sábado, 30 de setembro de 2023

As origens históricas da nova crise de Nagorno-Karabakh em cinco pontos

Após várias guerras, o Azerbaijão lançou uma ofensiva em setembro de 2023 que forçou os armênios de Nagorno-Karabakh a capitular. Essa região predominantemente armênia do Cáucaso, dentro do território do Azerbaijão, proclamou sua independência às vésperas do desmembramento da URSS e está em conflito com o Azerbaijão há mais de 30 anos. Para conhecer as origens históricas dessa nova crise, a RFI entrevistou Tigrane Yegavian, pesquisador da Universidade Schiller. 

·         1. Nagorno-Karabakh é o berço da civilazação armênia

>>> RFI: Historicamente, a quem pertence a região de Nagorno-Karabakh?

Tigrane Yegavian: Nagorno-Karabakh sempre foi uma região historicamente armênia. É o berço da civilização armênia, como evidenciado pelos mosteiros e outros monumentos históricos. Os problemas começaram em 1921, quando o Cáucaso foi sovietizado. Havia três entidades - Geórgia, Armênia e Azerbaijão - com fronteiras que não eram muito bem definidas. Quando o Azerbaijão e a Armênia declararam sua independência um pouco antes, eles não conseguiram demarcar a fronteira. Na época, havia uma disputa entre o Azerbaijão e a Armênia por regiões como Nagorno-Karabakh, a região de Syunik e Nakhichevan. O Azerbaijão foi sovietizado antes da Armênia e a política de Moscou na época era a de dividir para reinar.

Em outras palavras, o Kremlin buscava enfraquecer o nacionalismo e, assim, recompensar a Turquia. Em 1921, a Turquia era um estado anti-imperialista e não estava próxima do bloco ocidental. Assim, como resultado da pressão turca, os russos deram Karabakh e Nakhichevan ao Azerbaijão com as bençãos turcas. Só que em Nakhichevan houve uma limpeza étnica. Os armênios, que representavam 50% da população da região, foram embora. Mas em Nagorno-Karabakh, onde os armênios representavam 94% da população total, eles nunca aceitaram essa ligação com o Azerbaijão e nunca a reconheceram. Em 1923, Nagorno-Karabakh se tornou uma região autônoma dentro do Azerbaijão.

·         2. O direito à autodeterminação dos povos

>>> O período soviético deixou esse problema em segundo plano?

Durante todo o período soviético, o nacionalismo foi mantido em segredo. E os azerbaijanos tentaram gradualmente mudar o equilíbrio demográfico para que houvesse uma maioria azeri. Então, em 1988, veio a perestroika na URSS. E para os armênios de Karabakh, foi um teste para ver se a democratização era possível: não o direito à autodeterminação, mas o direito de mudar de status, de ser integrado à Armênia soviética, como a Crimeia havia sido integrada à Ucrânia soviética em 1954. Portanto, eles achavam que a Crimeia e a Ucrânia eram um precedente e que isso também poderia se aplicar aos armênios de Karabakh. Mas a resposta do poder central em Moscou foi negativa.

Como resultado, de 1988 a 1991, testemunhamos a primeira fase do conflito, uma fase de guerrilha na qual o Exército Vermelho cooperou com os azerbaijanos para lutar contra os armênios a fim de estabelecer o poder do Azerbaijão. Isso porque em 1988, o parlamento da região autônoma de Karabakh votou pela adesão à Armênia soviética. Mas, em 1991, a União Soviética entrou em colapso e tanto a Armênia quanto o Azerbaijão se tornaram estados independentes.

O Azerbaijão tornou-se uma república independente em 28 de agosto. A proclamação de sua independência cancelou o status de autonomia de Karabakh. Portanto, para os armênios de Karabakh, isso significa uma sentença de morte. Para eles, não há mais nenhuma garantia de uma vida pacífica. Como resultado, eles vão se declarar independentes, e o fizeram em 2 de setembro, antes da Armênia, que declarou sua independência em 21 de setembro. Enquanto isso, ainda havia uma ficção jurídica, porque a União Soviética ainda existia e só desapareceu em dezembro do mesmo ano. É preciso entender que há dois princípios no direito internacional: o princípio do direito dos povos à autodeterminação e o princípio da integridade territorial.

