Menos investimento e proibição: os desafios enfrentados pela seleção
feminina de futebol fora de campo
"As coisas não acontecem de um dia para o
outro."
Com essa frase, a maior artilheira de todos os
tempos do futebol brasileiro, masculino ou feminino, se despediu das Copas do
Mundo, após a eliminação da Seleção na fase de grupos na Austrália nesta
quarta-feira (2/8).
Marta representou o Brasil em seis Mundiais e
conquistou seis vezes o prêmio de melhor jogadora da Fifa. Mas apesar de
acumular recordes em seu currículo, nunca conquistou um título.
Desde a primeira edição oficial da Copa feminina,
em 1991, a melhor posição conquistada pelo Brasil foi o segundo lugar em 2007.
A realidade contrasta diretamente com os resultados
obtidos pela Seleção masculina, que é considerada a mais bem-sucedida da
história do futebol mundial, com cinco títulos em Copas do Mundo.
Para especialistas consultadas pela BBC News
Brasil, a diferença no desempenho e na confiança incitada pelas suas equipes
pode ser explicada principalmente pela discrepância no investimento e pelos
anos em que as mulheres foram impedidas de jogar no país.
• Paralisação
de quase 4 décadas
De acordo com historiadores, a principal razão para
a desigualdade é a profissionalização tardia da modalidade no Brasil, após
quase quatro décadas de proibição entre 1941 e 1979.
O veto foi instaurado pelo governo de Getúlio
Vargas, sob o pretexto de que o futebol era um esporte violento demais para as
mulheres, que poderia afetar suas funções orgânicas e capacidade de serem mães.
O decreto 3.199, que estabelecia "as bases de
organização dos desportos em todo o país”, afirmava em seu artigo 54 que “às
mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições
de sua natureza".
O documento não mencionava sanções, dando margem
para que cada delegacia impusesse as suas. Não há registros, no entanto, de
mulheres presas por violar a ordem. Geralmente, elas eram detidas e liberadas
logo após prestar depoimento.
Ainda assim, segundo Júlia Barreira, professora do
curso de Educação Física da Unicamp, o período de proibição afetou
profundamente o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil.
"As meninas e mulheres desafiaram o decreto,
ocuparam os campos de várzea e se organizaram em espaços periféricos para
continuar praticando a modalidade, mas perderam totalmente as competições e
organizações esportivas que as apoiavam", diz.
"Passamos quase quatro décadas sem competições
oficiais para que elas praticassem e se desenvolvessem, estrutura para
apoiá-las ou formação de treinadores e treinadoras com qualificação para
trabalhar especificamente com esse grupo."
Mesmo com o fim da proibição em 1979, o futebol
feminino só foi devidamente regulamentado em 1983.
"Ao mesmo tempo em que o futebol feminino está
proibido, o masculino tem um progresso e ascensão e conquista seu
tricampeonato", diz a historiadora Aira Bonfim, especializada em futebol
feminino.
"Olhar para tudo isso nos ajuda a entender
todos os paradigmas. Mesmo após a proibição, muito se falava sobre o futebol
feminino não ser interessante para o Brasil ou não ter tradição."
"É uma grande mentira que não temos tradição,
porque a história do esporte não está só associada à oficialidade. Mas é
inegável que a proibição limitou o desenvolvimento da modalidade."
Segundo as especialistas consultadas pela BBC News
Brasil, o período de veto também ajudou a construir parte do estigma social
associado ao futebol feminino, já que boa parte da identidade nacional
associada ao esporte também foi construída nessa época, deixando as mulheres de
fora.
• Investimentos
e salários
Para Nathália Pessanha, pesquisadora da
Universidade Federal Fluminense (UFF), outro fator crucial para analisar a
situação de forma correta é o apoio recebido pelas equipes.
"A situação melhorou muito de 2019 para cá, o
futebol feminino passou por um boom com a transmissão de Campeonato Brasileiro
na televisão aberta, patrocínios nas camisas, investimento em seleções de base
e, claro, com a criação de uma camisa própria para a Seleção - já que antes
elas jogavam com uma versão masculina, com cinco estrelas no escudo", diz.
Mas nada disso se compara ao investimento recebido
pelo futebol masculino.
