Lula corre em busca do prestígio perdido pelo Brasil
Goste-se ou não do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva; acredite-se ou não nas ideias que ele defende em matéria de política
internacional, aprove-se ou não a simpatia que demonstra por governos de
reputação arranhada no cenário mundial — como são os casos da Rússia, da
Venezuela e da Nicarágua —; o certo é que, em seu governo, o Brasil tem sido
notado pelo mundo de forma mais positiva do que foi nos quatro anos de Jair Bolsonaro. E essa
situação — a despeito dos deslizes que Lula comete quando se deixa levar pelo
entusiasmo e fala mais do que deveria — pode ser positiva para o Brasil.
Na terça-feira passada, na abertura da 78ª
Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente fez um discurso absolutamente
coerente com seu estilo. Sua fala, que durou 21 minutos, foi interrompida por
aplausos durante sete vezes. Os aplausos não foram, é evidente, tão efusivos
como os apoiadores de Lula andam dizendo. Mas, por outro lado, também não foram
protocolares como diz a oposição.
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Este é o primeiro ponto a ser observado: o discurso
de Lula na ONU não deve ser analisado à luz da divisão política que, no Brasil,
transforma o presidente numa espécie de deus, para os que gostam dele, ou no
capeta para os que estão do outro lado. Um pronunciamento feito naquele
plenário não deve ser medido pelo efeito que causa nas multidões. O que conta,
ali, é passar uma mensagem aos líderes que influenciam as decisões globais. E,
ainda que a Assembleia deste ano não tenha contado com a presença de alguns
Chefes de Estado destacados, ninguém pode dizer que as palavras de Lula não
tenham chegado a quem interessava.
Por diferentes razões, que não cabe detalhar aqui,
Vladimir Putin, da Rússia, Xi Jinping, da China, Rishi Sunak, do Reino Unido, e
Emmanuel Macron, da França, quatro dos cinco países com assentos permanentes no
Conselho de Segurança da entidade (o quinto é os Estados Unidos), não deram o ar da graça no plenário. Mas, independentemente dessas
ausências, o discurso foi feito, o recado foi dado e a nata da diplomacia dos
193 países que compõem a organização ouviram o que o governo do Brasil tem a
dizer sobre alguns temas relevantes e outros nem tanto a respeito dos quais
eles, em algum momento, terão que dialogar.
Lula defendeu com convicção as ideias nas quais
acredita — ainda que algumas delas pareçam ultrapassadas e não sejam
consensuais nem em seu próprio país. E, por mais que tenha deixado claras suas
diferenças em relação às posições de outros países, ele fez questão de, a seu
estilo, manter aberta a porta para as negociações e o entendimento. Nesse
ponto, a comparação do estilo de Lula com o do seu antecessor é inevitável.
FORMA E CONTEÚDO
Pelo menos no que diz respeito à reação às críticas
que o Brasil recebe em relação ao meio ambiente, Lula e Bolsonaro falam a mesma
língua. Assim como o antecessor, o atual presidente sempre devolve as cobranças
dos países desenvolvidos em relação à exploração da Amazônia. Para eles, os
Estados Unidos e os países desenvolvidos da Europa e da Ásia construíram sua
riqueza sem o mínimo respeito ao meio ambiente e precisam se lembrar disso
antes de criticar o Brasil.
Na ONU, Lula voltou a lembrar que “os países ricos
cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao
clima”. Sendo assim, eles não têm autoridade para impor ao Brasil sua forma de
lidar com essa questão. Bolsonaro, por sua vez, sempre reagiu às críticas em
relação à Amazônia como se ouvisse uma ofensa.
Quando a Alemanha, em 2019, suspendeu a
contribuição de mais de US$ 80 milhões por ano ao Fundo Amazônia, destinado a
bancar ações de preservação na região, o então presidente reagiu como se aquilo
não fizesse falta. E mandou um recado mal criado à então chanceler Angela Merkel:
“Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok? Lá estão precisando mais do
que aqui”, disse o presidente na ocasião.
