quinta-feira, 4 de maio de 2023

Sem Bolsonaro, liberdade de imprensa melhora no Brasil

Após quatro anos de ataques sistemáticos a jornalistas e veículos de comunicação sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil subiu 18 posições na edição de 2023 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF). O país saltou da 110ª para a 92º posição do levantamento divulgado nesta quarta-feira (03/05), Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Mesmo com o salto no ranking, classificado pela organização como um "recorde" dentro do continente americano, o Brasil ainda segue em uma situação de liberdade de imprensa considerada "problemática" pelo estudo – e bem distante de outras nações da mesma região. Muito à frente do Brasil, Uruguai (52º), Estados Unidos (45º), Argentina (40º) e Costa Rica (23º) têm a situação de liberdade de imprensa considerada "relativamente boa".

Em meio à discussão do Projeto de Lei (PL) das Fake News, que visa regulamentar a difusão de informações nas redes sociais, o relatório traz um panorama das perspectivas para a prática do jornalismo no Brasil.

•        "Retorno da normalidade"

Segundo o diretor do escritório América Latina da RSF, Artur Romeu, a melhora das condições no país tem a ver com a expectativa sobre as ações do novo governo Luiz Inácio Lula da Silva do que com melhoras efetivas que já ocorram no exercício da profissão.

"É um otimismo em relação a um retorno da normalidade das relações entre governo e imprensa a partir do fim do mandato de Bolsonaro, que teve como marca registrada ser um governo associado à promoção da desinformação, da violência nas redes contra a imprensa e a uma tentativa sistemática de descredibilizar, difamar e gerar desconfiança sobre o trabalho da imprensa no Brasil", afirma Romeu.

Lula em café da manhã com jornalistas no Planalto. Governo do petista trouxe otimismo em relação a um retorno da normalidade das relações entre governo e imprensa, diz diretor da RSFFoto: Sergio Lima/AFP

No ano passado, a RSF contabilizou três assassinatos de jornalistas no país – o blogueiro Givanildo Oliveira, o correspondente Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, que estava atuando como apoio ao trabalho jornalístico na ocasião.

Segundo Romeu, se fosse considerado apenas o quesito segurança (o ranking também contabiliza critérios políticos, sociais, econômicos, regulatórios), o Brasil cairia para a 149ª posição do ranking mundial.

O diretor da RSF explica que a avaliação do ranking geral, que é feita por meio de questionários com especialistas da área, ocorreu entre novembro e fevereiro, já com o resultado das eleições presidenciais definido.

"Vemos essa alta [no ranking] mais como uma expectativa de melhora do que o que de fato aconteceu", diz ele, acrescentando que o governo atual "tenta criar uma espécie de ruptura, na tentativa de marcar uma posição, uma diferença ‘civilizatória'".

•        Ataques a jornalistas nas redes

No último dia 28 de abril, a Repórteres Sem Fronteiras publicou um estudo de caso sobre o Brasil intitulado O jornalismo frente às redes de ódio no Brasil, que faz um apanhado dos ataques feitos por usuários do Twitter a profissionais da imprensa entre agosto e novembro de 2022, durante a campanha eleitoral que resultou na vitória de Lula para a Presidência.

De acordo com a publicação, feita em conjunto com o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Labic/Ufes), foram registradas mais de 3,3 milhões de mensagens de ofensa e intimidação contra jornalistas e veículos de comunicação – uma a cada três segundos.

O estudo também afirma que os ataques foram empreendidos principalmente por apoiadores de Bolsonaro, quando não pelo próprio ex-presidente de extrema direita, e tinham como alvo majoritário mulheres jornalistas.

•        "Indústria da desinformação"

Ainda segundo a própria RSF, essas práticas identificadas no Brasil estão dentro de uma tendência global, destacada pela organização no ranking mundial deste ano como "indústria do simulacro" ou mesmo "indústria da desinformação".

"Vemos políticos e governos mobilizando a desinformação para conseguir suas próprias narrativas e tendo uma maior capacidade de controlar a agenda pública e escapar ao exercício do controle social do poder que exerce o jornalismo", pontua o diretor da RSF, que vê na atual discussão sobre o PL das Fake News uma oportunidade de enfrentar o "caos informacional" da desinformação e da violência política e de gênero.

