Eólica e termelétrica tiraram as terras e o sustento de comunidade
pesqueira em Sergipe
No encontro do rio com o mar, no município da Barra
dos Coqueiros, em Sergipe, está o sustento de diversas famílias pesqueiras,
agricultoras e extrativistas. Porém, elas têm sido ameaçadas e expulsas de seus
territórios por grandes empreendimentos energéticos, entre eles o Parque Eólico
de Sergipe e a Usina Termoelétrica Porto de Sergipe I, considerada a maior
termelétrica a gás natural da América Latina.
Barra dos Coqueiros, conhecido também como Ilha de
Santa Luzia, tem aproximadamente 41 mil moradores e localiza-se a três
quilômetros da capital Aracaju. Ambos os municípios são separados pelo rio
Sergipe, fonte de subsistência de comunidades pesqueiras e marisqueiras. As
encostas do rio são ambiente ideal para o plantio de espécies da restinga, a
exemplo da mangaba, fruta símbolo do estado, que também é fonte de renda para
os moradores locais, assim como a coleta de cocos. Essas atividades estão sendo
ameaçadas pelos impactos dos empreendimentos energéticos, bem como pela
liberação desenfreada dos condomínios de luxo no território.
De acordo com informações da prefeitura da Barra
dos Coqueiros, somente neste primeiro semestre de 2023, seis licenças
ambientais já foram liberadas para novas construções de condomínios e 14 estão
em vias de liberação.
“Você viu a torre [eólica] dentro do mangue?
Cercaram tudo ali, acabaram com as várzeas, não tem mais nada que dê para a
gente pescar, catar marisco”, diz Bruno*, morador da comunidade Cajueiro. Os
moradores de comunidades pesqueiras de Barra dos Coqueiros pediram para ter sua
identidade preservada por medo de represálias. Eles afirmam que vivem sob
constante ameaças por representantes do parque eólico e da usina e do poder
público local (especificamente a Secretaria do Meio Ambiente). Há denúncias de
ameaças verbais, corte de energia elétrica, cerceamento com construção de
cercas, por parte do secretário de Meio Ambiente do município da Barra dos Coqueiros,
Edson Aparecido, que em alguns momentos teria chegado acompanhado de policiais.
“Volta e meia Edson [Aparecido, secretário de Meio
Ambiente] aparece aqui com policiais, sem avisar nada, fizeram isso na hora que
mandaram cortar a energia, vieram com os carros de polícia e mandaram cortar”,
afirma o morador André*. “Falam que a gente tem que sair daqui e chegaram a nos
encurralar com essa cerca. Só tem porteira porque nós batemos o pé, senão não
teríamos como entrar ou sair da nossa comunidade, eles queriam botar cerca em
tudo aqui, mas aí a gente não ia ter como sair. Sempre que começamos uma
reforma em alguma casa, ele vem e manda parar, porque diz que não pode, que em
breve teremos que liberar a área. Nós todos aqui temos plantações, temos
quintais produtivos, criamos animais, aqui também é local de trabalho e
produção”, diz Paulo*, também morador da comunidade Cajueiro.
A cerca citada pelo morador está localizada no
entorno da comunidade, margeando a fronteira entre as casas e a pista. De
acordo com a própria comunidade, ela foi construída por funcionários da
Prefeitura da Barra dos Coqueiros, sob a alegação de “protegê-los dos perigos
da pista”.
“Eu e minha família toda circulava pelo mangue,
pelos sítios, todo mundo ia lá, tirava o que comer, o seu sustento das frutas,
dos catados, e ninguém passava necessidade porque a gente tirava da terra e do
mangue. Hoje, tudo isso se acabou. A gente não pode entrar, senão é capaz de
morrer ali mesmo”, diz Bruno, se referindo à ostensiva segurança armada que protege
os limites do empreendimento.
• Ponto
estratégico
Barra dos Coqueiros é um ponto estratégico para a
instalação de grandes empreendimentos energéticos porque por lá também se
localiza o Terminal Marítimo Inácio Barbosa (TMIB), popularmente conhecido como
Porto de Barra dos Coqueiros, de onde são operadas cargas como madeira, uréia,
trigo, fertilizantes e produtos da indústria alimentícia. O porto também serve
de apoio para a Petrobras nas atividades de exploração e produção de petróleo.
