“Só
aprendi a ser bandido e dar estudos bíblicos”: esperança e contravenção na
experiência evangélica
“Portanto,
vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo” (Mateus 28:19)
Esta pequena passagem bíblica que serve de
epígrafe é chamada de Grande Comissão — ao menos é assim na tradição
evangélica. Trata-se do envio de Jesus a todos os seus discípulos,
comissionados para anunciar a boa-nova de que o Messias chegou, ressuscitou, e
está prestes a redimir o mundo. Esse é o texto fundante da maneira como os
evangélicos validam a sua experiência religiosa. O centro de sua vida é
participar do anúncio das boas-novas, que geram discípulos e, assim, os
batizam. Uma visão universalista: todos os povos e nações devem ouvir o chamado
de Cristo, que exige uma disposição integral. Qual é a missão do crente,
comissionada pelo próprio Redentor do mundo? Pregar o evangelho e batizar.
O batismo, nessa mesma perspectiva de
vivência da fé cristã, é visto como o momento demarcado em que se “morre para o
mundo” e se “nasce para Deus”. Uma passagem do velho homem para o novo —
conversão — , que culmina no batismo como rito. Essa noção é um dos poucos
pontos de convergência entre a maioria das tradições cristãs no
Brasil. Seja católico, presbiteriano ou adventista, crê-se que o batismo é
o ato que marca o ingresso do fiel na comunidade de fé. Porém, cada tradição
desenvolverá sua própria interpretação sobre o batismo e as formalidades
canônicas que o legitimam e organizam. O que é uma crença na transformação
interior, culminando na imersão nas águas, é também registro institucional. O
nome entra nos cadastros, a experiência espiritual racionaliza-se em números.
Mais um batizado. Mais próximo da meta.
Rafael entrou na Igreja Adventista do Sétimo
Dia de Jardim Mabel carregando uma arma na cintura e uma dúvida.1 Era um sábado de manhã cedo em 2012, e ninguém
imaginava que aquele homem, meio trôpego, tinha ensaiado um assalto. Talvez nem
ele mesmo soubesse direito o que pretendia, além de fugir da ressaca e, quem
sabe, da própria vida. No terceiro banco, sentiu olhares de soslaio. As pessoas
se afastavam. Ele não parecia o “tipo” de gente que esperavam ver
entrar. Mas aí o pastor bradou: “Quem precisa voltar para Jesus hoje?” E a
mão de Rafael se ergueu antes de o cérebro registrar a ação. Um gesto meio
inconsciente, meio desesperado.
Só alguém que já esteve e não está mais pode
voltar.
Rafael sabia que “voltar para Jesus” não era
qualquer coisa, e sua mão levantada marcava uma decisão. Era o anúncio de que
sua vida iria mudar. A fim de “nascer para Deus”, ele precisaria primeiro “morrer
para o mundo”: sua relação com a organização criminosa que permeia a vida
social de São Paulo, o consumo rotineiro de substâncias lícitas e ilícitas, seu
trabalho… nada mais seria o mesmo. O Rafael que levantou o braço não foi o
mesmo que logo o abaixou. E não deixou barato. Naquele mesmo dia, ele
mergulhou no tanque batismal, cheio de água fria (alguém desligara o aquecedor
em protesto). “Eu precisava mudar, e ponto final”, resumiria anos depois.
Duas semanas mais tarde, convidaram-no para
acompanhar um obreiro bíblico. Uma visita a um dependente químico que queria
“escutar a Palavra”. Rafael, ainda sem entender muito da Bíblia, gaguejou uma
prece. Usou palavras da rua, do crime, da beira do abismo. O homem chorou,
pediu pelo batismo. E Rafael sentiu um arrepio quase físico. “Que sensação
doida! Eu preciso de mais!”, pensou.
Acontece que, no meio adventista, existe
uma função chamada “obreiro bíblico” — algo como um batedor que prepara
terreno para o evangelista, o obreiro vai de casa em casa, convida, anima,
convence, batiza. Foi nessa que Rafael se encontrou. Não tinha carteira
assinada, mas compensava na fé. Em um ano, jurava ter levado centenas ao tanque
batismal. Cada batismo reacendia nele aquela faísca doida de “estou
ajudando alguém a renascer”. Para ele, era o testemunho da única coisa
que sabia fazer bem: “Eu só aprendi a fazer duas coisas na vida: ser bandido e
dar estudo bíblico.”
