Yanis
Varoufakis: “Precisamos encontrar formas de unir os ‘servos da nuvem’ e o
precariado ao proletariado”
Yanis Varoufakis, é um economista
grego e líder do DiEM25, a aliança política paneuropeia de esquerda que
cofundou, em 2016, junto com o filósofo croata Srećko Horvat, para “democratizar a Europa”. Durante a
crise da zona do euro de 2015, conquistou fama como ministro das Finanças
da Grécia e, desde então, escreveu vários livros de economia
campeões, o mais famoso deles é Comportarse como adultos: Mi batalla
con el profundo establishment europeo, que foi adaptado para o cinema pelo
premiado diretor Costa-Gavras, em 2019.
Nesta
entrevista ao Equal Times, descreve a mudança transcendental provocada
pelas grandes empresas tecnológicas e o que pode ser feito para uma
resistência, um tema que aborda em seu último livro Technofeudalism:
What killed capitalism (Vintage, 2024).
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Eis a entrevista.
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Seu livro argumenta que vivemos em um novo sistema econômico
“tecnofeudalista”. No entanto, não necessitou de uma revolução social como
o capitalismo, nem de uma grande revolução agrícola como o feudalismo. Por que
você acredita que se trata de um novo modo de produção?
O tecnofeudalismo se baseia em uma forma de capital
inovadora e transmutada, qualitativa e quantitativamente diferente de todas as
variedades conhecidas até o momento. Até 10 anos atrás, todas as formas de
capital eram geradas através da produção, seja um arado, um martelo, uma
máquina a vapor ou um robô industrial. No entanto, na última década, vimos uma
nova forma de capital que ganha vida em nossos celulares, tablets e cabos de
fibra óptica, que eu chamo de “capital da nuvem”.
Amazon, Alibaba, Uber, Airbnb não
são mercados. Nem sequer são monopólios. São plataformas de comércio. O algoritmo (o capital da
nuvem) que os constrói não produz nada exceto um feudo na nuvem onde nos
reunimos como criadores, consumidores e usuários. Todos nós trabalhamos neles,
seja como taxistas ou produtores de conteúdos, e o proprietário deste ambiente
digital ganha rendas, como no feudalismo. Agora, não são rendas
procedentes da terra, são rendas digitais. Eu as chamo de rendas da nuvem.
Nesse
processo, os proprietários do capital da nuvem podem mudar o comportamento ou a
mente do usuário. É uma forma de mudança do comportamento que cria um modo
socioeconômico totalmente novo de produção, distribuição, comunicação e
intercâmbio. Não é capitalismo, mesmo quando se baseia no capital. O capitalismo tem dois
pilares: os mercados e os lucros. O capital da nuvem está rapidamente
substituindo os mercados por feudos na nuvem e, como resultado, está desviando
os lucros capitalistas que continuam sendo essenciais para o sistema,
convertendo-os em rendas da nuvem.
·
De acordo com o senso comum socialista, o capitalismo
criava seu próprio coveiro, ou seja, na forma de trabalhadores. Isto continua
sendo válido com o tecnofeudalismo ou, em última instância, serão apenas robôs
criando robôs para criar mais robôs?
A
análise marxista é a melhor maneira de entender o tecnofeudalismo. O valor
continua sendo produzido por seres humanos, não por
robôs, algoritmos ou o capital da nuvem. Surge da atividade humana.
Não surge de máquinas que constroem máquinas. A mudança é que agora temos muito
capital que está sendo produzido por mão de obra gratuita.
Antes, Henry
Ford usava máquinas para ajudar a produzir seus carros. Ele precisava
fazer um pedido a outro capitalista que empregaria mão de obra assalariada para
produzir aquele equipamento. Agora, a grande maioria do capital da nuvem é
produzida por trabalhadores gratuitos que eu chamo de “servos da nuvem”. Toda
vez que você posta um vídeo no TikTok, aumenta a
capitalização na bolsa desta rede.
É claro
que para o sistema se reproduzir, ainda precisa de mão de obra assalariada, de
modo que se esta for eliminada, todo o sistema desmorona. Existem robôs que
constroem robôs para construir robôs, mas o sistema é ainda mais instável e
propenso a crises do que o capitalismo porque sua base, a mais-valia produzida
pelo trabalho assalariado, está diminuindo.
Se uma
empresa produz bicicletas elétricas, 40% do preço pago por elas
na Amazon vai para [Jeff] Bezos [fundador e
presidente executivo da Amazon], não para os capitalistas que as produzem,
então, este capital é subtraído em uma espécie de renda da nuvem. Este dinheiro
não retorna para a produção, nem para o setor capitalista tradicional, razão
pela qual a demanda agregada, que sempre foi escassa sob o capitalismo,
agora, é ainda mais escassa.
Essa
situação cria pressão sobre os bancos centrais para que imprimam mais dinheiro
com o propósito de repor sua perda de poder aquisitivo, criando assim mais
pressões inflacionárias. O tecnofeudalismo é, portanto, um sistema
muito pior e mais propenso a crises do que o capitalismo.