A usina eólica foi construída próximo ao porto, em
2012, ainda na faixa litorânea. São 23 turbinas com capacidade de 1,5MW de
geração, que ocupam uma área de 300 hectares, doada à Companhia Controladora
Desenvix Energias Renováveis (Desenvix) pelo governo do Estado de Sergipe, sob
a gestão do ex-governador Marcelo Déda (PT). A doação foi realizada através do
Programa Sergipano de Desenvolvimento Industrial (PSDI), regulamentado pela Lei
nº 3.140/1991, que autoriza a concessão de “apoio a empreendimentos da
iniciativa privada, considerados necessários e prioritários para o
desenvolvimento do Estado”.
Logo ao lado do parque eólico está a Usina
Termoelétrica Porto de Sergipe I. Construída pelas Centrais Elétricas de
Sergipe (Celse), empresas que venceram um leilão de energia, a usina tem
potência de 1,5 GW e é considerada a maior termelétrica a gás natural da
América Latina. Foi inaugurada em agosto de 2020 e atende a cerca de 15% da
demanda de energia da região Nordeste, o equivalente a 16 milhões de pessoas.
Ela ainda fornece energia elétrica para 26 distribuidoras espalhadas pelo
Brasil, de acordo com informações divulgadas pela própria Celse. Dois anos após
a sua inauguração, a termelétrica foi comprada pela empresa Eneva, em uma
transação estimada em R$ 6 bilhões de reais.
A Eneva é uma remanescente do chamado “Império X”,
o conglomerado de empresas fundadas por Eike Batista nas áreas de petróleo,
gás, logística e distribuição, energia e mineração, entre outras. A empresa,
que nasceu de um processo de recuperação judicial da MPX, foi adquirida pelo
BTG Pactual em consórcio com a Cambuhy Investimentos, empresa de investimentos
do banqueiro Pedro Moreira Salles. Atualmente é considerada uma das maiores
geradoras do país, avaliada em R$ 18,5 bilhões, segundo levantamento da Revista
Exame.
Com a instalação do parque e da usina, parte da
comunidade de Cajueiro foi movida para o povoado Capuã, distante 12
quilômetros. “Na época da instalação, eles pegaram uma parte do manguezal e
desmataram . Isso foi denunciado à Adema (Administração Estadual do Meio
Ambiente), saiu no jornal, e a Adema disse sabe o quê? Que isso estava previsto
na licença, ou seja, se tem dinheiro, pode devastar o que quiser. Não
consideram o conhecimento das comunidades. Imagine você tirar essas famílias de
seus modos de vida e colocar em um lugar onde elas terão que mudar suas
práticas. Qual é o valor disso?”, questiona uma das moradoras, que pediu para
falar em sigilo.
• Poluição
e impactos na saúde
Os moradores de Barra dos Coqueiros reclamam de
maus odores, que seriam decorrentes da poluição causada pelos empreendimentos.
Mais de dez pessoas entrevistadas apontam que, desde os primeiros meses após a
instalação da termelétrica, um cheiro forte invade o ambiente, causando
desconfortos nos moradores. “Tem noites que a gente não consegue dormir, devido
ao cheiro forte que se instala. A gente não sabe se é de enxofre ou se é um
gás, mas é muito forte”, relata Luiza*, moradora de Cajueiro.
As pessoas de Cajueiro alegam nunca terem sido
chamadas para nenhuma reunião ou audiência pública referente à construção dos
empreendimentos, conforme determina a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, eles afirmam que estão sendo
constantemente ameaçados tanto por agentes públicos quanto por representantes
das empresas. De acordo com os relatos, as ameaças se intensificaram após a
instalação da placa de construção do Parque Estadual Marituba no local,
regulamentado pelo Decreto nº 40.515/2020, do Governo do Estado. O Parque é
alardeado pelo Governo de Sergipe como um novo espaço criado para a proteção
dos ecossistemas costeiros, realização de pesquisa científica, educação
ambiental, ecoturismo e visitação pública.
• Cultivo
da mangaba está ameaçado
Fruta símbolo de Sergipe, a mangaba é a primeira
fonte de renda para aproximadamente 38% das localidades catadoras do estado,
segundo estudo da Embrapa, realizado em 2017. No município de Barra dos
Coqueiros, todas as 50 famílias entrevistadas para o levantamento viviam da
mangaba e da pesca.