Mas o argumento azerbaijano não é necessariamente válido quando se trata de integridade territorial, porque os armênios de Karabakh dizem que nunca fizeram parte do Azerbaijão independente, em outras palavras, que foram anexados ao Azerbaijão após a sovietização. Esse é o argumento legal dos armênios. Os azeris, por outro lado, insistem na integridade territorial, considerando que as fronteiras administrativas são agora internacionais e que Karabakh pertence a eles. Em 1994, estourou uma guerra de alta intensidade, vencida pelos armênios de Nagorno-Karabakh.

·         3. Trauma profundo e sede de vingança 

>>> RFI: Esse é o primeiro conflito armado na região desde o colapso da URSS. Quais são as consequências dessa guerra?

O exército armênio não está diretamente envolvido no conflito. A Armênia não declarou guerra diretamente ao Azerbaijão, mas é claro que, nesse meio tempo, Yerevan apoiou os armênios de Karabakh e acabamos chegando a uma situação em que eles retomaram 80% do enclave, mas também toda uma zona de amortecimento em torno desse enclave, o que resultará na fuga de 800 mil refugiados azeris. Esse é um número enorme. Todas as cidades vizinhas do Azerbaijão foram sistematicamente destruídas. Um trauma profundo foi criado na sociedade azerbaijana, juntamente com uma profunda sede de vingança e revanche.

Em 1923, Nagorno-Karabakh se tornou uma região autônoma dentro do Azerbaijão

O que precisa ser entendido é o impacto dessa vitória militar, que resultou na perda de 14% do território azerbaijano. Os armênios veem isso como uma zona de segurança, uma zona tampão, uma profundidade estratégica que lhes permitirá negociar uma espécie de paz com os territórios ao redor de Karabakh. Mas a tragédia foi que, logo após 1994, o governo armênio era presidido por Levon Ter-Petrossian, que era bastante próximo do [então presidente russo] Boris Yeltsin. Levon Ter-Petrossian era um pragmático que acreditava ser imperativo negociar uma paz justa com base em concessões mútuas: todos os territórios foram devolvidos e um referendo sobre autodeterminação foi realizado. Ele estava convencido de que o status quo era insustentável e que os azeris poderiam reverter o equilíbrio de poder. Ele não estava errado, mas foi derrubado em 1998 por sua equipe de guarda-costas, que era composta inteiramente por pessoas de Karabakh.

Em outras palavras, para os líderes de Karabakh, não poderia haver paz sem o reconhecimento total da independência da região ou sua ligação com a Armênia, sem concessões. Eles pagaram um alto preço por essa estratégia: Levon Ter-Petrossian foi substituído por Robert Kotcharian, seu primeiro-ministro e antigo presidente de Karabakh. Ele era um nacionalista pró-russo que achava que, enquanto a Armênia fosse aliada da Rússia, seria uma forma de seguro de vida, porque a Rússia precisava da Armênia na época como seu único aliado confiável na região do Cáucaso.

O problema é que o Azerbaijão cresceu gradualmente em poder: a partir de 2002, o gasoduto Baku (no Azerbaijão) - Tbilisi (na Geórgia) - Ceyhan (na Turquia) entrou em operação. O PIB do Azerbaijão começou a crescer, assim como seus gastos com armas. Entre 2000 e 2010, a diplomacia do Azerbaijão foi extremamente proativa, multilateral e forjou alianças com a Ásia, Israel, o Reino Unido e até mesmo a Rússia. Enquanto isso, os armênios confiaram sua segurança apenas à Rússia. Eles perderam o que os azeris conseguiram fazer: forjar alianças com todas as grandes potências, mesmo que sejam antagônicas (Paquistão e Israel, por exemplo). Os armênios continuam com a ilusão de que os russos estão lá como apoio para sempre.

·         4. A derrota armênia no pós-covid sob os bombardeios turcos

>>> Mas o contexto mudou em 2016 com a "Guerra dos Quatro Dias"...

Em 2016, durante esses quatro dias, o Azerbaijão rompeu as defesas armênias e, após quatro dias, a Rússia negociou um cessar-fogo. Naquele momento, percebemos que o equilíbrio de poder havia mudado e que os armênios não tinham a vantagem militar. Então, quatro anos depois, veio a pandemia da covid e as eleições nos Estados Unidos. O Azerbaijão lançou uma ofensiva, mas dessa vez a grande notícia foi que o exército turco estava com eles. Antes, o exército turco não estava presente no terreno, enviava assessores, mas não estava no comando.

Agora, o exército turco estava participando da guerra por meio de suas forças especiais, sua força aérea e os jihadistas que estava recrutando na Síria. Foi uma derrota total para os armênios, pois eles enfrentaram o exército turco e o exército azerbaijano, com equipamentos israelenses causando estragos em todos os sistemas de defesa antiaérea. Ao mesmo tempo, os russos não podem alienar a Turquia e o Azerbaijão, porque realmente precisam deles para seus interesses geoestratégicos. Portanto, os armênios se sentem um pouco abandonados pelos russos. Em Erevan, existe essa convicção de que a Rússia se afastou, porque o governo de Nikol Pachinian, que chegou ao poder em 2018 após uma revolução, tem uma agenda pró-ocidental. Para a Rússia, isso é inaceitável e, portanto, eles estão fazendo com que paguem.

·         5. Guerra híbrida e limpeza étnica

>>> A queda de Nagorno-Karabakh era previsível?

De 2020 a 2023, o Azerbaijão está travando uma guerra híbrida contra os armênios. E por quê? Porque eles não atingiram seus objetivos. O Azerbaijão tem três objetivos: primeiro, aniquilar o Karabakh armênio, o que já foi alcançado graças à limpeza étnica que está em andamento. Em seguida, o segundo objetivo: estabelecer um corredor extraterritorial no sul da Armênia para proporcionar continuidade territorial com a Turquia. Esse corredor é importante para os turcos porque é por onde passarão os canos do futuro gasoduto. Eles o querem, querendo ou não. E o terceiro objetivo é um acordo de paz com a Armênia, mas que é mais um acordo de rendição baseado em novas concessões territoriais. É isso que está em jogo hoje.

 

Ø  Armênios se organizam para receber refugiados de Nagorno-Karabakh

 

A Armênia tem recebido desde domingo (24/09) um grande número de refugiados, vítimas da ofensiva relâmpago lançada pelo governo do Azerbaijão ao enclave de Nagorno-Karabakh. O fluxo de pessoas causa um complexo quebra-cabeças para as autoridades e a população de Goris, pequena cidade situada após a passagem pelo engarrafado corredor de Latchine.

O número de refugiados que chegaram à Armênia ultrapassa 65 mil, segundo dados divulgados por Ierevan nesta quinta-feira (28/09), o que representa mais da metade dos habitantes da região de Nagorno-Karabakh.

A operação militar do Azerbaijão na região, no domingo, deixou mais de 400 mortos entre os dois lados.

Paralelamente, quase 100 pessoas foram declaradas desaparecidas após a explosão de um depósito de combustíveis na noite de segunda-feira (25/09) no enclave, uma tragédia que deixou 68 mortos e 290 feridos.

Até a semana passada, 120 mil armênios viviam no enclave, reconhecido pela comunidade internacional como parte integrante do Azerbaijão.

No domingo, o Azerbaijão abriu para circulação a única estrada que liga Nagorno-Karabakh à Armênia, quatro dias após a rendição dos separatistas e da assinatura de um acordo de cessar-fogo que deu a Baku o controle da região.

A Armênia, majoritariamente cristã, e o Azerbaijão, predominantemente muçulmano, travaram duas guerras na região de Nagorno-Karabakh desde o colapso da União Soviética em 1991.

Em meio ao êxodo, os guardas de fronteira do Azerbaijão tentam detectar supostos “criminosos de guerra” entre os refugiados, afirmou à AFP uma fonte do governo de Baku.

Nesta quarta-feira, um ex-líder separatista armênio, Ruben Varadanyan, que comandou o governo separatista de Nagorno-Karabakh de novembro de 2022 a fevereiro deste ano, foi detido quando seguia para a Armênia pela rodovia, anunciaram as autoridades do Azerbaijão.

·         Crise humanitária

A cidade fronteiriça de Goris, onde a maioria dos refugiados faz a sua primeira parada, está quase irreconhecível. Centenas de carros invadiram suas ruas, onde reina o caos, diante dos olhares atônitos dos policiais, incapazes de direcionar o trânsito com seus megafones.

