Estudo crítico faz balanço de seis meses da Operação Yanomami
Os seis primeiros meses da Operação Yanomami
lançada em janeiro pelo governo federal para combater a desnutrição e os
garimpos dentro da Terra Indígena foram marcados por “importantes avanços”, mas
persistem focos de garimpeiros, um “sentimento de insegurança” e a falta de um “real
controle territorial”. Sem esse domínio completo do território, as ações de
saúde estão prejudicadas.
A conclusão é de um estudo de 43 páginas divulgado
nesta quarta-feira (2) e intitulado “Yamaki ni ohotai xoa! Nós estamos sofrendo
ainda: um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami”, foi realizado
pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye’kwana
(Seduume) e Urihi Associação Yanomami com pesquisadores do ISA (Instituto
Socioambiental), Unifesp e Morzaniel Iramari Yanomami. A íntegra do
levantamento está no link.
Em 30 de janeiro passado, reconhecendo a crítica
situação da saúde no povo Yanomami agravada durante o governo de Jair Bolsonaro
(2019-2022), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou decreto (nº 11.405)
pelo qual listou medidas para enfrentamento da ESPIN (Emergência em Saúde
Pública de Importância Nacional), declarada poucos dias antes pelo Ministério
da Saúde, e do combate ao garimpo ilegal no território Yanomami, em Roraima.
O balanço divulgado pelas organizações indígenas
levanta críticas sobre o papel das Forças Armadas na condução dos trabalhos de
desintrusão dos garimpeiros e de apoio à distribuição das cestas básicas no
território. Ao citar reportagem da Agência Pública de 20 de junho, o estudo menciona
que os militares haviam distribuído, até aquele mês, apenas cerca de 50% de
cestas solicitadas pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
A ação dos militares teve problemas desde o início,
segundo o balanço. No mesmo decreto presidencial, foi criada uma ZIDA (Zona de
Identificação de Defesa Aérea), ou seja, seria em tese o fechamento do espaço
aéreo na terra Yanomami. Mas a medida durou apenas seis dias, pois os militares
cederam à “pressão de parlamentares de Roraima associados ao movimento dos
garimpeiros”. Os militares optaram por criar “corredores” supostamente
“humanitários”, medida que se estendeu por vários meses, até maio.
“Se por um lado essa opção reduziu os custos das
ações de combate à atividade por parte do Estado, por outro permitiu que muitos
financiadores retirassem seus equipamentos da terra indígena sem maiores
prejuízos (veja o número total de aeronaves apreendidas e inutilizadas) e
constrangimentos (com repercussões, inclusive, para as investigações sobre a
ação desses grupos criminosos)”, diz o balanço.
Os “corredores” permitiram que diversos garimpos
continuassem funcionando, inclusive com prostituição infantil, conforme
demonstrou uma ação da polícia que resgatou, em março, uma adolescente de 15
anos vítima de exploração sexual.
“Os próprios agentes do Ibama, responsáveis pelas
operações no terreno, criticaram a manutenção dos corredores por tanto tempo.
Segundo a avaliação dos fiscais, os corredores viabilizaram a manutenção da
exploração econômica por parte de determinados grupos, com consequências
diretas para a segurança dos servidores. Desde que implantaram uma barreira no
rio Uraricoera, já foram registrados pelo menos cinco ataques por parte de
garimpeiros fortemente armados que tentaram romper o bloqueio do rio”, lembrou
o balanço das entidades indígenas.