"Achar que vai resolver o problema é ingenuidade, mas o projeto de lei tende a contribuir com um marco regulatório mais positivo para um ambiente mais saudável para o exercício do jornalismo", complementa.

Para o professor titular da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e jornalista Eugênio Bucci, mesmo que o governo Bolsonaro tenha diretamente tomado parte na propagação de desinformação e no estímulo aos ataques de ódio à imprensa, os danos não são irreversíveis.

"Tivemos perdas, é evidente. Mas são perdas que podem ser superadas, e existe uma abertura, uma brecha pela qual podemos restabelecer o exercício da liberdade de expressão, da organização das redações", analisa.

"É claro que, se o poder democrático perder tempo e não tiver clareza, tudo isso será mais difícil. Mas a brecha, a abertura histórica para isso está aí", afirma Bucci.

•        PL das Fake News e liberdade de expressão

Em discussão na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2630/2020, mais conhecido como PL das Fake News, estava marcado para ir a plenário nesta terça-feira, mas foi retirado da pauta após pedido do relator, Orlando Silva (PCdoB-SP), para que haja mais tempo para discussões. O texto visa regulamentar as big techs, responsáveis pelas redes sociais, para que haja maior transparência de moderação e controle de envio de fake news e mensagens de ódio.

Professor de Teoria da Comunicação e de Jornalismo, Direito e Liberdade da Escola Superior de Publicidade e Marketing (ESPM), Ricardo Gandour diz que a eclosão das mídias sociais mudou o paradigma da divulgação de informações, antes monopolizado pelos veículos de imprensa, que colocavam um filtro antes da publicação de uma notícia.

"O ato de publicar se tornou algo quase que impensado por muitas pessoas. Hoje, publicar algo é muito fácil, a barreira de entrada para as publicações caiu a zero", aponta.

Apesar dos ataques nos últimos tempos a jornalistas, a liberdade de expressão de imprensa hoje é plena, considera Gandour. Para o especialista, no entanto, essa liberdade não significa levar a público informações não checadas, já que indivíduos têm alcances comparáveis aos de veículos analógicos.

"A palavra regulação pode soar forte ou complicada, mas é preciso alguma instância de governança mais adequada. As big techs que possibilitam essa aceleração da disseminação de informações têm que assumir um papel mais ativo, de governança editorial. Elas têm que se assumir como empresas de mídia", analisa.

•        Regulação e transparência das redes sociais

De acordo com Geane Alzamora, professora de Comunicação Social da UFMG, a liberdade de expressão, se for trabalhada sem responsabilidade, pode desembocar em discurso de ódio. Segundo ela, no entanto, a polarização dos embates políticos nos últimos anos tem sido utilizada pelas big techs como modelo de negócio.

"Quanto maior for a polarização, maior a atividade comunicacional gerada. Como isso é um negócio, não é imputado a uma responsabilização daquilo que é veiculado", diz ela. "As plataformas têm responsabilidade social, têm deveres. Elas têm que prestar contas disso."

Tanto Alzamora, da UFMG, quanto Eugênio Bucci, da USP, concordam que é preciso uma maior transparência quanto aos algoritmos utilizados pelas mídias sociais, para que se saiba qual tipo de conteúdo é priorizado para visualização de usuários específicos.

Como lembra Bucci, o debate está sendo feito de forma global. Na União Europeia, os conglomerados deverão fornecer a pesquisadores e autoridades, por exemplo, o acesso a algoritmos, além de passar por auditorias.

"O problema dos algoritmos, e que requer dramaticamente regulamentação e regulação, é que eles são opacos. A opinião pública, a autoridade pública, o Estado Democrático, não sabem como eles funcionam e como eles distribuem certos discursos e inibem outros. Que juízo de valor automatizado está em marcha hoje no debate público?", questiona o pesquisador.