Em 2022, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF)
destinou aproximadamente R$ 200 milhões à seleção masculina principal. Outros
R$ 70 milhões foram divididos entre o time feminino e sete seleções de base,
segundo dados divulgados pelo próprio órgão.
A CBF é responsável pelos custos relativos à
comissão técnica, delegações, passagens, alimentação, hospedagens e demais
itens necessários à operação e desenvolvimento das equipes, nas competições e
amistosos de preparação, realizados ao longo do ano.
Além disso, segundo Pessanha, os salários e
comissões significativamente mais baixos recebidos pelas atletas mulheres
também podem impactar a realidade atual, ainda que não sejam definitivos para
um bom desempenho.
"Não dá para comparar investimento, não dá
para comparar marketing e não dá para comparar salário", diz.
"E o salário impacta diretamente na condição
que aquela atleta vai entrar em campo, na condição de vida que aquela pessoa
vai dar para sua família, porque querendo ou não o futebol no Brasil é um
elemento de crescimento social."
"E aí tem gente que fala 'mas o Neymar é muito
mais famoso do que a Marta'. A Marta ganhou seis títulos de melhor jogadora do
mundo", completa.
A CBF anunciou em 2020 a igualdade de salários
entre homens e mulheres na Seleção - isto é, enquanto estão convocados eles
recebem o mesmo valor diário para treinar e representar o Brasil nos jogos.
No entanto, em parte dos campeonatos, como a Copa
do Mundo, os valores seguem bem diferentes: ao anunciar a igualdade de salários
em 2020, a CBF informou que as premiações serão proporcionais ao repasse da
Fifa para cada modalidade.
Nas ligas nacionais e equipes privadas, a realidade
também é de desigualdade. Marta joga atualmente na liga americana pelo Orlando
Pride e recebe anualmente um salário de US$ 400 mil.
Em comparação, a jogadora ganha por ano menos de 1%
que Neymar, atacante do Paris Saint-Germain que ganha US$ 50 milhões por
temporada, de acordo com a revista Forbes.
Marta é, inclusive, uma das maiores ativistas pela
igualdade de salários e investimentos no futebol atualmente. Na última Copa,
ela dispensou patrocínios e entrou em campo usando uma chuteira com o símbolo
da igualdade nas cores azul e rosa, criado pela campanha 'GoEqual'.
"A Marta atleta se sente realizada. Mas o
maior sonho mesmo é sentir que a nossa modalidade está caminhando para
frente", afirmou a jogadora em uma entrevista à CBF em 2018.
"Que o futebol feminino não é só uma promessa.
É uma realidade. Que as meninas possam mesmo sonhar em ser atletas, seguir uma
carreira, viver do futebol. Sentar depois no futuro, na minha casa, no sofá e
ver o futebol feminino na TV como algo normal, constante", defendeu.
"Existe uma ideia muito forte de que as
mulheres têm que se provar, tem que gerar renda para que os patrocínios e
salários cresçam. Mas aí entramos em um ciclo sem fim, por que como as mulheres
podem provar que geram renda se não tem patrocínio ou transmissão?",
questiona Pessanha.
• Desenvolvimento
de liga nacional
A especialista afirma ainda que a existência de
ligas nacionais bem consolidadas, com times de base, é essencial para o desenvolvimento
de um esporte. Mas no Brasil atualmente os progressos nesse setor ainda
acontecem muito lentamente.
"Ter boas seleções de base e campeonatos
estruturados são elementos essenciais para formar e revelar novas jogadoras,
que no futuro vão renovar a atual Seleção", diz.
"Fora que um campeonato bem estruturado ajuda
a vender o esporte dentro do país. Quanto mais times competindo em alto
rendimento, mais torcedores começam a acompanhar."
Desde 2019, os clubes masculinos da Série A do
Campeonato Brasileiro e da Libertadores são obrigados a ter elencos femininos.
O Brasileirão feminino também conta com três séries desde 2022, e mais quatro
campeonatos de futebol feminino foram lançados no ano passado.
"Progredimos muito nesse setor, mas ainda
temos muito a avançar", diz Pessanha.
Quando se trata do futebol nacional, outro
parâmetro importante é o interesse dos patrocinadores pelas equipes, segundo a
pesquisadora.