“Embora as ações de Proteção Territorial iniciadas
em fevereiro de 2023, baseadas sobretudo na estratégia de ‘estrangulamento
logístico’, tenham produzido importantes avanços no combate ao garimpo ilegal
na TIY, alguns pontos como a flexibilização do controle aéreo por dois meses, a
limitação dos esforços de controle territorial a somente duas bases de
proteção, e a participação limitada das forças armadas, não possibilitaram o
real controle da atividade, que ainda persiste em alguns núcelos de resistência
na TI. Tal situação, faz com que o sentimento de insegurança ainda esteja
presente no território e impede o avanço das ações de saúde para regiões
sensíveis. Junto da falta de profissionais de saúde disponíveis e do baixo
investimento em infraestrutura nas UBSIs essas são as principais razões
apontadas por pessoas que estão atuando no terreno para a dificuldade de se
retomar o atendimento regular, com qualidade nas aldeias.
Os indicadores de saúde, com efeito, não deixam
dúvidas sobre os resultados tímidos do governo nesse tema. A ausência de uma
coordenação das ações do governo no território Yanomami é também um dos
principais fatores que explicam muitos problemas descritos neste relatório”.
De acordo com o documento, recentemente “o
Ministério Público Federal (MPF) também publicou um documento que analisa a
trajetória das mortes evitáveis entre crianças menores de cinco anos na TI
Yanomami. De acordo com o órgão, esse tipo de óbito quase dobrou nos últimos 8
anos, com picos em 2020 e 2022. E, quando se analisa o recorte de óbitos nessa
faixa etária, tendo como causa da morte principal a desnutrição, verifica-se
que no último quadriênio o total de mortes praticamente duplicou em relação aos
quatro anos anteriores”.
Políticos,
militares e traficantes: quem atrasa a expulsão dos garimpeiros da terra
Yanomami?
“Não sei como seria hoje se Bolsonaro fosse
reeleito. Eu acho que a terra Yanomami e o povo Yanomami estariam
exterminados”, avalia Maurício Ye’kwana, integrante da Hutukara Associação
Yanomami, principal entidade representativa do território. A liderança
considera que o fim do governo de Jair Bolsonaro foi fundamental para
interromper o genocídio indígena provocado pelo garimpo. O desmatamento caiu, o
atendimento de saúde foi ampliado e parte significativa dos invasores já deixou
a terra indígena. As fendas e crateras abertas na floresta para extrair minério
já não avançam mais.
Mas um relatório inédito lançado por associações
Yanomami e Ye’kwana nesta quarta-feira (2) afirma que invasores ainda persistem
no território, provocando instabilidade e insegurança. O documento é assinado
por Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye’kwana
(SEDUUME) e Urihi Associação Yanomami. As organizações indígenas explicam como
políticos, militares e facções criminosas contribuem para tumultuar e atrasar
ainda mais o processo de expulsão dos garimpeiros, que se arrasta desde
fevereiro deste ano. E apontam caminhos para aperfeiçoar e ampliar ações de
saúde, ajuda humanitária e restabelecimento de segurança alimentar, sem as
quais será impossível reconstruir o modo de vida dos habitantes que ocupam a
região há mil anos.
“Talvez você possa considerar 70% de evolução
positiva depois de 6 meses. Mas ainda precisa ser olhado mais para dentro da
terra Yanomami. [A gestão federal] precisa ter esse diálogo com as organizações
indígenas. Porque só o governo entrando lá dentro e tentando fazer algo não vai
conseguir fazer. Não sem a presença das organizações indígenas que estão ali”,
defende Maurício Ye’kwana.
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI)
reconheceu que ainda há questões a serem resolvidas envolvendo a Terra Indígena
Yanomami, mas afirmou que a reconstrução dos estragos que foram feitos ao longo
de anos de descaso leva algum tempo. “Ainda assim, podemos afirmar que o
tratamento dispensado não só aos Yanomami, mas a todos os povos indígenas, já
mudou para melhor”, salientou o MPI.
• Forças
Armadas “pouco colaborativas”
Intitulado “Nós estamos sofrendo ainda: um balanço
dos primeiros meses da emergência Yanomami”, o relatório lembra que o governo
começou a distribuir cestas básicas para as comunidades Yanomami no início do
ano, que sofriam com desnutrição severa. Em fevereiro, a Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai) elaborou uma nota técnica prevendo a entrega de mais de
50 mil cestas no primeiro semestre.