Tudo ia bem até 2020, quando seu pastor de
então foi realocado. E eis que o diretor de evangelismo da associação
local, estendeu uma proposta: salário de R$ 4.500, um carro e um emprego para
sua esposa. Mas tinha um preço, parte do dinheiro precisaria voltar,
discretamente, aos cofres do diretor. E as contas bancárias de Rafael se
enchiam de transações suspeitas. Ele percebeu que a própria igreja, que
tanto falava em esperança, também tinha planilhas para fechar, metas a bater.
Ao passo que sua vida corporativa ganhava
relevância no contexto adventista — alcançando novos cargos e estabilidade
financeira —, ele via seu entendimento inicial da fé, aquele que dera sentido à
sua conversão, dissolver-se gradualmente nas engrenagens institucionais. Metas
batismais e projetos de pastores empreendedores, cujo sucesso media-se por
números de conversões nos batismos, transformavam a experiência religiosa dos
fiéis em moeda de ascensão hierárquica: liderar igrejas cheias significava
competitividade por cargos melhores e salários mais altos.
Foi nesse terreno pantanoso — entre a fé que
remodelara sua vida e a mediação ativa em esquemas fraudulentos — que Rafael,
como “mão ativa” do pastor por trás da operação, recrutava famílias inteiras
para batismos múltiplos: combinavam-se valores abaixo de 200 reais e seis
cestas básicas por imersão, com cláusula tácita de repetição semanal em
diferentes congregações adventistas da região. Rafael era a pessoa perfeita
para o recrutamento de batismos justamente por operar a partir de uma teia de
cumplicidade estrutural. Ele selecionava pessoas de seu próprio contexto,
indivíduos das periferias e comunidades da cidade, como ele. Entre esses
sujeitos, vigora uma economia moral da sobrevivência — laços de solidariedade
que se materializavam em trocas de favores, proteção mútua, uma mão lava a
outra, e Rafael via no esquema uma chance de ajudar essas pessoas.
O depoimento à que serve de base a este texto
detalha a mecânica: uma mesma pessoa chegou a ser mergulhada nas águas dez
vezes, enquanto famílias tornavam-se recicláveis em diferentes igrejas. Um
pastor com muitos batismos é um pastor bem sucedido, um pastor com poucos
batismos é um pastor mal sucedido. Essas são as regras do jogo, e aquele
sempre foi um bom jogador. Rafael era somente uma peça descartável, que fazia o
trabalho sujo com zelo e dedicação. Em agosto de 2024, sob uma investigação da
própria Igreja Adventista motivada pela denúncia do próprio Rafael, a
Associação Paulistana dessa mesma organização deslocou de forma discreta todos
os que estavam dentro do esquema, realocando diversos pastores em outras
igrejas, mas Rafael e o outro obreiro bíblico que fizeram a denúncia foram
demitidos. Com o escândalo noticiado, diretor de evangelismo se demitiu e foi
homenageado publicamente pela IASD.
Em uma pregação em 2021 para uma congregação
adventista no bairro do Ipiranga, o pastor em questão fez uma série de sermões sobre
o juízo final. Uma série de sermões é, basicamente, uma organização de falas
que gira em torno de um único tema ou passagens bíblicas específicas. No caso,
a temática era: “Apocalipse: a busca de um Novo Tempo”. Os temas
escatológicos, aqueles debates teológicos sobre a redenção do mundo ou, em
linguagem mais popular, sobre “o fim dos tempos”, são bastante comuns no meio
evangélico, mas a tradição adventista dá ênfase especial a essa urgência do
retorno de Cristo. O quarto dia foi dedicado ao Juízo, o momento em que
Deus julgará toda a história e dará início ao novo tempo para o universo. Uma
longa aula de escatologia adventista, sem dúvida, mas que ganhava tom de sermão
pastoral por ser entremeada por apelos. O Juízo Final não é simples desfecho, e
sim evento iminente e totalizante, no qual toda a humanidade se confrontará,
inevitavelmente, com a plenitude do divino. Não é algo lá do futuro, mas se
acende aqui e agora. Mais que um tribunal de mero acerto de contas, trata-se de
um processo contínuo de investigação: no Santuário Celestial, Cristo assume o
papel de Advogado, intercedendo sem cessar por aqueles que se submetem à Sua
graça. A referência aos códices celestiais — registros das ações humanas,
pecados e inscrições indeléveis no Livro da Vida — cria um cenário de exame
escrupuloso, de culpabilização iminente. Os crentes estariam todavia a salvo,
seus pecados já foram perdoados. Assim, na pregação do pastor, o Juízo Final se
constrói em uma dualidade: é tanto um chamado ao arrependimento e compromisso
cotidiano quanto um horizonte de redenção definitiva, cujo ápice reside na
promessa de novos céus e nova terra para os justificados pelo sangue do
Cordeiro. É, ao mesmo tempo, a condenação para os não cristãos e a imagem
redimida do universo para os que fazem parte da igreja, colocando a necessidade
ulterior do compromisso a todos aqueles que não quiserem arder no inferno.
