Caso de escravizada na casa de desembargador
de SC entra na Lista Suja
ANA CRISTINA GAYOTTO DE BORBA – esposa
do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba –
é um dos 155 novos nomes incluídos na Lista Suja do trabalho
escravo, atualizada nesta quarta-feira (9) pelo
governo federal.
Num
caso de repercussão internacional, uma
fiscalização conjunta de cinco órgãos públicos concluiu que Ana Cristina
manteve Sônia Maria de Jesus em regime de trabalho escravo doméstico por quase
40 anos na residência da família Borba, em Florianópolis. Ela e o marido, no
entanto, negam qualquer irregularidade.
Também entram a rede varejista Oba Hortifruti
e Marcos Rogério Boschini, genro de um dos condenados pela chacina de Unaí (MG), de 28 de janeiro de 2004, em que quatro
servidores do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) foram assassinados. Além
deles, uma prestadora de serviços do Rock in Rio, pecuaristas invasores da Terra
Indígena Apyterewa (PA), produtores de café e de carvão
vegetal estão na relação.
Divulgada pelo MTE desde novembro de 2003, o
cadastro é atualizado semestralmente. Ele torna públicos os dados de pessoas
físicas e jurídicas responsabilizadas por submeter trabalhadores a condições
análogas às de escravo.
Os nomes são incluídos após os empregadores
autuados em fiscalizações do governo federal exercerem o direito de defesa em
duas instâncias na esfera administrativa, e permanecem no sistema por dois
anos. Eles podem fazer acordos para irem para uma lista de observação, o que
demanda o cumprimento de uma série de critérios e compensações.
Apesar de a portaria que regulamenta a Lista
Suja não impor bloqueio comercial ou financeiro às pessoas citadas, a relação
tem sido usada por bancos e empresas para gerenciamento de risco, dentro e fora
do Brasil. Por essa razão, as Nações Unidas consideram o instrumento um exemplo
global no combate ao trabalho escravo.
Na atualização desta quarta-feira, as
atividades econômicas com maior número de novos empregadores são criação de
bovinos (21), cultivo de café (20), trabalho doméstico (18), produção de carvão
vegetal (10) e extração de minerais diversos (7). Com a atualização, a lista
passa a contar com um total de 745 nomes.
- Caso Sônia
Ana Cristina entrou para a lista após ser
autuada pelos auditores fiscais do MTE em junho de 2023, durante a operação que
resgatou Sônia Maria de Jesus. No auto de infração, o nome de Ana Cristina
aparece como empregadora. Por essa razão, foi ela a incluída na Lista Suja.
Apesar de o casal ser apontado como o responsável pela exploração da
trabalhadora, os auditores identificaram um número maior de elementos de
subordinação entre Ana Cristina e Sônia.
A família sempre negou que Sônia atuasse como
doméstica e alega que ela é membro da família. Durante o resgate, porém, os
auditores-fiscais descobriram que Sônia, aos 50 anos na época, trabalhava para
a família desde os 9, quando foi levada de uma creche na Grande São Paulo pela
mãe de Ana Cristina, Maria Leonor Gayotto.
Sônia trabalhava na residência dos Borba
cuidando de Maria Leonor e exercendo tarefas domésticas, como arrumar as camas,
passar a roupa e lavar a louça. Além de não ter carteira de trabalho, salário,
descanso remunerado, férias, 13º e outros direitos, Sônia também tinha passado
a maior parte da vida sem documento de identidade, o qual obteve apenas em
2019.
Cega de um olho e surda, Sônia também não
havia sido alfabetizada em Libras (língua brasileira de sinais) nem em
português, comunicando-se por gestos. Segundo a fiscalização, ela fazia
refeições com as demais empregadas e dormia ora em um quarto anexo à área de
serviço da residência (onde ficavam seus pertences), ora em um quarto de
hóspedes dentro da casa.
Após o resgate, o casal negou todas as
acusações, disse que Sônia foi criada como filha e entrou com ação para ela ser
restituída ao convívio dos Borba. Com aval do STJ e do STF, tiraram Sônia de um
abrigo e a levaram de volta para casa, apenas três meses após o resgate. A
situação levou organizações sociais e sindicatos a pedir à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à OEA (Organização dos Estados
Americanos), que o Brasil seja questionado sobre o caso.