Lula, ao contrário, devolve aos países ricos as
cobranças que recebe. “O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a
Amazônia está falando por si”, disse o presidente na ONU, referindo-se ao
esforço liderado pelo Brasil para unir os países sul-americanos cobertos pela
floresta em torno de uma agenda capaz de definir políticas de preservação para
a região. Em agosto passado, o Brasil reuniu em Belém, no Pará, líderes dos
oitos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica para discutir
políticas de preservação e exploração responsável da região.
“RISCO DE GOLPE”
Lula parece feliz quando cumpre o papel de lembrar
os outros de suas responsabilidades — e faz isso com maestria. Na ONU, ele foi
absolutamente fiel a esse estilo e, por essa razão, não faltaram em seu
discurso aqueles pontos que, dependendo da forma com que são olhados, causam
mais constrangimentos do que trazem benefícios aos interesses do Brasil.
A viagem que o levou a Nova York, onde fica a sede
da ONU, depois de passar por Havana, em Cuba, foi a 14ª que ele fez em nove
meses de governo. Nelas, visitou um total de 19 países e manteve conversas
bilaterais com cerca de 30 chefes de Estado. Em seus discursos e entrevistas,
Lula sempre exige respeito do mundo às decisões internas de outros países.
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Na ONU, Lula chamou de “ilegal” o bloqueio
comercial que o Congresso dos Estados Unidos impôs a Cuba. Ele pode até
criticar a medida, mas, por uma questão de coerência, ao chamá-la de “ilegal”
ele está interferindo numa decisão democrática de outro país. No discurso, o
presidente se queixou das medidas “unilaterais” que “causam grandes prejuízos
às populações dos países afetados”. Se esqueceu, porém, de mencionar que a
invasão da Ucrânia foi um ato unilateral de agressão da Rússia contra um país
vizinho. Por mais que ele queira dividir a culpa entre os dois países em
guerra, seu ponto de vista sobre esse assunto é uma defesa do regime ditatorial
de Vladimir Putin, que é condenado pelo mundo inteiro.
Em outro momento do discurso, ele mencionou
preocupação com a Guatemala, onde “há o risco de um golpe, que impediria a
posse do vencedor de eleições democráticas”. É verdade que a vitória do esquerdista Bernardo
Arévalo no segundo turno das eleições guatemaltecas está sendo contestada na
Justiça do país por irregularidades que foram apontadas ainda antes da contagem
dos votos. O problema, nesse caso, é a incoerência em relação ao tratamento
dado por Lula a outros países.
O mundo inteiro sabe que Lula jamais manifestou a
mínima preocupação diante das atrocidades praticadas por tiranos como Nicolas
Maduro, da Venezuela, ou Daniel Ortega, da Guatemala. Por essa razão, qualquer
palavra dita em defesa de Arévalo entrará por um ouvido e sairá pelo outro de
qualquer pessoa que escute a peroração. Ou seja: nesses casos específicos, Lula
está comprometido demais com uma determinada posição para se colocar, como vem
se colocando, com alguém capaz de unir lados divergentes.
VEXAMES MARCANTES
A tribuna das Nações Unidas é, por definição, um
espaço com alcance mundial e o Brasil conquistou, por mérito da diplomacia de
excelência que tinha no passado, o privilégio de fazer o discurso de abertura
da Assembleia Geral, que sempre acontece no mês de setembro de cada ano. Tem
sido assim desde que a Organização foi fundada, em 1946, numa sessão histórica
presidida pelo chanceler brasileiro Oswaldo Aranha.
Logo nos primeiros anos de vida da ONU — criada
como rescaldo da Segunda Guerra Mundial como a grande fiadora da paz entre as
nações —, o mundo começou a sentir os efeitos da queda de braços travada entre
os Estados Unidos e a União Soviética nos anos da Guerra Fria. Diante da
situação delicada que se criou naquele momento, o Brasil teve a habilidade de
se posicionar como um algodão entre os cristais. Para evitar que as assembleias
gerais do organismo fossem iniciadas com discursos beligerantes, passou, a
partir de 1951, a se voluntariar para fazer o discurso inaugural. Até que, em
1955, o plenário oficializou a condição e deliberou que, dali em diante, sempre
caberia a um representante do país o direito de falar logo depois do Secretário
Geral e do presidente da assembleia.
