O
que está em jogo na Segurança Pública do Rio?
O
julgamento do mérito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
635, a ADPF das Favelas, no Supremo Tribunal Federal (STF), evidenciou a
gravidade e o alcance da violência do Estado em operações policiais quando
ocorrem em favelas no Rio de Janeiro. O plano de redução da letalidade
policial, principal exigência dos movimentos de favelas na luta contra a
violência de Estado, foi apenas parcialmente homologado. Deixou espaço para a
atuação violenta das polícias, tal como presenciamos mais uma vez na última
semana na Ladeira dos Tabajaras, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, com o
uso de helicópteros atiradores, assassinatos e invasões de domicílio. Nesse
sentido, é preciso que ampliemos a discussão sobre o que está em jogo na
segurança pública do Rio de Janeiro, principalmente em um período em que as
forças de segurança do Estado e do município se articulam para uma maior
repressão e militarização de territórios e populações.
A ADPF
das Favelas, protocolada em 2019, ganhou força após a morte brutal do
adolescente João Pedro, de 14 anos, dentro de casa, em São Gonçalo, no Rio de
Janeiro, durante uma operação policial em maio de 2020. O corpo negro de um
menino, executado dentro do que deveria ser seu lugar de proteção, escancarou o
que as favelas já denunciavam há décadas: o Estado não entra nesses territórios
para garantir direitos, e, sim, para violar vidas. A morte de João Pedro
mobilizou coletivos, os movimentos de favelas, movimentos jurídicos e
organizações de direitos humanos a exigirem limites para a atuação policial,
resultando na construção da ADPF como ferramenta de defesa da vida nas favelas.
Ainda assim, mesmo com liminares e decisões, as operações nunca cessaram de
fato. Dados recentes do Instituto Fogo Cruzado apontam que, em 2021, as ações
policiais em favelas resultaram em 2.098 pessoas baleadas, sendo 1.084 mortas e
1.014 feridas, que representam 5 baleados a cada 24 horas. No mesmo ano, 17
crianças e 43 adolescentes foram baleados na Região Metropolitana do Rio de
Janeiro. Além disso, em 2023, houve, em média, 3 chacinas policiais por mês.
É
importante dizer que consideramos, nesse caso, chacina policial um evento
violento em que três ou mais pessoas civis são mortas. Em geral, esses
massacres são diretamente associados a grupos de extermínio, cuja atuação conta
com a participação de agentes de segurança da ativa fora do período de serviço.
Nos últimos anos, esta tem sido uma prática cada vez mais realizada por agentes
de segurança em serviço durante as operações sob o aval do Estado. No Rio de
Janeiro, há décadas, as operações policiais em favelas são utilizadas como o
principal instrumento de ação pública destinado ao controle da criminalidade,
servindo como a principal justificativa do Estado para violação de direitos de
seus moradores(as). Porém, o controle do que é criminalizado ou não pelo Estado
– parte do problema do crime e da violência – não pode continuar impactando
diretamente na vida de milhares de moradores(as) que representam a maior parte
da população da cidade.
As
chacinas policiais acontecem em toda a região metropolitana, mas não se
distribuem de forma igualitária. Segundo os dados do Instituto Fogo Cruzado, em
2023, na Zona Sul da capital, foram registradas 9 chacinas, 4 delas na favela
da Rocinha. Já na Zona Norte, são 73 casos que deixaram 373 pessoas mortas. Na
Baixada Fluminense foram mapeados 72 casos, com 255 mortos. E no Leste
Metropolitano, 70 casos resultaram em 252 mortes. O Complexo do Salgueiro,
conjunto de favelas em São Gonçalo (Leste Metropolitano), foi a localidade com
mais chacinas registradas no período. Apenas lá, 14 chacinas policiais
resultaram em 66 mortes. Para que se tenha dimensão do que acontece no
Salgueiro, as outras quatro localidades com mais chacinas são: Complexo da Maré
(10 ocorrências, 51 mortos), Complexo da Penha (8 ocorrências, 55 mortos),
Cidade de Deus (8 ocorrências, 27 mortos) e Vila Kennedy (8 chacinas, 26
mortos).