Acompanhando cada comentário com diversas passagens bíblicas, o pastor
agenciava nos ouvintes a urgência da conversão; a saída do velho mundo e
entrada no espaço-tempo de expectativa redentiva. A fala culmina em um chamado
ao batismo, não sem interesse pelo lado do pastor, mas que recaía sobre o colo
dos que o escutavam naquela sala como uma oportunidade de se livrar de tudo que
há de mal no mundo e voltar para o caminho da redenção.
Talvez tenha sido isso que passou pela cabeça
de Rafael quando entrou na igreja de sua mãe em 2012, ouviu o chamado que
convidava os que assim desejassem a voltar para Jesus, e sentiu a própria mão
erguer-se sozinha: a sensação de estar diante de uma decisão. Dizem os
evangelistas que Jesus já fez o trabalho redentivo e está chamando os perdidos;
cabe ao ouvinte, uma vez convencido, decidir entre aceitar ou rejeitar o
chamado. Caso escolha tornar-se parte dessa irmandade universal, cuja
primazia cabe ao próprio Redentor do mundo, encontrará, na convivência e nas
relações entre os irmãos, experiências de esperança. Essas experiências
apontam para um horizonte utópico que transcende o presente, mas que, ao mesmo
tempo, se manifesta aqui como ordenamento do que deve ser feito para que esse
além se realize plenamente.
Se os que sobrevivem no Brasil têm que se
sacrificar no mercado de trabalho para seguir vivos, seu próprio sacrifício
diário — em que se forja “uma subjetividade isolada que, enquanto tal, é
vítima e produto do processo social; o indivíduo se atribui a culpa pelo
processo que vitima a si mesmo e aos demais”2 — racionaliza-se em uma imaginação religiosa
que o preenche com sinais de esperança. A própria entrega desses mesmos
sujeitos dentro da sua comunidade de fé faz com que eles vejam em si, no eco do
seu encontro, a experiência de estar diante de alguém que o entende como igual.
Esse “nós” faz soar nos ouvidos imagens do dia que ainda não chegou. Esse “lá
na frente”, que também é juízo e assim delimita quem é e quem não é, transforma
a culpa desse sujeito — livrada pelo sangue do Cordeiro — no motivo da conversão.
Eis a verdadeira esperança.
Esperança, naqueles velhos moldes de Ernst
Bloch — onde “a escuridão do momento vivido desperta na ressonância do espanto
que nos invade, e assim sua latência chega a uma ‘visibilidade’ inicial, o
desfrute e a superabundância de ser afetado pelo Nós”3 —, mas que funciona aqui como mola interna de uma
corporação internacional como qualquer outra, que batalha no mercado religioso
sob a mais instrumental das racionalidades.
Rafael estava no meio disso tudo e, como
colaborador descartável — aquele que faz o trabalho sujo e, por isso,
incontornável —, conheceu os dois lados dessa mesma coisa que, de forma
especulativa, temos chamado de Brasil avivado. O que interessa (e essa história pessoal não deixa
escapar) é que o funcionamento dessa imaginação religiosa opera tanto no
utópico imaginativo quanto no racional instrumental. Não são coisas
separadas, nem há como supor uma sem a outra. A própria imaginação utópica tem
seu fazer-ser nas formas de gestão das comunidades que se tornam corporações
com o crescimento. Não é uma falha que há de ser resolvida por alguma saída
transformadora, é a própria dinâmica da coisa que faz com que “sentir-se
parte de algo que caminha” integre o movimento de uma operação comercial. O
pastor trabalha aqui. É tanto gestor de um empreendimento — que deve se manter
e, assim se espera, multiplicar — quanto o provedor da “chama espiritual” que
faz essa própria comunidade viva. Ele há de ser o gerente que conhece o mercado
e sabe para onde ir, e também o profeta que dá a notícia de dias melhores para
os seus.
Rafael, o pastor e toda essa história não são
pontos fora da curva, mas momentos-limite daquilo que segue operando dentro de
qualquer igreja evangélica que tem contas para pagar e uma boa-nova para
contar.
Fonte:
Por André Castro, no Blog da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário