quinta-feira, 10 de abril de 2025

Revolução, patrimônios difíceis e dignidade no Haiti

Embora grande parte dos monumentos tombados pelos Estados nacionais, herdados na sua maioria do passado colonial, terem sido construídos por pessoas negras escravizadas, na América-Latina e Caribe, ou melhor na Améfrica Ladina, como dizia Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994), poucos são os patrimônios ou monumentos negros. Ou seja, quase nenhum patrimônio é de ressonância afro, fazendo referência aos bens pensados por e para os povos negros do continente, relacionados à sua agência e resistência. No Caribe insular, particularmente, em âmbito da Unesco, são apenas dois: as Blue and John Crow Mountains, na Jamaica, classificado em 2015, caracterizado por ser o espaço de aquilombamento dos negros escravizados e dos indígenas no período colonial que permitiu a prática das suas expressões culturais ainda presentes no país. O outro patrimônio é o Parc National Historique – Citadelle Laferrière, Palais Sans-Souci, Ramiers (PNH-CSSR), na cidade de Milot, no Haiti. O PNH-CSSR é patrimônio negro, legado material da Revolução Haitiana (1791-1804) e ajuda a pensar os conflitos em torno da história e da memória no Haiti.

Muito se tem escrito e ao mesmo tempo pouco se sabe realmente, no Brasil, acerca da Revolução Haitiana. No entanto, lembremos que esta se trata de uma revolução popular, anticolonial, antiescravagista e antirracista que tornou o Haiti, no início do século XIX, o único Estado negro da região e o único cuja independência foi consequência direta da luta dos escravizados por liberdade e pelo resgate da humanidade da mulher e do homem negros. Assim, é a bravura de ancestrais revolucionários, e não o desonrado passado colonial e escravista, que fundamenta a memória nacional, e mantém intensa relevância pública e política.

Vale lembrar que o Haiti recém-independente estava cercado por um mundo atlântico colonial, escravocrata e racista, e a tomada de medidas para assegurar a integridade do novo Estado-nação foi essencial. E, então, Jean-Jacques Dessalines, primeiro chefe de Estado, em 1804 orientou a construção de uma verdadeira rede nacional de fortificações. Entre as várias obras militares erguidas estão justamente as de Henri Christophe, comandante da divisão militar do Norte, que fez construir em Milot a Cidadela Laferrière e o complexo de Ramiers e, depois da sua autoproclamação como rei Henry I do Reino do Haiti, fez erguer o Palácio Sans-Souci.[1]

“Esse povo que queriam de joelhos precisava de um monumento que o colocasse de pé”,[2] e os de Milot, principal cartão-postal do país, se converteram na mais bem-acabada representação da Revolução, sendo tombados como único patrimônio material da humanidade no Haiti pela Unesco em 1982 e como patrimônio nacional em 1995. Os monumentos de Milot foram construídos intencionalmente para serem obras políticas, símbolos projetados para forjar uma identidade nacional que transcendesse o sofrimento da escravização.

No Haiti, portanto, a Revolução de 1791 é o principal evento histórico a ocupar o espaço público e, como acontece com muitas histórias, há aspectos que preferimos ignorar, especialmente os passados sensíveis e os momentos dolorosos, como a escravização e as práticas violentas próprias da modernidade/colonialidade que marcaram a formação do Estado-nação haitiano. Esses capítulos da história nacional não estão desprovidos de evidências materiais, mas, são relegados ao esquecimento.

Como ignorar que São Domingos, a colônia mais rica das Américas no final do século XVIII, devia sua prosperidade ao sistema de plantation e à exploração de uma soma imensa de pessoas escravizadas, sendo a que mais escravizava no Caribe, e o Caribe, por sua vez, a região que mais escravizava nas Américas? No entanto, as milhares de plantations, símbolos de riqueza e poder colonial, espaços de intensa violência, mas também espaços culturais importantes de crioulização, foram relegadas ao esquecimento. As poucas estruturas remanescentes, testemunhas do modo de vida dos escravizados, não receberam o devido valor patrimonial. Portos de desembarque, mercados de escravizados e cemitérios jazem sem preservação. Engenhos, aquedutos, senzalas e casas grandes quase desapareceram. Moendas, caldeiras, sinos e fornos, dispersos em mãos particulares, servem como peças decorativas, despojados de seu significado histórico.

O Haiti, esse país acordeão, de vez em quando pequeno, de vez em quando grande,[3] optou por celebrar a vitória da revolução e silenciar a dor. Apesar de o Haiti, junto com alguns países africanos, ter incentivado a criação do Projeto Rota do Escravo, da Unesco, em 1994, que busca preservar a memória do tráfico negreiro e da escravização, a realidade é que a memória da escravização que remete à tortura e à dor ainda é um tema velado, tanto no Haiti quanto no mundo. Em muitos museus e outros lugares de memória, no Caribe insular, por exemplo, que resgatam esse período da história, enfatiza-se uma história industrial e técnica da produção do açúcar sem enunciar a realidade sensível da escravização, deixando de lado a vivência dos escravizados, os atores centrais dessa história.

