terça-feira, 31 de outubro de 2023

Espaço saudável pode ajudar no combate a epidemias

Janelas grandes e horizontais se abrem ao longo de toda a fachada, trazendo o máximo de luz e ventilação para os cômodos. Dois telhados planos, em níveis diferentes, abrigam um solário e um jardim suspenso.

Na entrada, há um lavatório e a divisão dos quartos não utiliza paredes estruturadas, tornando possível reconfigurar o espaço. A construção é elevada do solo por pilotis que deixam o térreo livre para circulação. Ícone da arquitetura moderna, a Villa Savoye é uma casa de veraneio construída em 1929 em Poissy, no norte da França.

Quando a projetou, o arquiteto suíço Le Corbusier (1887-1965) não pretendia apenas explorar características estéticas do modernismo. Também procurou mostrar que uma residência pode ser agente de saúde e bem-estar.

Criar ambientes mais saudáveis tornou-se uma preocupação de arquitetos e urbanistas. Para manter melhores condições de conforto e higiene, a fim de reduzir o risco de contaminações, entre o fim do século XIX e o começo do XX. À época, doenças infecciosas como a tuberculose matavam milhões de pessoas no mundo todo.

Com a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, reflexões sobre possíveis mudanças na estrutura das habitações e na paisagem urbana tornaram-se inevitáveis. A chegada da Covid-19 reforçou a urgência de promover acesso a serviços como saneamento básico e água potável, mas não apenas a esses direitos básicos.

 Também é possível elaborar cenários futuros em que casas, escolas, hospitais e prédios públicos sejam construídos ou adaptados com base em critérios que possibilitem reduzir o risco de disseminação de novas epidemias. Arquitetos e urbanistas dedicam-se a revisitar conceitos que permitiram o vínculo entre arquitetura e saúde pública no século passado.

Ainda é cedo para saber qual o impacto da atual pandemia em projetos arquitetônicos futuros. “Isso depende da duração da crise”, disse à Pesquisa FAPESP a arquiteta espanhola Beatriz Colomina, professora da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Também de alcance mundial, a gripe espanhola, que teria custado a vida de estimadas 50 milhões de pessoas, não chegou a moldar a arquitetura, afirma Colomina.

•        História

Embora tenha matado mais gente do que a Primeira Guerra Mundial, o surto de 1918 durou relativamente pouco tempo (menos de dois anos) e não foi muito lembrado por décadas. No caso da tuberculose foi diferente. Espaços arejados e mais iluminados, com amplos terraços e superfícies brancas e lisas foram incorporados em obras de arquitetos modernistas, entre eles o finlandês Hugo Alvar Henrik Aalto (1898-1976), o alemão Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) e Le Corbusier, como medidas concretas para tratar ou prevenir a doença.

“A tuberculose foi uma ameaça ao longo de décadas, que deixou efeitos duradouros na mentalidade e na cultura de várias gerações”, ressalta Colomina, autora do livro X-Ray architecture (Lars Müller, 2019), que trata da associação histórica entre arquitetura e medicina.

Da descoberta da bactéria Mycobacterium tuberculosis, identificada pelo médico alemão Heinrich Robert Koch (1843-1910) em meados de 1882, até o desenvolvimento de um antibiótico eficaz contra a tuberculose – a estreptomicina, no início da década de 1940 – transcorreram 60 anos. “Naquele período, o enfrentamento da doença se deu por intermédio da arquitetura”, observa a arquiteta espanhola.

Ao incorporar o trauma da tuberculose, a arquitetura moderna estabeleceu princípios “curativos”, que foram consolidados em 1933 no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, liderado por Le Corbusier. O Schatzalp, antigo sanatório no alto dos Alpes suíços, em Davos – que inspirou o escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) a escrever A montanha mágica –, é resultado da colaboração direta entre médicos, arquitetos e engenheiros.

“O que a arquitetura moderna fez foi dar forma a protocolos médicos”, diz Colomina. “A tuberculose era um problema ‘de dentro de casa’. As recomendações sanitárias consistiam em eliminar tapetes e cortinas, onde se acumula poeira, e abrir as janelas o máximo possível.”

•        COVID -19

“A situação agora é diferente”, ressalta a arquiteta Doris Kowaltowski, professora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (FEC-Unicamp). “Com a Covid-19, o perigo está nas ruas, no transporte público e a casa passa a ser o local seguro.” Essa noção, diz ela, assemelha-se com estratégias para enfrentar epidemias medievais, como a peste bubônica, que atingiu grande parte da Europa no século XIV.

 “Naquela época, a medida mais aceita para combater a peste era ficar em casa com janelas e portas trancadas com tijolos. Obviamente não é o caso de agora.” Foi em Dubrovnik, na Croácia, que a prática da quarentena teve origem, em 1377. Navios com possíveis vítimas de hanseníase ou peste ficavam 40 dias atracados no porto para supostamente evitar a propagação de doenças na cidade.

