilo. “Esse fogo veio andando”, confirma Adilio. “Ele emendou do território
lá do Cuia, andou pra cá, atravessava estrada após estrada”.
Durante os incêndios, os Mura se revezavam para
combater as chamas. Em grupo, homens e mulheres adentravam a mata carregando
bacias e garrafas, alguns usando camisetas sobre o rosto como única proteção
contra a fumaça. Depois de dias exaustivos, as chuvas que caíram entre 14 e 16
de outubro aplacaram as chamas. A nova batalha dos indígenas de Autazes agora é
para ter acesso a água potável, uma vez que a estiagem secou rios e igarapés.
“Só restou a lama”, lamenta o comunicador Waldir
Botelho, da etnia Mura. Em um vídeo, ele mostra a paisagem seca ao seu redor.
Ao fundo da imagem, é possível ver um estreito igarapé. “Aqui onde eu tô
falando com vocês gravando esse vídeo, no tempo da enchente, aqui é
praticamente o meio do igarapé, onde passa barco, passa lancha, motores que vão
pra Manaus”, completa. Imaginar uma embarcação navegando naquele cenário
parece, agora, impossível.
“As pessoas estão tomando a água que é muitas das
vezes até compartilhada com os animais, com búfalo e tudo mais”, conta Botelho.
“Tem pessoas de quase 90 anos que dizem que nunca viram uma estiagem como
essa”.
Em outras regiões do município de Autazes, a
dificuldade de acesso a água já faz parte da rotina. Desde, pelo menos, 2021, a
Aldeia Taquara convive com esse inconveniente, de acordo com dados dos
relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 2022, os indígenas da TI
Soares/Urucurituba também sofreram com a poluição de rios e igarapés.
Na Taquara, o problema está diretamente ligado à
criação de búfalos. A presença desses animais, somada à estiagem, dificultou
ainda mais a vida dos moradores da aldeia. Os búfalos passam grande parte do
dia em ambiente aquático, onde eliminam urina e fezes.
“Com isso, suja a água, ficando imprópria para o
consumo e afasta os peixes”, explica Manoel Serrão, agente da CPT e morador de
Autazes. Ele acompanha de perto as denúncias dos moradores da aldeia Taquara.
“Ninguém mais toma água do rio. Se não tiver poço, não toma porque o rio é só
lama”.
CRIADORES DE BÚFALO
PROMOVEM MINERAÇÃO DE POTÁSSIO
O avanço da bubalinocultura na região de Autazes
não é a única ameaça ao povo Mura. A etnia enfrenta, há uma década, a pressão
da multinacional Potássio do Brasil, empresa que vem pressionando as
autoridades ambientais a fim de licenciar o projeto de extração de potássio dentro de territórios indígenas
da etnia Mura, em Autazes. Um fato menos conhecido é que os interesses da
mineradora e dos criadores de búfalos parecem convergir.
O presidente da Cooplam, Manuel Maia, é diretor da
Associação dos Criadores de Búfalos do Amazonas (ACBA) ao lado de Rodrigo
Baraúna Pinheiro, criador de búfalos em Itacoatiara (AM). Pinheiro é herdeiro
do Grupo Simões, conglomerado amazonense que já teve exclusividade no
engarrafamento dos refrigerantes Coca-Cola. Atualmente, o grupo é sócio do
banco canadense Forbes & Manhattan na Potássio do Brasil.
A última Festa do Queijo, organizada pela Cooplam
no Parque Marcelinho Maia, contou com estande de divulgação do projeto de mineração.
Ø CNS quer reunir povos da floresta em evento paralelo à COP de Belém, em
2025
O dia 17 de outubro marcou o aniversário de 38 anos
do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), movimento criado pelo
líder seringueiro Chico Mendes, em defesa de um projeto de reforma agrária
próprio para a Amazônia, que contemplasse as diversas comunidades que tiram da
floresta o seu sustento. A atuação do CNS levaria à criação, em 1990, das
Reservas Extrativistas (Resex). Hoje, com mais de 22 milhões de hectares
protegidos sob essa modalidade, a instituição continua lutando em busca de
dignidade para os povos da floresta e em defesa do legado de seu fundador,
assassinado por fazendeiros da União Democrática Ruralista (UDR) em 22 de dezembro de 1988.