É preciso ter em conta que a ausência de patrimônios difíceis, que mobilizam histórias de opressões e memórias sensíveis de dor do período colonial no Haiti, se fundamenta em razões históricas e políticas. As plantations, principal símbolo econômico-social e de opressão da colônia, foram deliberadamente destruídas durante a Revolução Haitiana, eliminando vestígios físicos da escravização. O Estado, por sua vez, priorizou a exaltação da Revolução, construindo uma identidade nacional heroica, de resistência e liberdade. Contudo, é válido dizer, o silêncio sobre esse período e sobre outros momentos traumáticos da história haitiana – cujos efeitos desastrosos ainda perduram, como a ocupação estadunidense (1915-1934), a ditadura dos Duvalier (1957-1986) ou as violências praticadas com a construção e tombamento dos monumentos de Milot pelo Estado – e sua ausência no espaço público, tanto no patrimônio ou como no ensino – sugerem um projeto estatal de ocultação desses passados, e não um esforço coletivo de esquecimento. No entanto, a história da escravização ressoa fortemente na cultura popular, manifestando-se em contos, mitos, lendas, música e artes marciais e essa memória é frequentemente invocada em momentos de reivindicação por melhores condições de vida.

Assim, é possível postular que a decisão do Estado de negligenciar a preservação de memórias sensíveis no espaço público contemporâneo é um ato deliberado da elite econômica e política para manter a ordem vigente e seu status quo. Ao privar a sociedade de patrimônios, que são portadores de valores cognitivos, que transmitem conhecimentos históricos e pedagógicos acerca desses passados, o Estado oculta traumas, condições de vida dos escravizados, consequências sociais da escravização, da ditadura e do imperialismo estadunidense, bem como as formas de resistência popular. Essa omissão obstaculiza a conexão entre esses passados violentos e a realidade atual dos haitianos, marcada pelo racismo, patriarcado, pobreza, falta de cidadania e direitos sociais, civis e políticos.

Em certa ocasião, ao apontar as diferenças nas identificações dos Duvalier e Jean-Jacques Dessalines – este retratado como um sanguinário que executou brancos após o fim da guerra –, no Museu do Panteão Nacional em Porto Príncipe, ouvi que seria inútil rotular os Duvalier como ditadores responsáveis pela morte, exílio e tortura de milhares de haitianos. Ao mesmo tempo, há quem diga que a presença de patrimônios difíceis e de memórias sensíveis no espaço público haitiano busca, de certa forma, deslegitimar o principal mito fundacional da nação. No entanto, a intenção está bem distante disso; trata-se de um exercício para enriquecer nossa compreensão da história. A narrativa heroica não deve impedir o exercício pleno da cidadania, que exige uma visão crítica e multifacetada da história. Ou servir de meio para silenciar, apagar e dificultar a discussão sobre questões internas importantes relacionadas a esses passados que afetam o presente, a vida cotidiana nacional. Entretanto, paralelamente, é crucial que as críticas à Revolução Haitiana sejam construtivas, impulsionando a construção de propostas que abordem os desafios contemporâneos.

A coexistência de memórias da liberdade e do sofrimento é fundamental. Monumentos que evocam a dor servem como um lembrete das atrocidades passadas para a sociedade como um todo, podendo contribuir para que não se repitam. Ao se apropriar dessas memórias, a população pode construir novas narrativas e futuros, exercendo a função política e moral da memória, que promove libertação e justiça. A apropriação desses lugares de memória, em diálogo com políticas públicas como as educacionais, tem o potencial de promover uma apropriação da memória de liberdade para além de uma repetição ritualizada, de auxiliar na superação de desafios coletivos e na resolução de conflitos. Ao trazer à tona as desigualdades persistentes, esses lugares de memória enfatizam a marginalização da maioria da população, e são capazes de impulsionar lutas sociais, a exigência de direito à memória, verdade e reparação.

A forma como se representa o passado não tem tanto a ver com o passado, mas com o presente que se quer criar e com as perspectivas de futuro. Nesse sentido, o patrimônio não é neutro, reflete contradições e lutas sociais, e não deve perpetuar passados idealizados e desconexos com a realidade do presente. É fundamental dialogar com as contradições existentes. Os monumentos do PNH-CSSR de Milot precisam dialogar com o passado glorioso da Revolução de 1791 e as colonialidades que surgem e se reforçam com a formação do novo Estado-nação e que se alastram até os dias atuais. Porém, como conciliar essas histórias para alimentar uma memória que estimule a crítica histórica? Como viabilizar essas demandas em um Haiti marcado por urgências, onde a própria sobrevivência está em risco? Como garantir que o patrimônio, em vez de mero produto de consumo, seja um instrumento de reflexão e transformação social?

O debate sobre patrimônios difíceis é fundamental para que possamos repensar a forma como construímos nossa história e nossa identidade. No caso do Haiti, é preciso encontrar um equilíbrio entre honrar o legado da Revolução Haitiana e reconhecer as feridas coloniais ainda abertas pela escravização e pelas violências da modernidade/colonialidade do Estado. Afinal, é só assim que a memória do passado poderá ajudar a construir um presente e um futuro de liberdade, de dignidade para a população haitiana.