O processo ainda deve ser analisado pela 2ª
Turma do Supremo. O desembargador e a esposa ingressaram também com pedido de
paternidade socioafetiva. A advogada da família foi procurada novamente pela
reportagem, mas não houve retorno. O espaço segue aberto a manifestações.
- Fazenda de
condenado pela chacina de Unaí entra na Lista Suja
Quem também entrou para o cadastro foi Marcos
Rogério Boschini, administrador da fazenda São Paulo, em Água Fria de Goiás
(GO), onde 84 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão
na lavoura de cebola.
O dono da propriedade onde ocorreu o resgate
– e sogro de Boschini – é o ex-prefeito de Unaí (MG) Antério Mânica, condenado
e preso como um dos mandantes da chacina de
Unaí. Em 28 de janeiro de 2004, os
auditores-fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista
Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira
foram executados em uma fiscalização rural de rotina em fazendas no noroeste de
Minas Gerais.
No caso da lavoura de cebola, o alojamento
que atendia aos trabalhadores estava superlotado, com mofo e forte odor,
segundo a equipe de fiscalização. Abrigava os 84 resgatados, apesar de o espaço
comportar não mais que 30 pessoas. Por vezes, a fossa transbordava espalhando o
mau cheiro.
Cerca de 500 famílias do MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra ocuparam a fazenda na segunda-feira (7). Segundo
o movimento, a área é terra pública e teria sido
adquirida de forma ilegal
À Repórter Brasil, Boschini considera
uma “injustiça” a inclusão de seu nome na lista. “O próprio MTE liberou as
atividades para seguimento normal, com apenas três dias úteis após a
fiscalização, dando por cumprida todas a exigências por eles feitas”, declarou
o vereador. “As falhas foram administrativas simples”, afirmou.
- Pecuária tem
mais nomes de empregadores incluídos
A pecuária lidera o ranking de atividades com
mais nomes novos na lista, com 21 inclusões. Quatro casos ocorreram durante a operação
de desintrusão da Terra Indígena Apyterewa, em São
Félix do Xingu (PA), realizada no final de 2023.
Um dos trabalhadores resgatados atuava na
fazenda Sol Nascente, de Antônio Borges Belfort (PL), vereador do município.
Segundo o relatório de fiscalização, na propriedade ocupada por Belfort dentro
da área indígena não havia água potável na frente de trabalho, nem banheiro
disponível para o empregado, que precisava “fazer suas necessidades
fisiológicas no mato, como os animais”.
O vereador é réu na Justiça Federal por criar
gado ilegal em terra indígena e usar trabalho escravo na propriedade. O
político era um
dos maiores criadores de gado na Apyterewa,
segundo os cálculos do Ministério Público Federal do Pará, que contabilizou
quase mil cabeças comercializadas pelo fazendeiro com origem na área
protegida.
Questionado pela Repórter Brasil,
Belfort disse que tinha uma casa “dentro de uma situação indígena” e que “nunca
um trabalhador foi maltratado”. “Do jeito que a pessoa fizer aqui, para esse
pessoal do Ministério do Trabalho é trabalho escravo”, declarou. “Eu vou provar
na Justiça. Quero que eles me provem a situação de trabalho escravo lá”,
concluiu.
O advogado de Belfort, Marcos de Souza
Boechat, afirmou à reportagem que o flagrante de trabalho escravo contra
Belfort foi uma “situação forjada” do governo federal, no contexto da desintrusão
da Apyterewa, tendo em vista que seu cliente era uma liderança entre os
ocupantes não indígenas do território protegido. “Eles [servidores federais]
queriam causar uma intimidação, para ele [Belfort] parar de brigar pelos demais
associados”, declarou Boechat.
Outro caso da pecuária envolve o ex-vice
prefeito de Tucumã Wanderley Dias Vieira (PSD). Em outubro de 2023, dois
trabalhadores foram resgatados na fazenda Primavera, que pertence ao político e é vizinha à TI Apyterewa.
Eles trabalhavam sem registro e dormiam em meio a galões usados para armazenar
agrotóxicos.
A Repórter Brasil o procurou e
aguarda um posicionamento.
