Revolução, patrimônios difíceis e
dignidade no Haiti
Embora
grande parte dos monumentos tombados pelos Estados nacionais, herdados na sua
maioria do passado colonial, terem sido construídos por pessoas negras
escravizadas, na América-Latina e Caribe, ou melhor na Améfrica Ladina, como
dizia Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994), poucos são os patrimônios ou
monumentos negros. Ou seja, quase nenhum patrimônio é de ressonância afro,
fazendo referência aos bens pensados por e para os povos negros do continente,
relacionados à sua agência e resistência. No Caribe insular, particularmente,
em âmbito da Unesco, são apenas dois: as Blue and John Crow Mountains, na
Jamaica, classificado em 2015, caracterizado por ser o espaço de aquilombamento
dos negros escravizados e dos indígenas no período colonial que permitiu a
prática das suas expressões culturais ainda presentes no país. O outro
patrimônio é o Parc National Historique – Citadelle Laferrière, Palais
Sans-Souci, Ramiers (PNH-CSSR), na cidade de Milot, no Haiti. O PNH-CSSR é
patrimônio negro, legado material da Revolução Haitiana (1791-1804) e ajuda a
pensar os conflitos em torno da história e da memória no Haiti.
Muito
se tem escrito e ao mesmo tempo pouco se sabe realmente, no Brasil, acerca da
Revolução Haitiana. No entanto, lembremos que esta se trata de uma revolução
popular, anticolonial, antiescravagista e antirracista que tornou o Haiti, no
início do século XIX, o único Estado negro da região e o único cuja
independência foi consequência direta da luta dos escravizados por liberdade e
pelo resgate da humanidade da mulher e do homem negros. Assim, é a bravura de
ancestrais revolucionários, e não o desonrado passado colonial e escravista,
que fundamenta a memória nacional, e mantém intensa relevância pública e
política.
Vale
lembrar que o Haiti recém-independente estava cercado por um mundo atlântico
colonial, escravocrata e racista, e a tomada de medidas para assegurar a
integridade do novo Estado-nação foi essencial. E, então, Jean-Jacques
Dessalines, primeiro chefe de Estado, em 1804 orientou a construção de uma
verdadeira rede nacional de fortificações. Entre as várias obras militares
erguidas estão justamente as de Henri Christophe, comandante da divisão militar
do Norte, que fez construir em Milot a Cidadela Laferrière e o complexo de
Ramiers e, depois da sua autoproclamação como rei Henry I do Reino do Haiti,
fez erguer o Palácio Sans-Souci.[1]
“Esse povo que queriam de joelhos precisava
de um monumento que o colocasse de pé”,[2] e os de Milot,
principal cartão-postal do país, se converteram na mais bem-acabada
representação da Revolução, sendo tombados como único patrimônio material da
humanidade no Haiti pela Unesco em 1982 e como patrimônio nacional em 1995. Os
monumentos de Milot foram construídos intencionalmente para serem obras
políticas, símbolos projetados para forjar uma identidade nacional que
transcendesse o sofrimento da escravização.
No Haiti, portanto, a Revolução de 1791 é o
principal evento histórico a ocupar o espaço público e, como acontece com
muitas histórias, há aspectos que preferimos ignorar, especialmente os passados
sensíveis e os momentos dolorosos, como a escravização e as práticas violentas
próprias da modernidade/colonialidade que marcaram a formação do Estado-nação
haitiano. Esses capítulos da história nacional não estão desprovidos de
evidências materiais, mas, são relegados ao esquecimento.
Como ignorar que São Domingos, a colônia mais
rica das Américas no final do século XVIII, devia sua prosperidade ao sistema
de plantation e à exploração de uma soma imensa de pessoas
escravizadas, sendo a que mais escravizava no Caribe, e o Caribe, por sua vez,
a região que mais escravizava nas Américas? No entanto, as milhares de plantations,
símbolos de riqueza e poder colonial, espaços de intensa violência, mas também
espaços culturais importantes de crioulização, foram relegadas ao esquecimento.