O transporte dos alimentos ficou sob a
responsabilidade das Forças Armadas, por meio de aeronaves militares. No
entanto, apenas 50% do previsto foi entregue aos indígenas, conforme revelou
reportagem da Agência Pública.
“Essa situação impediu, por exemplo, que algumas
regiões mais remotas recebessem esse apoio. Nesse caso, a participação do
Exército mais atrapalhou do que ajudou na ajuda humanitária”, avalia o geógrafo
e pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) Estêvão Senra, que atua junto
aos Yanomami há uma década e deu suporte técnico à produção do relatório. Ele
considera a postura das Forças Armadas “pouco colaborativa”.
Como previa o decreto presidencial que inaugurou as
operações no território, o papel das Forças Armadas estava restrito ao apoio
logístico. Com reações violentas de garimpeiros armados, as medidas de
repressão ficaram, portanto, a cargo do Ibama, da Funai e da Força Nacional. Até
mesmo a Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi chamada para atuar dentro da terra
indígena, a centenas de quilômetros da rodovia federal mais próxima.
Sem aeronaves militares para transportar os
agentes, ficou mais difícil reprimir o garimpo em toda a extensão da terra
indígena Yanomami, que tem o tamanho de Portugal. Só em junho as Forças Armadas
foram autorizadas pelo governo federal a localizar e prender os invasores.
“Eles [militares] também não ajudaram na manutenção
das pistas de pouso [dentro da terra indígena]. Apresentaram uma conta
caríssima para a Funai para fazer a manutenção dessa pistas. Na pista em que
eles fizeram manutenção, da região de Surucucu, demorou meses para concluir
reparos. Isso atrasou a construção do centro de referência em saúde”,
acrescenta o geógrafo.
Outro ponto crítico apontado pelo relatório foi a
falta de coordenação entre os órgãos governamentais, especialmente da Casa
Civil, responsável por convocar diferentes setores – inclusive as Forças
Armadas – para ações integradas. A ausência de uma abordagem coordenada
dificultou, segundo o relatório das organizações indígenas, a realização de
ações conjuntas, priorização de alvos e garantia de assistência adequada às
comunidades vulneráveis.
• “Narcogarimpo”,
o “maior medo”
Sem saber precisar a proporção exata, Maurício
Ye’kwana, da Hutukara Associação Yanomami, afirma que a maioria dos invasores
já deixaram o território. “Quem está resistindo agora são mais aqueles
garimpeiros simples. O que nos preocupa são as facções criminosas”, diz a
liderança indígena.
O “narcogarimpo” na terra indígena Yanomami já é
uma realidade conhecida de agentes do Ibama e da Polícia Federal (PF) com
atuação em Roraima. As relações entre mineradores ilegais e facções se
estreitaram durante o governo Bolsonaro, fruto do quase total desmonte da
fiscalização ambiental. A extração de minérios se tornou uma forma de obter
lucro fácil e de lavar dinheiro do crime organizado.
“À medida que cresce e se expande para novas áreas,
o garimpo recorre às milícias fortemente armadas associadas a facções
criminosas para poder se impor e garantir o controle territorial. De modo que
os Yanomami e Ye’kwana ficam impedidos de circularem livremente pela Terra
Indígena sob o risco de serem assassinados. Nesse contexto, ameaças de morte e
humilhações são frequentes”, narra o relatório das organizações indígenas.
“O que pode acontecer é futuramente eles [facções]
aliciarem os jovens Yanomami. Eles usarem os indígenas como usuário de drogas,
oferecer grandes armamentos pesados para eles. O garimpo e esse crime
organizado influencia os jovens. Esse é o nosso medo maior”, relata Maurício.