- Oba Hortifruti
entra na Lista Suja de trabalho escravo
O sacolão Oba entrou no cadastro por submeter
21 empregados ao trabalho análogo ao de escravos em uma de suas lojas na zona
norte de São Paulo (SP). De acordo com a fiscalização, realizada em julho de
2023, os trabalhadores eram funcionários da unidade que atuavam no corte de
vegetais e no atendimento aos clientes, entre outras funções, e estavam
alojados em uma residência próxima.
Segundo a fiscalização, eles dormiam em
colchões sujos e malcheirosos em uma casa atingida por um incêndio semanas
antes, onde ainda pairava o cheiro de material queimado. O relatório da
autuação, acessado pela reportagem, ressalta que ainda havia o risco de
incêndio, em razão de fios queimados e desprotegidos no local.
Sem receberem roupas de cama, os
trabalhadores usavam trapos e cobertores obtidos por conta própria. Repousavam
também em sofás encardidos e com revestimentos rasgados, localizados em uma
área externa da residência.
O alojamento não tinha armários, e os
banheiros eram úmidos e tinham cheiro forte de suor e urina. Na cozinha, a
fiscalização encontrou utensílios e eletrodomésticos imundos, que se misturavam
a pratos com restos de comida.
Rede com mais de 70 unidades, especialmente
no estado de São Paulo, mas também em Goiás e Distrito Federal, o Oba assinou
um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho após o
resgate. A empresa se comprometeu a não reincidir no crime de trabalho escravo
e a arcar com as reparações de danos morais individual e coletivo.
A empresa foi procurada pela reportagem, mas
não retornou. O espaço segue aberto a manifestações.
- Terceirizada do
Rock in Rio entra para o cadastro
A FBC Backstage Eventos Ltda entrou na lista
por submeter
14 trabalhadores a condições de trabalho análogas ao de escravo durante a
edição de 2024 do Rock in Rio, conforme
já noticiado pela Repórter Brasil. A empresa, que havia sido contratada
pela Rock World, organizadora do evento, se recusou a assinar um TAC com o MPT.
Segundo a fiscalização, parte dos
trabalhadores era levada a dobrar a jornada por dias seguidos na esperança de
receber mais e chegava a trabalhar por 21 horas em um único turno.
“Eles começavam a jornada às 8h e iriam até
as 17h. Quando dava o horário, o supervisor perguntava: quem quer dobrar? E
eles iam até as 5h da manhã. O problema é que já retornariam três horas
depois”, afirmou à época o auditor fiscal do trabalho Alexandre Lyra, um dos
coordenadores da operação. Em razão dessa oferta de pagamento maior, eles
ficavam e dormiam no chão, em cima de jornal, papelão, usando mochila de
travesseiro e utilizando banheiro improvisado.
Os fiscais do trabalho encontraram os 14
trabalhadores precariamente sobre papelões, sacos plásticos ou lonas, alguns
com cobertores, demonstrando que havia um planejamento prévio para pernoitar no
local. Parte das trabalhadoras resgatadas tomava banho de canequinha no
banheiro feminino pela falta de chuveiro. Para garantir que homens não
entrassem no local durante seu banho, tinham que tirar a maçaneta da porta do
sanitário.
As vítimas atuavam como carregadores de
grades, equipamentos, bebidas e estruturas metálicas, na montagem do festival e
na limpeza de alguns espaços. Elas haviam sido contratadas com a promessa de
receber diárias que variavam de R$ 90 a R$ 150, a depender do número de horas
trabalhadas, mas os valores prometidos não foram totalmente pagos.
A empresa foi procurada pela reportagem, mas
não retornou até o momento.
- Constitucionalidade
da Lista Suja
O Supremo Tribunal Federal reafirmou a
constitucionalidade da lista, por nove votos a zero, ao analisar a ADPF
(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 509, ajuizada pela Abrainc
(Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), em setembro de 2020.
A ação sustentava que o cadastro punia
ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o
que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que
o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria
interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é
por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.
O relator destacou que um nome só vai para a
relação após um processo administrativo com direito a ampla defesa.
- Trabalho escravo
hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em
maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que
alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que
transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas
sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação
brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de
trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às
de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal,
quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho
forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida
(um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições
degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e
a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado
à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados
estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas,
cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a
siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em
oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho
doméstico.
Fonte: Repórter Brasil

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