As poucas estruturas remanescentes, testemunhas do modo de vida dos
escravizados, não receberam o devido valor patrimonial. Portos de desembarque,
mercados de escravizados e cemitérios jazem sem preservação. Engenhos,
aquedutos, senzalas e casas grandes quase desapareceram. Moendas, caldeiras,
sinos e fornos, dispersos em mãos particulares, servem como peças decorativas,
despojados de seu significado histórico.
O Haiti, esse país acordeão, de vez em quando
pequeno, de vez em quando grande,[3] optou por
celebrar a vitória da revolução e silenciar a dor. Apesar de o Haiti, junto com
alguns países africanos, ter incentivado a criação do Projeto Rota do Escravo,
da Unesco, em 1994, que busca preservar a memória do tráfico negreiro e da escravização,
a realidade é que a memória da escravização que remete à tortura e à dor ainda
é um tema velado, tanto no Haiti quanto no mundo. Em muitos museus e outros
lugares de memória, no Caribe insular, por exemplo, que resgatam esse período
da história, enfatiza-se uma história industrial e técnica da produção do
açúcar sem enunciar a realidade sensível da escravização, deixando de lado a
vivência dos escravizados, os atores centrais dessa história.
É
preciso ter em conta que a ausência de patrimônios difíceis, que mobilizam
histórias de opressões e memórias sensíveis de dor do período colonial no
Haiti, se fundamenta em razões históricas e políticas. As plantations,
principal símbolo econômico-social e de opressão da colônia, foram
deliberadamente destruídas durante a Revolução Haitiana, eliminando vestígios
físicos da escravização. O Estado, por sua vez, priorizou a exaltação da
Revolução, construindo uma identidade nacional heroica, de resistência e
liberdade. Contudo, é válido dizer, o silêncio sobre esse período e sobre
outros momentos traumáticos da história haitiana – cujos efeitos desastrosos
ainda perduram, como a ocupação estadunidense (1915-1934), a ditadura dos
Duvalier (1957-1986) ou as violências praticadas com a construção e tombamento
dos monumentos de Milot pelo Estado – e sua ausência no espaço público, tanto
no patrimônio ou como no ensino – sugerem um projeto estatal de ocultação
desses passados, e não um esforço coletivo de esquecimento. No entanto, a
história da escravização ressoa fortemente na cultura popular, manifestando-se
em contos, mitos, lendas, música e artes marciais e essa memória é
frequentemente invocada em momentos de reivindicação por melhores condições de
vida.
Assim,
é possível postular que a decisão do Estado de negligenciar a preservação de
memórias sensíveis no espaço público contemporâneo é um ato deliberado da elite
econômica e política para manter a ordem vigente e seu status quo.
Ao privar a sociedade de patrimônios, que são portadores de valores cognitivos,
que transmitem conhecimentos históricos e pedagógicos acerca desses passados, o
Estado oculta traumas, condições de vida dos escravizados, consequências
sociais da escravização, da ditadura e do imperialismo estadunidense, bem como
as formas de resistência popular. Essa omissão obstaculiza a conexão entre
esses passados violentos e a realidade atual dos haitianos, marcada pelo
racismo, patriarcado, pobreza, falta de cidadania e direitos sociais, civis e
políticos.
Em
certa ocasião, ao apontar as diferenças nas identificações dos Duvalier e
Jean-Jacques Dessalines – este retratado como um sanguinário que executou
brancos após o fim da guerra –, no Museu do Panteão Nacional em Porto Príncipe,
ouvi que seria inútil rotular os Duvalier como ditadores responsáveis pela
morte, exílio e tortura de milhares de haitianos. Ao mesmo tempo, há quem diga
que a presença de patrimônios difíceis e de memórias sensíveis no espaço
público haitiano busca, de certa forma, deslegitimar o principal mito
fundacional da nação. No entanto, a intenção está bem distante disso; trata-se
de um exercício para enriquecer nossa compreensão da história. A narrativa
heroica não deve impedir o exercício pleno da cidadania, que exige uma visão
crítica e multifacetada da história. Ou servir de meio para silenciar, apagar e
dificultar a discussão sobre questões internas importantes relacionadas a esses
passados que afetam o presente, a vida cotidiana nacional. Entretanto,
paralelamente, é crucial que as críticas à Revolução Haitiana sejam
construtivas, impulsionando a construção de propostas que abordem os desafios
contemporâneos.