Edo, sentado em um banco, com uma pequena mala e sacolas plásticas cheias, conta à RFI como foi a fuga com a família, diante do avanço dos soldados do Azerbaijão. “Eles cercaram a cidade, então tivemos de partir." Edo, sua mulher, a filha e um filho com deficiência, ficaram durante uma semana em uma base militar russa. “Não havia nada para comer, sobrevivemos como pudemos e agora estamos aqui.”

A intervalos regulares, Edo ergue o filho de 26 anos para reposicioná-lo mais confortavelmente na cadeira de rodas. “Minha mulher cuida dos registros junto às autoridades, mas eu preciso ficar com meu filho, para ajudá-lo a ir ao banheiro, dar de comer. Preciso estar a seu lado o tempo todo”, explica.

‘Trabalhei 30 anos, construí uma casa e perdi tudo’

Edo espera o retorno da mulher, sem saber se vão continuar em Goris ou partir para outro lugar da Armênia. “Trabalhei 30 anos, construí uma casa e perdi tudo”, conta. Ele acrescenta que trouxeram apenas roupas e uma reserva equivalente a € 500”.

A população local se mobiliza para ajudar os refugiados. “Viemos ajudar, sabemos que eles têm fome e sede”, diz o jovem comerciante Hayk, que junto com os amigos são voluntários no acolhimento.

Muitas pessoas chegam de outras cidades para contribuir. “Eu sabia que precisavam de ajuda aqui. As pessoas querem ir para algum lugar. Peguei o carro e acabei de chegar", conta um motorista de táxi. "Estou esperando para saber qual família devo levar a Ierevan. Sei que essas pessoas perderam tudo. Então para mim é importante ajudar como puder”.

“Goris é uma cidade muito pequena, a situação é caótica, falta gente para ajudar”, conta à RFI por telefone, da capital Ierevan, a estudante Ani. “Mas o governo pede que não saiam de Goris, para que sejam registrados e depois sejam relocados. A cidade está cheia, hotéis e pousadas estão lotadas, as pessoas dormem em carros. Mas a população local também está recebendo os refugiados de coração aberto, isso é positivo”.

 

Ø  Governo brasileiro pede ‘proteção de direitos’ dos armênios em Nagorno-Karabakh

 

O Itamaraty publicou nesta quinta-feira (28/09) uma nota revelando o posicionamento do Brasil com relação ao conflito em Nagorno-Karabakh, com foco no êxodo de mais de 65 mil refugiados armênios dessa região, situação que vem se produzindo desde o último domingo (24/09).

Segundo o governo brasileiro, “o deslocamento de milhares de civis de origem armênia na região de Nagorno-Karabakh e em seu entorno causa grande preocupação, sobretudo em vista de suas graves implicações humanitárias e políticas”.

Nagorno-Karabakh foi alvo de um ataque relâmpago promovido na semana passada pelo governo do Azerbaijão, como forma de intimidação à comunidade armênia local, em função das atividades de grupos que defendem a autonomia da região.

Na nota, o Itamaraty expressou que “o Brasil considera indispensável a garantia à segurança da população residente, bem como a proteção de seus direitos. Também rejeita o recurso à força e à violência com o objetivo de alterar o status político da região”.

“Apenas soluções alcançadas por meio do diálogo e da diplomacia poderão resultar em paz sustentável e prosperidade para toda a região”, afirmou a diplomacia brasileira.

O Itamaraty também salientou que “a situação humanitária e de segurança em Nagorno-Karabakh e entorno seguirá sendo objeto de atenção do Brasil, em coordenação com os demais membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, especialmente em vista da iminente assunção da presidência rotativa do órgão pelo país, em 1º de outubro”.

Horas antes da publicação da nota brasileira, o premiê da Armênia, Nikol Pashinyan, pediu apoio internacional aos refugiados, contra o que chamou de “limpeza étnica” dos cidadãos armênios em Nagorno-Karabakh.

·         Fim da ‘República de Artsakh’

Enquanto isso, os grupos armênios que defendiam a independência da região de Nagorno-Karabakh do resto do Azerbaijão anunciaram que abandonaram essa reivindicação.

Em um comunicado, o líder rebelde Samvel Shajramanian disse que “a partir de janeiro de 2024, a República de Artsakh (Nagorno-Karabakh) deixará de existir”.

A decisão implica no fim de mais de 30 anos de conflito entre a comunidade armênia, que constituía a maioria da população de Nagorno-Karabakh, e o governo do Azerbaijão.

 

Fonte: rfi/Opera Mundi

 

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