quinta-feira, 6 de julho de 2023

Os dilemas de usar inteligência artificial para trazer pessoas mortas de volta à vida

Uma campanha publicitária que mostra a falecida Elis Regina e sua filha Maria Rita fazendo um dueto provocou reações antagônicas nas redes sociais.

Na peça da montadora Volkswagen, a cantora que morreu na década de 1980 foi trazida de volta à vida usando Inteligência Artificial (IA). Ela aparece dirigindo uma Kombi e cantando Como Nossos Pais, de Belchior.

Enquanto muitos fãs e internautas elogiaram e se emocionaram com a propaganda, outros questionaram se é ético usar a imagem de uma pessoa que não está mais viva em um contexto fictício.

À BBC News Brasil, o sociólogo e coordenador de impacto do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP) Glauco Arbix afirmou que o assunto é de fato controverso, seja porque suscita debates sobre os efeitos psicológicos de trazer pessoas mortas à vida usando tecnologia ou porque toca em questões como consentimento, veracidade e finitude da vida.

Para Arbix, há muitos riscos em usar IA de forma não transparente, informada ou consciente, especialmente quando há um deslocamento espacial ou atribuição de declarações inverídicas à pessoa retratada.

"Não é porque você pode fazer que deve fazer", diz. "Uma coisa é você guardar na sua gaveta um filme de alguém que morreu para assistir algumas vezes, outra coisa é recriar (a imagem dela) em condições novas, como se ela ainda estivesse viva."

Segundo o professor da USP, nossa sociedade não está pronta para lidar com esse deslocamento espacial e circunstancial de figuras já falecidas e fazer isso pode ser "perturbador" para algumas pessoas.

"A finitude da vida está sedimentada na história social. Mesmo para aqueles que creem em vida após a morte, é algo sempre mais inacessível e distinto do que vemos agora, para o que não estamos prontos como sociedade."

A BBC Brasil procurou a Volkswagen para um posicionamento sobre o tema, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

·         'Pode destruir nome e reputação'

A campanha da Volkswagen não foi a primeira a usar a inteligência artificial para encenar realidades com pessoas já mortas.

No filme Rogue One: Uma História Star Wars, a atriz Carrie Fisher também foi recriada digitalmente para aparecer como a jovem Princesa Leia.

Em junho, o músico Paul McCartney disse que a inteligência artificial havia sido usada para que a voz de John Lennon - morto em 1980 e de quem ele foi parceiro na banda Os Beatles - pudesse ser usada numa nova música.

A tecnologia, também conhecida como deepfake, é usada com frequência ainda para criar vídeos falsos envolvendo celebridades e figuras políticas.

No caso da propaganda da montadora, a inteligência artificial foi treinada especificamente para reconhecimento facial de Elis Regina, diferentemente do que é feito em projetos de IA que utilizam tecnologia pré-treinada a partir de dados genéricos.

Segundo a empresa, a IA recebeu extensivos treinamentos com diferentes tecnologias, combinando a atuação da dublê com os movimentos e imagens de Elis, para chegar ao resultado do rosto da cantora na propaganda.

Para Arbix, apesar do vídeo da Volkswagen ter sido feito com autorização e participação da filha de Elis Regina, essa tecnologia também pode ser usada para fins perigosos, distorcendo fatos, e até na indústria da pornografia ou pedofilia.

"A pessoa pode ficar sujeita a uma recriação que pode acabar destruindo o seu nome e sua reputação", diz. "Mas também suscita questões do ponto de vista da integridade da vida familiar."

Segundo o sociólogo, ainda não há um consenso entre a comunidade médica sobre os efeitos psicológicos de ver ou até conversar por meio da IA com entes queridos que já faleceram.

Diversas empresas de tecnologia, entre elas a americana HereAfter AI, têm desenvolvido tecnologias para criação de uma versão digital de alguém. Dessa forma, seria possível criar um diálogo artificial com uma pessoa falecida usando informações pessoais, ferramentas de voz e inteligência artificial avançada.