No começo, os discursos brasileiros cabiam a
diplomatas. A presença de presidentes brasileiros na tribuna é relativamente
recente. Apenas em 1982 — ou seja, 27 anos depois de o país adquirir o direito
de ser o primeiro a falar — um Chefe de Estado do país, o general João
Figueiredo, falou no plenário da ONU. A regra só foi quebrada em 1983 e 1984
quando, por deferência da delegação brasileira e num momento em que o prestígio
do país estava enfraquecido pela crise da Dívida Externa, o discurso de
abertura foi feito pelo presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan.
O fato é que, depois de Figueiredo, José Sarney,
Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff, Bolsonaro e o
próprio Lula passaram por lá e — uns mais, outros menos — deixaram seu recado.
Nenhum desses discursos, no entanto, mereceu muita repercussão fora dos meios
diplomáticos. E isso, de certa forma, é positivo. Os discursos mais rumorosos
na ONU, de um modo geral, têm sido grotescos e, no final, acabam se voltando
contra quem os proferiu.
Por pressão dos países árabes, no calor da primeira
crise do petróleo, o líder Yasser Arafat foi convidado para defender a causa
palestina na Assembleia Geral de 1974. Isso aconteceu apenas dois anos depois
do massacre em que terroristas palestinos tiraram as vidas de onze atletas
israelenses durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Em tom desafiador,
Arafat disse que chegava à ONU com um ramo de oliveira numa mão e o revólver na
outra — e que o assassinato dos atletas era consequência da luta pela
independência. As palavras de Arafat causaram tanta repulsa que, ao invés de
fortalecer, enfraqueceram sua causa. E atrasaram por mais de dez anos o
processo de reconhecimento da causa palestina pela comunidade internacional.
Em 1975, o tirano Idi Amin Dada, de Uganda, subiu à
tribuna para acusar as próprias Nações Unidas de caluniar seu governo — que,
como se sabe, foi um dos mais abjetos e sanguinários da história. Em 2006, o
caudilho venezuelano Hugo Chávez se valeu do espaço para proferir ofensas ao
ex-presidente dos Estados Unidos George W. Busch, a quem chamou de “diabo”. Em
2009, o ditador líbio Muammar Khadafi foi à ONU acusar os Estados Unidos de
criar a gripe suína e espalhá-la pelo mundo e por em dúvida a versão oficial
sobre o assassinato do presidente John Kennedy.
No ano seguinte, em 2010, o títere iraquiano
Mahmoud Amadinejad teve a cara de pau de responsabilizar os Estados Unidos
pelos ataques do dia 11 de setembro. Naqueles atentados, 3.045 pessoas perderam
a vida no World Trade Center, que ficava a poucos quilômetros da tribuna que
ele ocupava. Diante daquela estupidez sem propósito, integrantes de 33
delegações abandonaram o salão em protesto e sem ouvir o final do discurso do
garoto de recados dos aiatolás.
ZELENSKY É O CARA
Diante de casos como esses, que entraram na
história pela porta dos fundos, é até confortável constatar que os discursos
brasileiros na ONU sempre cumpriram sua função sem chamar muita atenção. No
caso específico da semana passada, o espaço ocupado pelo assunto na imprensa
internacional foi discreto. O New York Times e o Washington Post, os jornais
mais influentes dos Estados Unidos, por exemplo, foram econômicos em suas
menções à fala do presidente brasileiro — mas, no dia seguinte, foram generosos
na cobertura do encontro que Lula manteve com o líder ucraniano Volodymir
Zelensky. Aliás, este é um ponto que merece atenção!
Por mais protocolar que tenha sido o encontro, que
durou pouco mais de meia hora e aconteceu no hotel em que Lula estava
hospedado, a reunião pode ser vista como uma vitória da diplomacia brasileira.