A
coexistência de memórias da liberdade e do sofrimento é fundamental. Monumentos
que evocam a dor servem como um lembrete das atrocidades passadas para a
sociedade como um todo, podendo contribuir para que não se repitam. Ao se
apropriar dessas memórias, a população pode construir novas narrativas e
futuros, exercendo a função política e moral da memória, que promove libertação
e justiça. A apropriação desses lugares de memória, em diálogo com políticas
públicas como as educacionais, tem o potencial de promover uma apropriação da
memória de liberdade para além de uma repetição ritualizada, de auxiliar na
superação de desafios coletivos e na resolução de conflitos. Ao trazer à tona
as desigualdades persistentes, esses lugares de memória enfatizam a marginalização
da maioria da população, e são capazes de impulsionar lutas sociais, a
exigência de direito à memória, verdade e reparação.
A forma
como se representa o passado não tem tanto a ver com o passado, mas com o
presente que se quer criar e com as perspectivas de futuro. Nesse sentido, o
patrimônio não é neutro, reflete contradições e lutas sociais, e não deve
perpetuar passados idealizados e desconexos com a realidade do presente. É
fundamental dialogar com as contradições existentes. Os monumentos do PNH-CSSR
de Milot precisam dialogar com o passado glorioso da Revolução de 1791 e as
colonialidades que surgem e se reforçam com a formação do novo Estado-nação e
que se alastram até os dias atuais. Porém, como conciliar essas histórias para
alimentar uma memória que estimule a crítica histórica? Como viabilizar essas
demandas em um Haiti marcado por urgências, onde a própria sobrevivência está
em risco? Como garantir que o patrimônio, em vez de mero produto de consumo,
seja um instrumento de reflexão e transformação social?
O
debate sobre patrimônios difíceis é fundamental para que possamos repensar a
forma como construímos nossa história e nossa identidade. No caso do Haiti, é
preciso encontrar um equilíbrio entre honrar o legado da Revolução Haitiana e
reconhecer as feridas coloniais ainda abertas pela escravização e pelas
violências da modernidade/colonialidade do Estado. Afinal, é só assim que a
memória do passado poderá ajudar a construir um presente e um futuro de
liberdade, de dignidade para a população haitiana.
Refletir
sobre o Haiti, sua Revolução e sua história contemporânea nos proporciona uma
oportunidade de pensar também sobre a história de nossa região como um todo, e
vice-versa. Podemos, assim, questionar os patrimônios de ressonância afro e
indígena no Brasil ou em qualquer outro país da Améfrica Ladina, e,
consequentemente, o lugar ocupado por esses corpos nas respectivas sociedades;
as violências do Estado e as políticas de memória e reparação.
¨ Tarifaço de Trump
atinge duramente exportações da África
As pesadas tarifas anunciadas por Donald Trump na semana passada geraram uma onda de preocupação
em todo o continente africano que atingiu especialmente países pequenos e
pobres com pouca relevância na balança comercial dos Estados Unidos.
Lesoto, um reino montanhoso com 2,3 milhões
de habitantes totalmente cercado pela África do Sul, é o maior exemplo disso.
Conhecido como a "capital do denim da África", o país tem uma
economia fortemente dependente da venda de jeans para grandes marcas
americanas, como Levi's e Wrangler. Apesar de ser um dos países mais pobres do
mundo, foi o mais taxado por Trump, com uma tarifa de 50%.