Um evento online marcou o início dos preparativos
para o VI Congresso Nacional das Populações Extrativistas, que reunirá mais de
400 líderes de territórios tradicionais. O encontro será realizado entre 13 e
17 de novembro, na Universidade de Brasília (UnB), a mesma onde o CNS foi
fundado. Barbosa contou que o grupo discute a realização, em 2025, do 4º
Encontro Chamado da Floresta, durante a Conferência das Partes da Convenção das
Nações Unidas sobre Mudanças de Clima, a COP 30, em Belém. A data marca os 40
anos do CNS.
CAUSA UNIU EXTRATIVISTAS, INDÍGENAS E QUILOMBOLAS
“O CNS é o
desenho de uma instituição que tem uma utopia muito clara na sua mente, que é
[chegar ao] dia em que a floresta amazônica e seu povo estejam protegidos”,
disse o presidente da organização, Julio Barbosa, durante live comemorativa do
aniversário. “Ainda estamos muito longe de chegar à terra prometida, mas acho
que chegamos na porteira dela”.
Criado em 17 de outubro de 1985, o CNS tem como
missão representar trabalhadores agroextrativistas organizados em associações,
cooperativas e sindicatos, e é formado por líderes de diferentes segmentos
extrativistas de todos os estados da Amazônia. São seringueiros, castanheiros,
coletores de açaí, quebradeiras de coco babaçu, balateiros, piaçabeiros,
integrantes de projetos agroflorestais, extratores de óleo e plantas
medicinais, entre outros.
Durante a live, Barbosa relembrou a audácia do
grupo de seringueiros pioneiros que saiu da Amazônia até a capital federal para
cobrar visibilidade ao poder público. “Quando fomos para Brasília, nossa pauta
era simples, porque a gente reivindicava que fosse garantido o mercado e um
preço justo para o nosso produto”, relembra. “Hoje falamos de produtos da
bioeconomia ou da sociobiodiversidade, que na época nem sabíamos o que era essa
palavra, como ecologia e meio ambiente”.
Ele também destacou a ampliação das pautas da
instituição, que unem, em uma só luta, os extrativistas aos povos indígenas e
aos quilombolas.
LÍDERES COBRAM POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MANUTENÇÃO
NOS TERRITÓRIOS
Ele pontua os desafios que ainda vê pela frente:
“Talvez o principal deles seja como implementar nos nossos territórios
políticas [que permitam] que nossas populações vivam com dignidade, justiça e
respeito”, disse. “Isso porque não é somente um decreto de criação que garante
o território, é preciso todo um arcabouço de políticas públicas para que possa
trazer, de fato, segurança e melhoria da qualidade de vida das nossas
populações”.
A resistência da instituição é um ponto que passa,
atualmente, pela formação contínua dos jovens, hoje liderados por Letícia
Moraes, secretária de articulação política das juventudes extrativistas: “Somos
nesse processo uma sementinha que permeia e percorre todos os biomas do nosso
país, não somente a Amazônia, sendo assim agentes multiplicadores capazes de
chamar outras juventudes para estarem com a gente nesse debate, envolver a
juventude e trazer para nós o orgulho de sermos extrativistas”.
Maria Nice Machado, secretária de mulheres e
quebradeira de coco no Maranhão, enxerga o CNS como uma “faculdade” e faz
questão de levar esse ensino para outras mulheres do estado. “Um dos pontos
principais é buscar e trazer as mulheres das reservas, comunidades e
ribeirinhas para dentro para terem conhecimento e empoderamento”, afirmou.
“Trazer essas mulheres lá da base é a maior riqueza que encontramos”.
Fonte: De Olho nos Ruralistas
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