"Do ponto de vista da psicologia, há quem diga que pode ajudar a manter a memória e trazer conforto para a família. Mas há também quem seja totalmente contra", diz Glauco Arbix.

E há até quem já esteja tentando se proteger disso. O ator Robin Williams, que morreu em 2014, impôs uma restrição ao uso de sua imagem por 25 anos após seu falecimento em seu testamento.

Segundo as informações divulgadas, o americano queria evitar que sua figura fosse reproduzida por meio de hologramas ou outras tecnologias para fins comerciais.

·         Direito de imagem e consentimento

Quando se trata do direito de imagem ou do consentimento, o sociólogo Glauco Arbix afirma acreditar que a lei brasileira já tem todos os conflitos bem resolvidos.

"A legislação e a maneira como nossa sociedade vê isso atualmente já dão conta do dilema. As famílias têm os direitos autorais", afirma.

"Discutir se, por exemplo, a Elis Regina autorizaria o uso da imagem dela nessa propaganda é ingênuo, porque ela também não autorizou a divulgação de fotos, mas essa questão está prevista na legislação."

Já para Sara Suárez-Gonzalo, professora da Universidade Aberta da Catalunha e pesquisadora do tema, o debate deve ir mais além. Para ela, o consentimento de familiares não é suficiente em casos como esse.

"Mesmo quando morrem, as pessoas não são meras coisas com as quais os outros podem fazer o que quiserem. É por isso que nossas sociedades consideram errado profanar ou desrespeitar a memória dos mortos. Em outras palavras, temos certas obrigações morais para com os mortos, na medida em que a morte não implica necessariamente que as pessoas deixem de existir de forma moralmente relevante", afirmou em um artigo publicado no site The Conversation.

Segundo Suárez-Gonzalo, o debate é ainda mais complexo quando envolve bots que coletam dados pessoais para reproduzir conversar com pessoas falecidas, pois replicar a personalidade de alguém "requer grandes quantidades de informações pessoais, como dados de redes sociais que revelam características altamente sensíveis".

A pesquisadora afirma ainda que outra questão ética envolvida no uso da IA é a responsabilização pelos resultados da tecnologia, especialmente no caso de efeitos nocivos.

Se um bot, vídeo ou imagem criado com a tecnologia, por exemplo, causar danos à saúde mental de um familiar, quem se responsabiliza?

"É essencial abrir um debate público que possa informar melhor os cidadãos e nos ajudar a desenvolver medidas políticas para tornar os sistemas de IA mais abertos, socialmente justos e compatíveis com os direitos fundamentais", diz no artigo.

 

Ø  Por que garantir segurança da inteligência artificial não é tão fácil como se pensa

 

Especialistas em inteligência artificial geralmente seguem uma das seguintes escolas de pensamento: a inteligência artificial vai melhorar muito nossas vidas ou vai destruir todos nós. Então como garantir segurança?

A seguir, confira cinco dos desafios que temos pela frente — e como o tema tem sido tratado na Europa.

·         1. Chegar a um acordo sobre o que é inteligência artificial

O Parlamento Europeu levou dois anos para chegar à definição de um sistema de inteligência artificial — software capaz de, "para um determinado conjunto de objetivos definidos pelo ser humano, gerar resultados como conteúdo, previsões, recomendações ou decisões que influenciam os ambientes com os quais eles interagem".

Nesta semana, o Parlamento Europeu está votando o projeto de lei sobre a regulamentação da Inteligência Artificial — as primeiras normas legais sobre a tecnologia, que vão além de um código de conduta voluntário, exigindo que as empresas as cumpram.

·         2. Alcançar um consenso global

A ex-chefe do Escritório de Inteligência Artificial do Reino Unido, Sana Kharaghani, observa que a tecnologia não respeita fronteiras.

"Precisamos ter colaboração internacional nisso — sei que vai ser difícil", disse ela à BBC News. "Este não é um assunto doméstico. Essas tecnologias não ficam dentro das fronteiras de um país."

Mas ainda não há um plano para um órgão regulador global de inteligência artificial, no estilo das Nações Unidas — embora alguns tenham sugerido isso —, e diferentes territórios têm ideias distintas sobre o tema.