Quando estreou, em fevereiro de 2023, a atual
edição do Campeonato Brasileiro feminino contava com um apoio externo de
patrocinadores recorde, mas que não chega nem perto dos valores da mesma
competição para homens.
No total, somando as 16 equipes, são 80 patrocínios
presentes no campeonato de mulheres, contra 134 na série A do Brasileirão
masculino.
• Celebrar
as conquistas
Mas segundo Nathalia Pessanha, é importante também
celebrar as conquistas, apesar das adversidades.
"Se analisarmos o panorama de 10 anos atrás,
vemos o quanto progredimos e o quanto a Seleção Feminina tem conquistado",
diz.
Além de ter ganhado seis vezes a Copa América de
Futebol e três Pan-americanos, a brasileira é considerada uma das melhores
seleções de futebol feminino do mundo e sempre está bem posicionada no ranking
da FIFA.
Em 2011, o Brasil ainda encerrou a primeira fase da
Copa do Mundo de Futebol Feminino na Alemanha com 100% de aproveitamento e a
melhor campanha dentre as 8 seleções que se classificaram para a segunda fase:
3 vitórias em 3 jogos, 7 gols marcados e nenhum sofrido
"Se a sociedade entender que a igualdade é
necessária, o desenvolvimento pode acontecer também por meio da pressão social,
seja sobre as entidades esportivas ou sobre as empresas e campanhas de
marketing."
Antes do jogo desta quarta, em uma entrevista
coletiva, Marta também ressaltou a importância do legado.
"Sabe o que é legal? Eu não tinha uma ídola no
futebol feminino. Vocês (imprensa) não mostravam o futebol feminino. Como eu ia
entender que eu poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma
referência? Hoje a gente sai na rua e os pais falam. 'Minha filha quer ser
igual a você'. Hoje temos nossas próprias referências. Não teria acontecido
isso sem superar os obstáculos. É uma persistência contínua."
Marta
anuncia despedida da Copa do Mundo Feminina
Marta se despediu da Copa do Mundo Feminina. A
craque fez nesta quarta-feira, contra a Jamaica, o seu último jogo na história
do torneio. Com o empate sem gols em Melbourne, a seleção brasileira foi eliminada
ainda na fase de grupos.
– Marta acaba por aqui, estou grata pela
oportunidade que tive, e muito contente com tudo isso que vem acontecendo com o
futebol feminino do nosso Brasil e do Mundo. Para mim é o fim da linha agora,
para elas só o começo – disse a jogadora, em entrevista à TV Globo.
Aos 37 anos, Marta fez sua sexta participação em
Mundiais. Com 17 gols, ela é a maior artilheira da história do torneio, entre
homens e mulheres.
– É difícil falar. Não era, nos meus piores
pesadelos, a Copa que sonhava. É só o começo. Povo brasileiro pedia renovação,
está tendo a renovação, a única velha sou eu e talvez a Tamires perto de mim. A
maioria do time é de meninas talentosas com caminho enorme pela frente. Termino
aqui, mas elas continuam – acrescentou Marta.
Pouco depois, a camisa 10 do Brasil falou com o
SporTV e analisou o empate sem gols com as jamaicanas. Para Marta, houve
problemas de comunicação e faltou paciência ao time para trabalhar melhor a
bola perto da área.
– Sabíamos que elas chegariam dessa maneira. Faltou
mais paciência para a gente, os números não mentem: só uma equipe queria jogar.
Elas entraram para se defender e encontrar uma bola para a número 11. Essas
horas precisa de paciência e manter a bola perto da área, porque qualquer
deslize encontraríamos algo, coisas que poderiam ter acontecido. Agora é seguir
em frente – comentou.
Marta também reforçou a necessidade de renovação da
seleção brasileira e de apoio do público geral. Ela também lembrou que em 2024
haverá Jogos Olímpicos.
– Confio no trabalho feito, tenho total convicção
se der continuidade vai dar certo. Temos que nos apegar às coisas positivas, os
familiares, o apoio ao futebol feminino. Entramos como favoritas e não fizemos
o suficiente para sair com a vitória. Temos talento, uma equipe forte, mas não
deu certo hoje. Agora é levantar a cabeça. Elas têm chão pela frente e não pode
jogar pedra no primeiro obstáculo que aparece.