Ele aconteceu devido ao trabalho costurado pelo Itamaraty na tentativa de
apagar a péssima impressão deixada pelo tratamento que Lula dispensou ao líder
ucraniano durante a reunião do G7, em maio deste ano na cidade japonesa de
Hiroshima. Na ocasião, Lula foi o único chefe de Estado que não se moveu na
cadeira quando todos os outros se levantaram e foram cumprimentar Zelensky no
momento em ele entrou na sala. Na sequência, o presidente brasileiro ainda
criou dificuldades e acabou não recebendo o líder ucraniano para uma conversa
reservada.
Até a diplomacia brasileira, que já não demonstra a
mesma atenção para os detalhes que tinha no passado, se deu conta do tamanho do
erro. E desde maio vem tentando corrigi-lo. Pela forma como reagiu à agressão
russa e pela capacidade de unir o Ocidente em torno de sua causa, Zelensky
desempenha no mundo um papel de destaque semelhante ao que Lula desempenhou em
sua primeira passagem pelo governo do Brasil.
Ainda hoje, as pessoas se recordam das palavras do
presidente dos Estados Unidos Barak Obama a respeito do líder brasileiro
naquele momento. Ao se encontrar com Lula durante uma reunião do G-20 em
Londres, em abril de 2009, Obama disse para todo mundo ouvir: “Lula é o cara. É
o politico mais popular do mundo”. Todos queriam estar com ele.
Hoje, quem atrai atenção e esbanja popularidade
onde quer que pise é Zelensky. E Lula, depois dos altos e baixos de sua
trajetória recente, agora precisa se esforçar para recuperar o prestígio, que
já foi muito maior do que é atualmente, e utilizar sua habilidade política para
fazer o que realmente interessa para o Brasil neste momento. Ou seja, buscar se
aproximar dos parceiros certos e capazes de para ajudar o país a fortalecer a
economia e gerar mais empregos e chances para os brasileiros. Isso é
fundamental — ainda mais neste momento em que mais uma oportunidade se oferece
ao país na forma do processo de transição energética em curso no mundo inteiro.
O Brasil tem tudo para se tornar uma das grandes
potências energéticas do Século 21. O país conta com uma das matrizes
energéticas mais limpas do mundo. O próprio Lula disse na ONU — e é a mais
absoluta verdade — que 87% da eletricidade nacional provém de fontes
renováveis. A adição de etanol à gasolina, que subirá de 27% para 30% nos
próximos dias, faz da frota brasileira de automóveis a menos poluente do mundo.
O biodiesel é uma realidade cada vez maior.
Isso sem falar no potencial fantástico representado
pelo Hidrogênio Verde. O que falta, nesse caso, é uma tecnologia que permita a
produção desse combustível a partir de fontes verdes e renováveis, em escala
capaz de atender a demanda mundial e em condições que permitam o transporte
seguro e barato do que vier a ser produzido. Ou seja: para ter o Hidrogênio
Verde que Lula menciona em todos os seus discursos, como fez na ONU, será
necessário investimento em pesquisa e desenvolvimento. Isso requer conhecimento
— que o Brasil tem de sobra — e rios de dinheiro para investimento. Como
dinheiro não anda sobrando por aqui, será necessário celebrar as parcerias
certas com países capazes de contribuir, e não retardar, esse esforço.
O presidente, nesse campo, pode fazer pelo Brasil
ainda mais do que vem fazendo. É fundamental que se definam marcos regulatórios
mais modernos para as questões energéticas e ambientais, no âmbito do Plano de
Transição Ecológica liderado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad. Se, ao
invés de sair por aí defendendo ditaduras, Lula concentrasse seu talento
político na busca de acordos internos e externos capazes de ampliar ainda mais
a capacidade do país explorar as fontes renováveis de energia, talvez o Brasil
deixasse de ser visto pelo mundo como um pária ambiental e recuperasse o
prestígio e voltasse a ser uma companhia desejável. Se isso acontecer, Lula
certamente voltará a ser “o cara” a quem Obama se referiu em 2009.
Fonte: Por Nuno Vasconcellos, para iG
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