O comércio do Lesoto com os EUA – seu segundo
maior parceiro comercial, atrás apenas da África do Sul – representa mais de um
décimo do PIB do país africano. As vendas para os EUA foram de 237 milhões de
dólares (R$ 1,4 bilhão) em 2024. Do outro lado, esse comércio equivale a 0,006%
do total das importações dos EUA.
A taxa aplicada "não se baseia em fatos
concretos", e o governo está tentando esclarecer a situação com
Washington, disse à DW o ministro do Comércio de Lesoto, Mokhethi Shelile.
"Temos, no total, cerca de 11 fábricas
que abastecem o mercado americano", disse ele. "E essas empresas
empregam mais de 12 mil pessoas, o que representa cerca de 42% do total de
empregos no setor têxtil do país."
A maior preocupação do governo agora é com o
fechamento imediato de fábricas e a perda de empregos com a guerra tarifária
de Trump. "Precisamos viajar com urgência para
os EUA para conversar com seus executivos e defender nosso caso", disse
Shelile a repórteres nesta terça (08/04).
Para Daniel Silke, diretor da consultoria
sul-africana Political Futures Consultancy, a fórmula tarifária imposta por
Trump é problemática porque "não reflete as várias nuances que cada país
tem em termos de sua própria economia doméstica e estrutura de
exportação".
<><> Exportações de veículos da
África do Sul atingidas
Entre os países africanos mais prejudicados
pelo tarifaço de
Trump estão ainda Madagascar, taxada em 47%,
Botsuana, em 37% e África do Sul, em 30%.
Essas tarifas podem não afetar o PIB geral
da África do Sul, mas atingirão setores importantes como o agronegócio e
as exportações de veículos, analisa Silke. Cerca de 10% dos veículos fabricados
na África do Sul são exportados para os EUA.
A maior economia da África buscará novos
mercados para as exportações agrícolas, mas o vinho e outros produtos frescos
sentirão o impacto inicial, acredita Silke.
A Associação de Produtores de Cítricos da
África do Sul, por exemplo, alertou que as novas tarifas podem colocar em risco
35 mil empregos relacionados ao cultivo de frutas cítricas no país.
<><>
Fim de acordo comercial
A
indústria têxtil em Lesoto cresceu em torno do acesso livre de tarifas aos EUA
sob a Lei de Crescimento e Oportunidades para a África (Agoa), que foi
introduzida em 2000 para impulsionar o desenvolvimento e a industrialização no
continente.
De
acordo com Silke, as tarifas dos EUA representam, na prática, o fim da Agoa,
responsável por centenas de milhares de empregos.
Para os
sul-africanos, os efeitos serão sentidos não apenas nas exportações, mas também
na inflação, no emprego e na política de taxas de juros.
O Quênia também exporta
roupas para os EUA, mas Washington impôs uma tarifa mais baixa, de 10%, ou
seja, sua economia não será tão afetada quanto a de outros países, o que
pode representar uma vantagem competitiva.
Gana,
Etiópia, Tanzânia, Uganda, Senegal e Libéria também estão entre os países cujas
exportações para os EUA estarão sujeitas à tarifa básica de 10%.
<><>
África de olho em novos mercados
Com uma
economia diversificada e a China como seu principal parceiro, a África
do Sul pode olhar para além dos EUA em busca de novos mercados, disse Silke.
"As
consequências políticas, que estão profundamente ligadas à economia, serão de
longo alcance e podem não ser desejadas por Washington como resultado",
concluiu Silke.
Kako
Nubukpo, economista e ex-ministro do governo do Togo, alertou que as tarifas
atingiriam as nações africanas que já sofrem com dificuldades políticas.
"Os
que foram deixados para trás pela globalização parecem cada vez mais numerosos.
E, portanto, temos visto um aumento nos regimes iliberais, seja na Europa, na
África ou na América", disse à agência de notícias AFP.
Os
países africanos devem promover suas próprias cadeias de valor nacionais e
regionais como amortecedores contra as tarifas, sugere Nubukpo.
Fonte: Por Loudmia Amicia Pierre Louis, no Le
Monde/DW Brasil

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