Apenas no fim do século XIX a importância da circulação de ar em ambientes internos tornou-se consenso na arquitetura. “Hoje temos conhecimento suficiente sobre a necessidade da ventilação natural para orientar a construção de edificações mais saudáveis”, observa a historiadora Diana Gonçalves Vidal, diretora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “Poderemos ver, daqui em diante, a proliferação de espaços externos agregados a casas e edifícios e o retorno de iniciativas como as escolas ao ar livre.”

•        Bem-estar

As écoles de plein air surgiram em 1904 na Bélgica e na Alemanha, 17 anos antes do desenvolvimento da vacina BCG, contra a tuberculose. “O objetivo era garantir a frequência das crianças nas escolas estabelecendo condições mais seguras de saúde”, explica Vidal, estudiosa da história da educação.

A proposta ganhou força com o movimento Escola Nova, que surgiu na Europa e buscava romper com modelos pedagógicos tradicionais. Ao mesmo tempo, foi ponto de virada da arquitetura escolar. “Em vez de salas de aula dentro de prédios, as escolas ao ar livre utilizavam mobiliário versátil, com mesas, cadeiras e lousa leves e portáteis”, conta. “Alunos e professores carregavam os móveis e formavam classes em parques públicos, debaixo de árvores.”

•        Escola de Aplicação ao Ar Livre

O Brasil teve algumas iniciativas desse tipo. Uma delas foi a Escola de Aplicação ao Ar Livre de São Paulo, instalada em 1939 no Parque da Água Branca, na zona oeste da capital paulista.

“O contato íntimo com as estruturas do parque favorecia, a partir da observação, a aquisição de conhecimentos científicos sobre a natureza, além de história e geografia”, explica o pesquisador André Dalben, professor do Instituto de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que se debruçou sobre o assunto em artigo publicado no ano passado”.

“De acordo com Dalben, as escolas ao ar livre fizeram parte de políticas de prevenção a doenças como tuberculose e raquitismo, que incluíam terapias naturais também ofertadas em sanatórios – entre elas a helioterapia, a incidência dos raios solares sobre a pele. “Os estudantes assistiam a palestras sobre higiene, praticavam exercícios físicos e ficavam alguns minutos expostos ao sol.”

Em 1952, a escola estadual precisou deixar o Parque da Água Branca, cedendo espaço para feiras agropecuárias. Foi transferida para o bairro da Lapa, em um edifício especialmente construído para abrigá-la. Por mais estranho que pareça, foi possível estabelecer uma escola ao ar livre dentro de um prédio, resultado do esforço criativo do arquiteto fluminense Roberto Tibau (1924-2003).

“O imóvel contava com seis salas de aula térreas, cada uma integrada a um pátio privativo a céu aberto”, descreve Dalben. Mesmo os ambientes fechados dispunham de imensas janelas de vidro, permitindo a circulação de ar e a entrada abundante de luz solar.

A iniciativa perdurou como modelo por muito tempo, mas seus espaços abertos foram paulatinamente descaracterizados, dando lugar a salas de aula convencionais. “A partir da década de 1950, em razão do desenvolvimento de novas vacinas e medicamentos para doenças infecciosas, grande parte dos pressupostos médicos da escola ao ar livre acabou se perdendo”, ressalta Dalben.

Diante do fechamento de escolas e dos desafios do ensino remoto, decorrentes da pandemia as escolas ao ar livre poderiam oferecer condições para a retomada das atividades presenciais. Algumas limitações persistem.

•        Arranjos

Em regiões de clima frio, como em boa parte da Europa e dos Estados Unidos, ou mesmo o Sul do Brasil, atividades ao ar livre tornam-se mais difíceis durante o outono e o inverno. Ainda assim, o modelo pode inspirar novos arranjos para os espaços escolares, avalia Vidal. “Sabendo que o contágio do coronavírus é menor em lugares abertos, faz sentido considerar o ar livre como opção não apenas para enfrentar a doença, mas também para estimular a educação ambiental para além dos muros escolares.”

A arquitetura moderna não deixou marcas apenas na educação, mas também em hospitais erguidos em meados do século XX. Projetado por Le Corbusier e construído em 1965, o Hospital de Veneza, na Itália, tem terraços-jardins que formam mezaninos sobrepostos aos leitos dos pacientes, ajudando a ventilar e iluminar os dormitórios.

“De acordo com o filósofo francês Michel Foucault [1926-1984], no final do século XVIII e início do XIX os hospitais foram deixando de ser locais de isolamento de doentes terminais e indigentes, para se tornar lugares de cura. Paredes brancas, pisos frios e acessórios de metal foram incorporados para denotar princípios de higiene”, explica o arquiteto Antonio Pedro Alves de Carvalho, coordenador do Grupo de Estudos em Arquitetura e Engenharia Hospitalar da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O grande marco da arquitetura hospitalar, contudo, é mais antigo. Trata-se do livro Notes on hospitals, publicado em 1859 pela enfermeira britânica Florence Nightingale (1820-1910), a fundadora da enfermagem moderna. “A obra é referência até hoje”, comenta Carvalho. “Ela propôs mudanças no padrão arquitetônico, como divisão dos pacientes por enfermarias, distanciamento entre leitos e adoção de janelas amplas para ventilação a fim de reduzir o risco de infecção hospitalar.”