·
Sua ideia parece sugerir que uma espécie de filtro
algorítmico agora domina até mesmo a nossa percepção da realidade. Qual o
impacto disso na consciência de classe?
Tem um
impacto enorme. Quando digo que nosso trabalho gratuito reconstitui e reproduz
o capital na nuvem de Bezos, Google e Microsoft,
eles respondem: “Sim, mas vocês adoram fazer isso”. Agimos voluntariamente.
Bem, isso não muda o fato de que é trabalho gratuito.
Também
temos o que meu amigo [escritor de ficção científica e ativista dos direitos
digitais] Cory Doctorow chama de um processo de “emerdamento”
(“enshittification”). Quanto mais você interage nas plataformas com as
quais contribui voluntariamente com o seu trabalho, pior é a experiência que
você tem e mais irritado você fica com outros usuários, não com o capitalista
da nuvem que é dono, então, é um dissolvente da consciência de classe.
·
Você diria que o populismo autoritário que vivemos desde
2008 é, em parte, a expressão política desse novo modo de produção?
O ano
de 2008 foi o 1929 da nossa geração. Não tem nada a ver com o capital da nuvem,
porque o capital da nuvem não existia naquele momento. Foi o resultado do
colapso do sistema capitalista financeirizado posterior
aos Acordos de Bretton Woods, mas, sem a intenção, a resposta a este
colapso, ou seja, o resgate de bancos e, essencialmente, imprimir 35 trilhões
de dólares para os banqueiros, contribuiu para acelerar a acumulação de capital
da nuvem, pois foram os únicos investimentos realizados entre 2009 e 2022.
De
fato, a impressão de dinheiro resultante da flexibilização quantitativa
coincidiu com um período de austeridade generalizada, razão pela qual
as empresas capitalistas tradicionais não investiram. Pegaram
dinheiro dos bancos centrais e recompraram suas próprias ações. Apenas os
proprietários de capital da nuvem investiram em máquinas, o que provocou um
aumento assombroso da qualidade e quantidade do capital da nuvem, o que levou
ao ChatGPT e
a OpenAI.
Toda
vez que há um acúmulo tão massivo de capital, ocorre uma mudança paralela na
sociedade. Elon Musk, por exemplo, chegou
tarde ao jogo do capital da nuvem. Era um capitalista tradicional. Fabricava
carros e foguetes. Não era um “cloudalista” até perceber que as
plataformas da Tesla e da Starlink pediam a gritos uma
conexão com o capital da nuvem e que ele não tinha uma interface, então,
comprou o Twitter [agora chamado X] por uma miséria.
Esta é
minha opinião, que entra em choque com a de todos, mas 44 bilhões de dólares [o
valor que Musk pagou para comprar o Twitter, em 2022] não é
nada. É uma ninharia para ele, e agora está criando, a partir do X, um
aplicativo que conecta tudo e que conecta a Starlink a todos os
carros Tesla do mundo. Inclusive, fundiu suas redes com os sistemas
informáticos do Governo Federal, e sua ideologia fascista, quase ou talvez
plenamente desenvolvida, anda de mãos dadas com isso.
Quando Peter Thiel [o bilionário
investidor de capital de risco e libertário de extrema direita] afirmou
recentemente que o capitalismo é incompatível com a democracia,
algo em mim aplaudiu. Tinha toda a razão, mas foi preciso o capital da nuvem e
a Palantir Technologies, a empresa de software fundada
por Thiel que fornece principalmente dados e suporte de vigilância
aos organismos militares, de segurança e de inteligência], assim como o X,
para que disseram: “Sabe de uma coisa? A democracia, mesmo a mais tímida, é uma
carga e um obstáculo para o nosso poder, então, optamos pelo fascismo”.
Não
obstante, não teriam feito isso se não tivessem um vínculo direto com nossos
cérebros, porque, ao contrário de Henry Ford e Thomas Edison,
que tiveram que comprar jornais para buscar formas de nos influenciar, se você
possui capital da nuvem, possui essencialmente as cadeias mentais de milhares
de milhões de pessoas.
·
A visão utópica alternativa, segundo a qual um comunismo
de luxo totalmente automatizado poderia nos libertar do trabalho, é mais
provável do que o controle algorítmico da população, ou mesmo a interiorização
decidida por algoritmos?
Terminei
meu livro ( Conversando sobre economia com a minha filha), em 2017,
afirmando que o futuro da humanidade se direciona
para Matrix ou Star Trek. O caminho de Star Trek é
o comunismo libertário de luxo, e o de Matrix é
o tecnofeudalismo em sua pior variante. Para onde iremos dependerá da
nossa capacidade de reavivar a política democrática, o que continha sendo
incerto.
·
Como o capital da nuvem pode ser reajustado para um nível
mais humano? Que tipo de regulamentação seria eficaz?