As propostas da União Europeia são as mais rígidas e incluem classificar os produtos de inteligência artificial dependendo do seu impacto — um filtro de spam para e-mail, por exemplo, teria uma regulamentação mais leve do que uma ferramenta de detecção de câncer.

O Reino Unido, por sua vez, está repassando a regulamentação da inteligência artificial ​​aos reguladores existentes — aqueles que dizem que a tecnologia os discriminou, por exemplo, são direcionados à Comissão de Igualdade.

Já os Estados Unidos têm apenas códigos de conduta voluntários, e os legisladores admitiram recentemente, durante uma audiência do comitê de inteligência artificial, que estavam preocupados se ele estava dando conta do recado.

A China pretende fazer com que empresas notifiquem os usuários sempre que um algoritmo de inteligência artificial estiver sendo usado.

·         3. Garantir a confiança do público

"Se as pessoas confiarem, elas vão usar", disse o chefe de assuntos regulatórios e governamentais da União Europeia na IBM, Jean-Marc Leclerc.

Há grandes oportunidades para a inteligência artificial melhorar a vida das pessoas de maneiras incríveis. Entre elas, estão:

- Ajudar a descobrir antibióticos;

- Fazer pessoas com paralisia voltarem a andar;

- Tratar de questões como mudanças climáticas e pandemias.

Mas e a triagem de candidatos a vagas de emprego ou a previsão da chance de alguém cometer um crime?

O Parlamento Europeu quer que o público seja informado sobre os riscos associados a cada produto de inteligência artificial.

As empresas que infringirem suas regras podem ser multadas em até 30 milhões de euros (aproximadamente R$ 157 milhões) — ou 6% do faturamento anual global.

Mas será que os desenvolvedores são capazes de prever ou controlar como seu produto pode ser usado?

·         4. Decidir quem redige as regras

Até agora, a inteligência artificial tem sido amplamente autopoliciada.

As grandes empresas dizem que estão de acordo com a regulamentação do governo — "fundamental" para mitigar os riscos potenciais, de acordo com Sam Altman, chefe da OpenAI, criadora do ChatGPT.

Mas será que elas vão colocar os lucros acima das pessoas caso se envolvam demais na redação das regras?

Você pode apostar que elas querem estar o mais próximo possível dos legisladores encarregados de estabelecer os regulamentos.

E Martha Lane Fox, fundadora do Lastminute.com, diz que é importante ouvir não apenas as corporações. "Devemos envolver a sociedade civil, a academia, as pessoas que são afetadas por esses diferentes modelos e transformações", afirma.

·         5. Agir rápido

A Microsoft, que investiu bilhões de dólares no ChatGPT, quer que ele "tire a parte penosa do trabalho".

Ele pode gerar respostas de texto de forma semelhante a humanos, mas, Altman observa, é "uma ferramenta, não uma criatura".

Os chatbots deveriam tornar os profissionais mais produtivos.

Em algumas indústrias, a inteligência artificial tem a capacidade de gerar empregos e ser uma assistente formidável. Em outras, no entanto, trabalhadores podem perder seus empregos — no mês passado, a BT (empresa de telecomunicação britânica) anunciou que a inteligência artificial substituiria 10 mil postos de trabalho.

O ChatGPT está em uso público há pouco mais de seis meses. Agora, ele pode escrever artigos, planejar férias e passar em exames profissionais.

A capacidade desses modelos de linguagem em larga escala está crescendo a um ritmo fenomenal.

E dois dos três "padrinhos" da inteligência artificial ​​— Geoffrey Hinton e Yoshua Bengio — estão entre os que alertam que a tecnologia tem um enorme potencial de danos.

A Lei de Inteligência Artificial, na Europa, não vai entrar em vigor pelo menos até 2025 —"muito tarde", segundo a chefe de tecnologia da União Europeia, Margrethe Vestager.

Ela está formulando um código voluntário provisório para o setor, junto aos Estados Unidos, que pode ficar pronto dentro de semanas.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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