• Políticos
ligados ao garimpo interferiram
O balanço semestral do socorro aos Yanomami lembra
que parlamentares de Roraima que representam os interesses dos garimpeiros
tentaram interferir na logística da expulsão. A pressão dos políticos conseguiu
minar uma estratégia que, segundo as organizações indígenas, estava dando
certo: o fechamento do espaço aéreo. Proibida a circulação de aeronaves, as atividades
garimpeiras seriam rapidamente estranguladas pela falta de insumos.
“A Operação ‘Escudo Yanomami’, entretanto, só
conseguiu manter a restrição total de voos do garimpo por seis dias, após
pressão de parlamentares de Roraima associados ao movimento dos garimpeiros”,
diz o documento. Um dos políticos é o senador Chico Rodrigues (PSB-RR), notório
defensor dos mineradores ilegais no Congresso. Ele defendeu e conseguiu que
aeronaves particulares fossem autorizadas a entrar para retirar os invasores. A
aeronáutica abriu três “corredores aéreos” por três meses, para que os
garimpeiros saíssem espontaneamente.
“Se por um lado essa opção reduziu os custos das
ações de combate à atividade por parte do Estado, por outro, permitiu que
muitos financiadores retirassem seus equipamentos da Terra Indígena, sem
maiores prejuízos (veja o número total de aeronaves apreendidas e inutilizadas)
e constrangimentos (com repercussões, inclusive, para as investigações sobre a
ação desses grupos criminosos)”, afirma o documento elaborado pelas
organizações indígenas.
“Há rumores de que alguns dos principais “donos” de
garimpos tiveram perdas tímidas com as ações e que deslocaram a sua operação
para a Guiana, aguardando os esforços de Proteção da Terra Indígena diminuírem
para retornarem”, prossegue o relatório.
• Outro
lado
O Brasil de Fato procurou as Forças Armadas, mas
não obteve resposta.
>>>> Veja na íntegra o posicionamento
do Ministério dos Povos Indígenas:
“O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) reconhece
que ainda há questões a serem resolvidas envolvendo a Terra Indígena Yanomami,
mas a reconstrução dos estragos que foram feitos ao longo de anos de descaso
leva algum tempo. Ainda assim, podemos afirmar que o tratamento dispensado não
só aos Yanomami, mas a todos os povos indígenas, já mudou para melhor.
A ida de uma comitiva governamental para o Fórum de
Lideranças da Terra Indígena Yanomami e Ye’kwana, em julho, fato inédito até
então, é um sinal claro dessa mudança de tratamento. Pela primeira vez na
história, o Governo Federal foi a um território indígena escutar das lideranças
as suas demandas para elaboração de planos de gestão territorial e ambiental,
entre outros pedidos relacionados ao acesso a saúde, educação e outros
direitos.
Uma forma de quantificar essa mudança é olhar
alguns dados referentes à Operação Yanomami, iniciada em fevereiro, e que
envolve 18 órgãos do Governo Federal em 233 ações emergenciais e estruturais
que vão até 2026. Desde o início da ação, mais de 8,2 mil atendimentos médicos
foram realizados, envolvendo 765 profissionais de saúde, que foram responsáveis
por distribuir mais de 3 milhões de medicamentos, testes e outros insumos de
saúde. Foram distribuídas mais de 12 toneladas de alimentos.
A atuação também resulta na expulsão de garimpeiros
ilegais da região e retirada da infraestrutura de garimpo, com destruição de 76
balsas, desmobilização de 362 acampamentos e mais de 50 prisões. Outra
indicação de melhora na situação foi dada pela Polícia Federal, que, em junho,
informou que não ocorreram mais alertas de garimpo ilegal na região, algo não
registrado desde o início do monitoramento por satélite em 2020.
O MPI segue empenhado em reestabelecer a dignidade
e garantir a integridade dos Yanomami e de seu território.”
Fonte: Por Rubens Valente, da Agencia
Pública/Brasil de Fato
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