Penso
que o mais óbvio é a interoperabilidade. Por exemplo, eu queria sair
do Twitter [X] porque se tornou uma cloaca de veneno e lama, mas
tenho 1,2 milhão de seguidores. Fui para o Bluesky e tinha 100,
agora, tenho 30.000. Então, não posso abandonar o X. Mas imagine se os
reguladores impusessem a interoperabilidade ao X dizendo: “Se vocês
querem continuar funcionando, precisam permitir que os seguidores de qualquer
pessoa inscrita no X que mude para o Bluesky continuem
recebendo suas mensagens do X no Bluesky”. É o mesmo que obrigou
as empresas de telecomunicações a permitir que as pessoas mantivessem seus
números de telefone, após mudarem para uma concorrente.
É
interessante observar que, no ano passado, legislou-se a interoperabilidade
na China para os provedores [digitais] e os aplicativos. Isso nunca
acontecerá no Ocidente, é claro, mas se
acontecesse, seria um grande golpe contra o poder e os privilégios dos ‘cloudalistas’.
A
legislação antimonopólio tem sido eficaz, como quando [o ex-presidente
estadunidense] Teddy Roosevelt a utilizou para dividir
a Standard Oil [em 1911], um monopólio que cobria todos
os Estados Unidos, em 50 empresas diferentes, uma por estado. Mas como
fazer isso com o Google e o YouTube? Não podem ser divididas
porque não faz sentido. Em última instância, a questão é quem é o proprietário?
A única
maneira de acabar decisivamente com o tecnofeudalismo é passar do
marco do direito de sociedades capitalistas, segundo o qual “você pode
possuir quantas ações tiver em dólares ou euros”, para um sistema em que cada
trabalhador obtenha uma ação da empresa em que trabalha, e que não possa
possuir uma ação da empresa a menos que trabalhe nela. Podem legislar, ao mesmo
tempo, as corporações autogeridas por trabalhadores e as que são propriedade
dos trabalhadores. Se acrescentarmos a isto um júri de cidadãos encarregado de
avaliar o desempenho social das empresas, é possível continuar tendo mercados,
mas sem capitalismo.
·
Para alcançar esse objetivo, o que os sindicatos deveriam
fazer? Você ainda os considera agentes fundamentais neste novo mundo?
Definitivamente!
Contudo, precisam ir além do projeto de garantir salários justos. Os salários
nunca podem ser justos, independentemente do seu nível, em um sistema
tecnofeudalista, porque há uma enorme desigualdade de poder entre os
proprietários do capital da nuvem e os trabalhadores. Constata-se esta
realidade, agora, no Vale do Silício. Também há muitos
trabalhadores que não recebem sequer um centavo pelo trabalho gratuito que
realizam. O que eu gostaria de ver são sindicatos radicalizados, que exijam “um
trabalhador, um membro, uma ação de empresa, um voto”, em vez de salários
justos.
·
Considera que a esquerda política está naturalmente
adaptada a este novo mundo? Até o momento, é a extrema direita que está falando
mais alto. Como podemos subverter o tecnofeudalismo?
Em
primeiro lugar, sensibilizando acerca do fato de que o sistema atual de criação
e distribuição de valor certamente nos levará a uma morte prematura e a uma
diminuição constante das perspectivas da grande maioria, com resultados muito
piores do que sob o capitalismo.
Em
segundo, demonstrando que a tecnologia pode ser muito melhor, caso seja
socializada. Se o seu município tivesse um aplicativo próprio que substituísse
o Airbnb ou o Deliveroo, bem como um aplicativo de pagamentos
bancários, e se empregos de qualidade fossem criados em nível municipal para
que os programadores criassem esses aplicativos, as vantagens seriam facilmente
acessíveis.
Em
terceiro lugar, destacando como a concentração extremamente bipolar do capital
da nuvem nas mãos de pouquíssimas pessoas, especialmente no Vale do
Silício e na costa leste da China, dá lugar a uma nova Guerra
Fria que pode facilmente se transformar em uma guerra termonuclear.
É isso
que está por trás dos crescentes ataques dos Estados Unidos à China. Não se trata
de Taiwan. Taiwan e a política de uma só China sempre
conviveram conosco. Não se trata do fortalecimento da potência militar chinesa.
É um absurdo. Trata-se de um desafio à hegemonia do dólar mediante a fusão da
grande tecnologia chinesa com as finanças chinesas e a moeda digital
do Banco Central da China. A paz mundial é, portanto, a terceira
vantagem.
·
Você ainda considera que a ação fora dos Parlamentos é
fundamental para consolidar essa mudança?
Não há
substituto para a construção de movimentos extraparlamentares. No entanto, as
greves e a luta contra a mudança climática exigem um programa que
motive as pessoas a agir em nível local, então, ambas devem ser complementares.
Agora, existe um precariado generalizado cada vez mais difícil de
organizar em torno das linhas dos sindicatos tradicionais.
Ao precariado, soma-se toda essa mão de obra gratuita fornecida,
especialmente por jovens, no TikTok e no Instagram. Precisamos
encontrar formas de unir os servos da nuvem e
o precariado ao proletariado. Em termos práticos, não basta que
os sindicatos organizem uma greve em uma fábrica. É necessário combiná-la, ao
mesmo tempo, com boicotes de consumidores e campanhas militantes na nuvem.
Fonte:
Entrevista para Arthur Neslen, no Equal Times - Tradução do Cepat,
em IHU

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