“A gente já não cata mais na Barra dos Coqueiros,
pois a maioria das áreas que tinha mangabeira foram derrubadas com autorização
da Adema, e as que sobraram, disseram que a gente não entra mais. Antes da
ponte e das construções do parque e da usina, a gente catava livremente,
ninguém nem se importava, a gente nem sabia se tinha dono ou não. Hoje, a
maioria das áreas foi derrubada e as poucas que restaram, não podemos mais
entrar”, lamenta a moradora Paula*, que era catadora de mangaba. “Nas várzeas
onde a gente pegava piaba e camarão de água doce, não dá mais para pegar nada.
Os empreendimentos aterram as áreas”, conta.
A mesma pesquisa realizada pela Embrapa estima que
Sergipe já perdeu 90% das áreas originais de mangaba. Houve uma diminuição nas
áreas naturais de ocorrência de mangabeira em quase 30%, em apenas 6 anos,
entre 2010 e 2016.
Os resultados do mapeamento indicam que os modos de
vida das catadoras de mangaba de Sergipe estão ameaçados, diante da perda dos
seus territórios, como acontece em Barra dos Coqueiros. Há dispositivos legais
em vigor para proteger a atividade das catadoras de mangaba, como a Lei
Estadual 7.082/2010, que reconhece as profissionais como grupo culturalmente
diferenciado, mas esses instrumentos não têm não foi suficientes para deter o
desmatamento das mangabeiras nativas e a consequente extinção da prática
extrativista.
O professor do Departamento de Engenharia Elétrica
(DEL) e integrante do Laboratório de Eficiência Energética e Energias
Renováveis (LEER) da Universidade Federal de Sergipe, Milthon Serna Silva, que
participou do processo de instalação dos empreendimentos defende que os
benefícios dos empreendimentos sobrepõem os impactos causados.
“Como todo tipo de fonte de energia, há sempre
pontos positivos e negativos. Mas, em se tratando de energia eólica, os
impactos são menores, ou seja, apenas os da instalação, que demora de seis
meses a um ano. No caso da Barra dos Coqueiros, praticamente não houve impacto,
até porque a maior parte do território onde o parque foi instalado é composto por
areia. Essa área já foi pensada para que tivesse algum tipo de empreendimento,
havia uma série de conveniências”, O professor diz que, na época que a usina
foi construída, participou de alguns encontros com os antigos moradores. “Era
uma área que tinha pescadores, e a empresa se comprometeu e realizou conversas
com a comunidade, inclusive na época da construção, boa parte dos moradores
foram contratados para trabalhar lá”, afirma Silva.
Os moradores de Barra, entretanto, afirmam que não
foram ouvidos. Imagens aéreas produzidas com drone pela reportagem mostram
muitas áreas desmatadas. Além disso, com a construção da Usina e do Parque
Eólico, cerca de 200 famílias que habitavam o povoado Recanto dos Cajueiros I,
tiveram que ser realocadas para o povoado Capuã e para o Recanto dos Cajueiros
II, onde aproximadamente 200 casas foram construídas pelas empresas, como
contrapartida. As imagens de drone mostram que as casas construídas pelas
empresas no povoado Capuã não possuem sequer um quintal para o plantio de
árvores frutíferas, que poderiam servir a subsistência das famílias
agricultoras.
• Estratégia
é transformar Sergipe em pólo energético
Sergipe atualmente é publicizado como o “destino
estratégico para empreendimentos que querem aproveitar a capacidade energética
e o ambiente político e econômico altamente favorável para empreender”,
principalmente pelo governador Fábio Mitidieri (PSD). Assim ele anunciou o
Estado no “Sergipe Day”, um evento realizado em abril deste ano, na Federação
das Indústrias de São Paulo (SP), com a participação de grandes grupos
empresariais da área de petróleo e gás no Brasil. À frente do evento estavam o
governador e seu aliado, o senador Laércio Oliveira (PP). Empresários, ambos
têm uma atuação forte no rumo da privatização dos serviços públicos e estão
empenhados em transformar o Estado na “nova fronteira do gás no Brasil”,
nacional e internacionalmente.