•        Hospitais

Em julho, o grupo liderado por Carvalho lançou uma cartilha com recomendações para ajustar o espaço físico de hospitais durante a pandemia de Covid-19. A renovação do ar exerce papel preponderante, uma vez que o Sars-CoV-2 pode ser transmitido por meio de aerossóis – gotículas em suspensão produzidas por espirro, tosse ou pela fala de pessoa infectada.

O documento indica, conforme orientação do Ministério da Saúde, a criação de “salas de priorização”, dedicadas a acolher e fazer a triagem de pessoas com sintomas respiratórios. “Essas salas devem ser ventiladas, mantidas com as janelas abertas e aparelhos de ar-condicionado desligados”, recomenda.

A pandemia também pode provocar, no longo prazo, transformações na estrutura de hospitais e outros estabelecimentos de saúde, avalia Carvalho. “Uma consequência importante deverá ser a flexibilização dos projetos arquitetônicos.” Isso significa, por exemplo, utilizar divisórias móveis ou paredes de gesso ou madeira, com o propósito de facilitar a expansão de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em momentos de crise.

Outro efeito desejável seria a construção de hospitais com espaços mais abertos, com jardins floridos e agradáveis. “A questão do conforto ambiental é central na discussão sobre arquitetura e saúde”, enfatiza Carvalho.

•        Lelé

Uma referência nesse sentido é a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, presente em oito estados brasileiros. Os hospitais, projetados pelo arquiteto carioca João Filgueiras Lima (1932-2014), conhecido como Lelé, caracterizam-se pela busca de racionalização no uso dos espaços.

A unidade de Salvador se destaca por um sistema de ventiladores instalados em túneis subterrâneos que mantêm a temperatura agradável, dispensando o uso de ar-condicionado em praticamente todo o hospital. “Ambientes naturalmente arejados contribuem para a eficiência energética do prédio, proporcionando mais conforto aos usuários com menor gasto de energia. Isso é relevante em um país de clima tropical”, diz o antropólogo Antônio Risério, autor de A casa no Brasil (Topbooks, 2019).

No livro, que analisa a natureza das construções de casas no Brasil, é possível identificar estilos de moradias que, direta ou indiretamente, contribuíram para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. É o caso das casas neocoloniais, fruto de um movimento surgido nas primeiras décadas do século XX, que propunha uma arquitetura de cunho nacional cujas raízes remontam ao Brasil Colônia.

•        Californian style

“São casarões com grandes varandas, alpendres e escadarias externas. Um modelo bem agradável para os trópicos”, informa Risério. Outro gênero que vigorou em algumas partes do país, até a década de 1950, foi o chamado californian style, que também abusava de áreas externas, janelas grandes e jardins.

Para Risério, um dos problemas da arquitetura moderna em todo o mundo foi tentar uniformizar e impor um modelo padronizado de construção sem levar em consideração características ambientais locais. “Varandas enormes não são garantia de imóvel saudável”, observa. “É preciso também pensar no entorno da construção. Por exemplo, se há praças e espaços de convívio coletivo e como as moradias dialogam com vias urbanas e condições climáticas do local.”

•        Cidades utópicas

Alguns arquitetos modernistas chegaram a desenhar cidades utópicas. Le Corbusier pensou em metrópoles cujos edifícios fossem espaçados e distribuídos de forma regular, com grandes vias conectando quadras que, por sua vez, seriam organizadas por setores. “Essas ideias influenciaram diretamente o projeto de Brasília elaborado por Lúcio Costa [1902-1998]”, explica a arquiteta Silvia Raquel Chiarelli, especialista na obra de Le Corbusier. Anos mais tarde, percebeu-se que a setorização da cidade reforçou o modelo “rodoviarista”, marcado pela insuficiência do transporte público.

“Do ponto de vista da segurança e da saúde, isso não é desejável”, afirma Chiarelli. “É preciso estimular a circulação de pessoas a fim de evitar a proliferação de espaços inóspitos dentro da cidade. Para isso, é fundamental replicar territórios diversificados, com acesso a comércio, moradia, centros de lazer e atividade física numa mesma área”, avalia a pesquisadora.

A constituição de cidades mais saudáveis depende, portanto, de ações de planejamento urbano, resume Ana Maria Girotti Sperandio, especialista em saúde coletiva e professora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. “A articulação entre urbanismo e saúde pública não deve se voltar apenas para situações emergenciais como a atual. Há uma missão mais ampla: transformar áreas urbanas em ambientes de promoção da saúde”, afirma.

Em maio, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) divulgou um guia com recomendações para agentes públicos sobre como integrar saúde e urbanismo. De acordo com o documento, o planejamento urbano deve desempenhar papel central na prevenção de epidemias. “É a partir de políticas públicas urbanas que definimos a qualidade do ar que respiramos, da água que bebemos, a forma como nos movemos e como acessamos alimentos e equipamentos de saúde”, sintetiza Sperandio.

 

Fonte: eCycle

 

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