Refletir sobre o Haiti, sua Revolução e sua história contemporânea nos proporciona uma oportunidade de pensar também sobre a história de nossa região como um todo, e vice-versa. Podemos, assim, questionar os patrimônios de ressonância afro e indígena no Brasil ou em qualquer outro país da Améfrica Ladina, e, consequentemente, o lugar ocupado por esses corpos nas respectivas sociedades; as violências do Estado e as políticas de memória e reparação.

¨      Tarifaço de Trump atinge duramente exportações da África

As pesadas tarifas anunciadas por Donald Trump na semana passada geraram uma onda de preocupação em todo o continente africano que atingiu especialmente países pequenos e pobres com pouca relevância na balança comercial dos Estados Unidos.

Lesoto, um reino montanhoso com 2,3 milhões de habitantes totalmente cercado pela África do Sul, é o maior exemplo disso. Conhecido como a "capital do denim da África", o país tem uma economia fortemente dependente da venda de jeans para grandes marcas americanas, como Levi's e Wrangler. Apesar de ser um dos países mais pobres do mundo, foi o mais taxado por Trump, com uma tarifa de 50%. 

O comércio do Lesoto com os EUA – seu segundo maior parceiro comercial, atrás apenas da África do Sul – representa mais de um décimo do PIB do país africano. As vendas para os EUA foram de 237 milhões de dólares (R$ 1,4 bilhão) em 2024. Do outro lado, esse comércio equivale a 0,006% do total das importações dos EUA.

A taxa aplicada "não se baseia em fatos concretos", e o governo está tentando esclarecer a situação com Washington, disse à DW o ministro do Comércio de Lesoto, Mokhethi Shelile.

"Temos, no total, cerca de 11 fábricas que abastecem o mercado americano", disse ele. "E essas empresas empregam mais de 12 mil pessoas, o que representa cerca de 42% do total de empregos no setor têxtil do país."

A maior preocupação do governo agora é com o fechamento imediato de fábricas e a perda de empregos com a guerra tarifária de Trump. "Precisamos viajar com urgência para os EUA para conversar com seus executivos e defender nosso caso", disse Shelile a repórteres nesta terça (08/04).

Para Daniel Silke, diretor da consultoria sul-africana Political Futures Consultancy, a fórmula tarifária imposta por Trump é problemática porque "não reflete as várias nuances que cada país tem em termos de sua própria economia doméstica e estrutura de exportação".

<><> Exportações de veículos da África do Sul atingidas

Entre os países africanos mais prejudicados pelo tarifaço de Trump estão ainda Madagascar, taxada em 47%, Botsuana, em 37% e África do Sul, em 30%.

Essas tarifas podem não afetar o PIB geral da África do Sul, mas atingirão setores importantes como o agronegócio e as exportações de veículos, analisa Silke. Cerca de 10% dos veículos fabricados na África do Sul são exportados para os EUA.

A maior economia da África buscará novos mercados para as exportações agrícolas, mas o vinho e outros produtos frescos sentirão o impacto inicial, acredita Silke.

A Associação de Produtores de Cítricos da África do Sul, por exemplo, alertou que as novas tarifas podem colocar em risco 35 mil empregos relacionados ao cultivo de frutas cítricas no país.

<><> Fim de acordo comercial

A indústria têxtil em Lesoto cresceu em torno do acesso livre de tarifas aos EUA sob a Lei de Crescimento e Oportunidades para a África (Agoa), que foi introduzida em 2000 para impulsionar o desenvolvimento e a industrialização no continente.

De acordo com Silke, as tarifas dos EUA representam, na prática, o fim da Agoa, responsável por centenas de milhares de empregos.

Para os sul-africanos, os efeitos serão sentidos não apenas nas exportações, mas também na inflação, no emprego e na política de taxas de juros.

Quênia também exporta roupas para os EUA, mas Washington impôs uma tarifa mais baixa, de 10%, ou seja, sua economia não será tão afetada quanto a de outros países, o que pode representar uma vantagem competitiva.

Gana, Etiópia, Tanzânia, Uganda, Senegal e Libéria também estão entre os países cujas exportações para os EUA estarão sujeitas à tarifa básica de 10%.

<><> África de olho em novos mercados

Com uma economia diversificada e a China como seu principal parceiro, a África do Sul pode olhar para além dos EUA em busca de novos mercados, disse Silke.

"As consequências políticas, que estão profundamente ligadas à economia, serão de longo alcance e podem não ser desejadas por Washington como resultado", concluiu Silke.

Kako Nubukpo, economista e ex-ministro do governo do Togo, alertou que as tarifas atingiriam as nações africanas que já sofrem com dificuldades políticas.

"Os que foram deixados para trás pela globalização parecem cada vez mais numerosos. E, portanto, temos visto um aumento nos regimes iliberais, seja na Europa, na África ou na América", disse à agência de notícias AFP.

Os países africanos devem promover suas próprias cadeias de valor nacionais e regionais como amortecedores contra as tarifas, sugere Nubukpo.

 

Fonte: Por Loudmia Amicia Pierre Louis, no Le Monde/DW Brasil

 

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