<><> Famosos lamentam eliminação do
Brasil da Copa e exaltam Marta em último mundial
Tais Araújo, Juliana Paes, Paulo Vieira, Astrid
Fontenelle e mais famosos usaram as redes sociais para lamentar a eliminação da
seleção brasileira da Copa de Futebol Feminino na manhã desta quarta-feira (2).
O Brasil enfrentou a Jamaica, e acabou deixando a competição após um empate.
Nas redes, famosos aproveitaram o momento para
exaltar a jogadora Marta, que fez sua última partida de Copas do Mundo.
• Taís
Araújo, atriz
"Não foi o resultado que o Brasil queria, mas
não dá pra negar o avanço significativo no futebol feminino mundial e isso já é
uma grande vitória para as mulheres do planeta inteiro."
"Meninas e mulheres que, ao ver outras iguais
ocupando espaços antes majoritariamente masculinos, conseguem sonhar. E é na
possibilidade que os sonhos se tornam realidade. No placar do jogo não
vencemos, mas vamos seguir apoiando as nossas jogadoras. Não é só sobre torcer,
mas sobre coragem, sobre ser muito brasileiro e não desistir nunca dos nossos
sonhos e dos sonhos das nossas jovens. Cabeça erguida, estamos com vocês,
seleção feminina. E para Marta, a maior de todos os tempos, que se despede das
copas: Você é fenomenal! Dentro e fora de campo! Que legado!"
• Juliana
Paes, atriz
"São tantas vitórias em tantas esferas que a
gente transborda orgulho. É sobre isso. Inspirar e abrir caminho pra outras
tantas. Obrigada, meninas."
• Paulo
Vieira, humorista
"Marta, você sempre será histórica!"
• Astrid
Fontenelle, apresentadora
"Marta Rainha, chorando junto com você. Nem
nos nossos piores sonhos imaginávamos essa derrota. Mas essa derrota não foi
sua. Foi de uma estratégia técnica que deu errado. Infelizmente. Você deve
estar putaça, mas respira. Não é sobre você. Você se despede sem a festa que
merecia, mas foi tão lindo ver a reverência da jovem jogadora jamaicana, o
olhar de admiração do técnico delas… Marta Rainha, sua contribuição pro futuro
do futebol feminino é sólida , pra sempre seu nome será o maior! Marta, você é
uma mulher admirável! Marta Rainha!!! PS: seguirei completando meu álbum de
figurinhas da Copa até encontrar a sua!!!"
Hortência, ex-jogadora de basquete e comentarista
"Valeu Rainha Marta! Você merecia um título
antes de finalizar a sua carreira. Todo meu respeito!"
• Carol
Barcellos, jornalista
"A ela: muito obrigada por tudo, por tanto,
por muitooo!! Marta"
• Maria
Marighella, presidenta da Fundação Nacional de Artes (Funarte)
"Marta gigante! Mais de 20 anos de dedicação,
5 Copas do Mundo, 119 gols pela Seleção Brasileira, eleita 6 vezes a melhor
jogadora do mundo. Nossa maior referência no futebol feminino, dentro e fora do
campo, fala sobre sua última Copa apontando ao futuro e às próximas gerações.
Obrigada por tanto. Viva o futebol feminino brasileiro! Mulheres em todos os
espaços, cantos e campos! Sigamos!"
• Mileide
Mihaile, empresária e influencer
"Essa deixou legado. Muito lindo ver como elas
estão com a mesma garra da Marta. As meninas brilharam muito. Vamos continuar
assistindo, apoiar isso também. Do jeito que a gente ama o futebol masculino, a
gente precisa apoiar com o mesmo amor as meninas."
• Tirullipa,
humorista
"Melhor do que qualquer herança, você nos
deixou um legado, Marta. Obrigado por tudo."
• Patrícia
Abravanel, apresentadora
"Que orgulho de vocês, meninas! Verdadeiras
pioneiras! Hoje são referência para tantas meninas! 'Herança é o que a gente
deixa para as pessoas. Legado é o que a gente deixa nas pessoas.' Marta, você
já é um patrimônio do mundo. Obrigada!"
Fonte: BBC News Brasil/g1
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