 

       "Jornalismo deve contar histórias caladas pelos poderosos", diz Óscar Martínez

 

Um jornalista que, na América Central, escreve sobre temas como narcotráfico, corrupção e crime organizado, vive sob ameaça constante, comenta Óscar Martínez: "As chicanas vão desde difamações por funcionários e comerciantes, visando colocar jornalistas atrás das grades, a denúncias, ameaças de violência e até atentados fatais."

Martínez é um dos jornalistas investigativos mais conceituados da América Latina, cujas reportagens sempre despertam a atenção pública. Nascido em 1983 em El Salvador, ele é o editor-chefe da revista online El Faro. Iniciada em 1998 como projeto de orçamento zero, hoje ela é um dos principais veículos investigativos latino-americanos, um verdadeiro fanal do jornalismo independente e, acima de tudo, corajoso, na região, considerada uma das mais perigosas do mundo para jornalistas.

Também em El Salvador, no passado recente a situação piorou dramaticamente para os jornalistas. Desde que assumiu o poder em 2019, o presidente Nayib Bukele ataca e ameaça repetidamente profissionais críticos ao governo, bloqueia muitos nas redes sociais e tenta desacreditar a imprensa como inimiga do povo.

Desde março de 2022, vigora no país um estado de exceção decretado pelo governo: direitos constitucionais como liberdade de expressão, sigilo de correspondência (também na comunicação digital) e liberdade de reunião, foram abolidos. Mas Martínez não se deixa intimidar.

"O jornalismo precisa seguir iluminando os cantos escuros que os poderosos prefeririam deixar no escuro. Acredito que ele deve seguir contando as histórias que são caladas pelos poderosos. Também acredito que, diante das atuais circunstâncias, o jornalismo está diante de um grande desafio: a própria sobrevivência. Devemos estar alertas, nos defender dos ataques e resistir a eles, pois, justamente agora, o jornalismo é imprescindível na América Central."

•        Jornalismo como elemento de equilíbrio na sociedade

Sergio Arauz, vice-editor-chefe da revista online, recorda os inícios de Martínez: "Óscar queria escrever em 2008 uma reportagem sobre migração. Ele levava a tarefa muito a sério, era um dos primeiros grandes projetos jornalísticos da El Faro. Sua ideia básica era permanecer in loco para contar a história da viagem, com o tempo necessário, com uma outra visão e com a intenção de se tornar um verdadeiro especialista nesse campo."

"Desse projeto então nasceu um livro com todas as reportagens que ele havia feito em um ano e meio, quando seguiu as rotas de migração e conversou com migrantes", recorda Arauz. De lá para cá, Martínez lançou diversos livros sobre os temas migração e crime organizado na América Central.

"Acho que Óscar já é uma referência de língua espanhola do jornalismo, não só por seus livros, mas também por seu trabalho diário na El Faro. Se você ler o último livro dele, vai entender do que estou falando: é um tratado muito importante para todos que queiram entender a profissão jornalística."

•        Freedom of Speech Award

A DW reconhece agora essa importância, concedendo a Óscar Martínez, em 2023, seu Freedom of Speech Award. Angélica Cárcamo, presidente da Associação dos Jornalistas de El Salvador (Apes), frisa o significado para a América Central desse prêmio dedicado à liberdade de expressão: o fato de ele ir para seu país "significa honrar a coragem e o trabalho de muitos jornalistas que sentem os efeitos negativos em suas vidas".

"Ele é também um reconhecimento para um veículo como a El Faro, que sempre se dedicou à documentação da corrupção e dos desmandos de um poder político que está cada vez menos transparente e tenta a todo preço coibir o direito das cidadãs e cidadãos à devida informação."

"O prêmio é também um apelo ao Estado salvadorenho, que se recusa a reconhecer o significado do jornalismo livre e independente como instrumento de controle, que ao invés disso o criminaliza, e fortalece assim ainda mais a corrupção no país", prossegue Cárcamo. "É importante esse prêmio ser conferido nesse contexto, e que não se espere um jornalista ser preso ou morto para reconhecer o significado de seu trabalho para os cidadãos."

A entrega do Freedom of Speech Awards 2023 a Óscar Martínez ocorrerá em 19 de junho, durante o Global Media Forum da DW, em Bonn.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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