O governador Fábio Mitidieri, cuja família é
proprietária de planos de saúde e escolas particulares em Sergipe, é autor do
PL 150/2023, o “Programa de Parcerias Estratégicas do Estado”, que autoriza o
Estado de Sergipe a fazer concessões com a iniciativa privada. O PL foi
aprovado na Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese) no mês de abril deste
ano.
Em maio deste ano, Mitidieri e Laércio participaram
do 5º Encontro dos Brasileiros 2023 da FGV Energia e a Offshore Technology
Conference (OTC 2023), a maior feira de petróleo e gás do mundo, nas cidades de
Houston e Nova Iorque, nos Estados Unidos. Além deles, também integrou a comitiva
o vice-governador Zezinho Sobral, que é Secretário de Estado da Educação e
presidente do Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI).
No mesmo mês, Mitidieri recebeu no Palácio Museu
Olímpio Campos, sede do governo estadual, representantes de empresas de
terceirização de mão de obra que prestam serviço à Carmo Energy, voltada ao
setor de petróleo e gás, no município de Carmópolis. A pauta foi a construção
do gasoduto de interligação do Terminal de Armazenamento e Regaseificação de
GNL da Eneva – proprietária da usina termelétrica instalada em Barra dos
Coqueiros – à malha da Transportadora Associada de Gás (TAG). Já no mês de
junho, a Eneva se destacou como uma das patrocinadoras do “Arraiá do Povo”,
festejo junino organizado pelo Governo do Estado com duração de 30 dias.
Para a engenharia agronômica e Mestre em
Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Sergipe (UFS),
Marina França Lelis Bezerra, que desenvolveu sua pesquisa de mestrado sobre
conflitos nas comunidades de Barra dos Coqueiros, envolvendo a dinâmica dos
catadores de mangaba, tanto a relação de proximidade das empresas energéticas
com entes do governo quanto às queixas dos moradores demonstram que a região de
Barra dos Coqueiros é palco de um conflito socioambiental envolvendo três
atores específicos: as comunidades tradicionais, as construtoras e outras
empresas privadas que interferem no espaço territorial, e o poder público. As
comunidades são as partes mais prejudicadas pelas ações das empresas, com
autorização e conivência do poder público.
“O que nós, pesquisadores, observamos na Barra dos
Coqueiros, é que se perpetua a falta de escuta sobre as demandas da comunidade
e a implementação de um modelo de desenvolvimento que não inclui as comunidades
nos processos, principalmente as comunidades tradicionais. Esses grandes
projetos, como a Usina Termelétrica e o Parque Eólico, são para a comunidade
como elefantes brancos, algo que surgiu ali e que impede a passagem, o uso de
áreas que antes eram de livre acesso sem efetiva compensação, e com a
conivência do Estado”, considera Bezerra.
“Ao invés de ser um ente na defesa dos moradores, o
Estado utiliza recursos naturais como o vento, a energia gerada na região e
simplesmente cede para a iniciativa privada. E quem mais precisa do apoio do
Estado não tem tido nenhuma ação efetiva de compensação. As catadoras de
mangaba, por exemplo, já protocolaram diversas denúncias de supressão vegetal à
Adema, e seguem sem respostas”, diz.
De acordo com a Assessoria de Comunicação da Adema,
órgão responsável pelo licenciamento ambiental dos empreendimentos, o
licenciamento da Termelétrica “foi de comum acordo com o Ibama e totalmente
oficializado”, e que “foram apresentados Estudos Ambientais como Relatório de
Controle Ambiental e Estudos Simplificados”. Ainda segundo o órgão, a
apresentação dos estudos foi seguida de Audiências Públicas e, “seguindo o
rito, foram emitidas duas Licenças Prévias (LP): uma pela Adema (UTE e Linha de
Transmissão) e a outra pelo Ibama (Monoboia/Gasoduto de GN/Emissário/Adutora).
Quando da conclusão das obras de Instalação e o cumprimento das condicionantes,
foram expedidas as Licenças de Operação”. Quanto ao Parque Eólico, a Adema
afirma que “foram apresentados Estudos Ambientais como Relatório de Controle
Ambiental e Estudos Simplificados”
A reportagem procurou a Celse, a Eneva, o Governo
do Estado, o senador Laércio Oliveira e as empresas citadas, mas até o
fechamento da reportagem, não obtivemos resposta de nenhum deles.
Fonte: Por Díjna Torres, Priscila Viana, em Agência
Pública
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