O
Dicionário de Favelas Marielle Franco, em parceria com o Grupo de Estudos dos
Novos Ilegalismos (GENI-UFF), o Grupo CASA (IESP-UERJ) e o Radar Saúde nas
Favelas (Fiocruz) realizou um levantamento das chacinas mais letais durante a
série histórica de 1990-2022, dando destaque aos anos de 2019-2022. Três das
cinco maiores chacinas policiais da história recente do Rio de Janeiro
ocorreram neste período, sob a vigência da ADPF 635, interposta pelo Supremo
Tribunal Federal, que restringiu a realização de operações policiais enquanto
durasse a pandemia de covid-19. A maior delas, que resultou em 28 mortes,
ocorreu no bairro do Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, e foi nomeada pela
Polícia Civil de “Operação Exceptis”, em alusão à excepcionalidade das
operações interpostas pelo Supremo. Na ocasião, o representante da Polícia
Civil criticou o “ativismo judicial” que estaria “impedindo o trabalho da
polícia”. Pouco mais de um ano depois, a Chacina da Penha resultou em mais 23
mortes.
• ADPF das Favelas: insegurança e
descontrole das polícias no cotidiano das favelas e periferias
A
implementação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida
como ADPF das Favelas, iniciada em junho de 2020, visava reduzir a violência
policial nas favelas do Rio de Janeiro, em especial, durante o período da
pandemia, se baseando em uma série de estudos e publicações de instituições
locais e movimentos sociais a respeito da alta letalidade policial. Em 2019,
antes da ADPF, o estado registrou 1.814 mortes decorrentes de ações policiais.
Durante o período de vigência da ADPF, observou-se uma queda significativa
nesses números: em 2024, foram contabilizadas 699 mortes, representando uma
redução de mais de 61%. Entretanto, como vimos, apesar dessa expressiva
diminuição, a violência policial persistiu mesmo durante o período de sua vigência.
As
razões apresentadas para o não cumprimento da ADPF das Favelas se dividiram em
dois principais argumentos. O primeiro, de ordem operacional, alegava que os
confrontos armados teriam início a partir da reação de grupos criminosos diante
das ações legalmente conduzidas pelas forças policiais. O segundo, de caráter
institucional, sustentava que as operações ocorreriam dentro da legalidade,
sendo previamente registradas, comunicadas e planejadas, com a devida
instauração de inquéritos policiais supervisionados pelo Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro.
Esses
argumentos, no entanto, não levam em conta um dos elementos centrais da ADPF: a
garantia dos direitos humanos para moradores e moradoras de favelas e
periferias que são atravessados cotidianamente pela violência do Estado. O
conjunto das recomendações que constam no pedido tem como base, por exemplo, a
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados
Americanos (OEA), que considerou o Estado brasileiro culpado no “Caso Favela
Nova Brasília”, em 2017, levando em consideração protocolos internacionais. Ou
seja, a ADPF das Favelas pretende incidir sobre a urgência do controle das
polícias e seus impactos nas formas de vida nesses territórios.
Uma das
principais solicitações feitas na ação apresentada ao STF foi, nesse sentido, a
criação de um plano de redução da letalidade policial, com o objetivo de
garantir o direito à vida nas favelas e periferias. Neste plano, seria
considerado o uso de câmeras nas fardas policiais, o uso de dispositivos de
gravação de áudio, a presença de socorristas durante as operações, diretrizes
para investigações mais rigorosas sobre abusos e mortes nas operações e a
priorização de investigações cujas vítimas fossem crianças e adolescentes, por
exemplo. Em 2022, o Supremo decretou que o governo do estado do Rio de Janeiro
apresentasse o documento, que foi publicado por meio de um decreto um mês
depois – no entanto, não apresentando uma real mudança na atuação das polícias.
Segundo
dados da Redes da Maré, apenas no conjunto de favelas da Maré, na Zona Norte do
Rio de Janeiro, das 42 operações policiais ocorridas em 2024, havia ambulância
em apenas cinco delas, enquanto o uso de câmera por agentes aconteceu em
somente nove desse total. Outro dado mostra que de 2016 a 2024, houve 148
mortes em operações policiais na região da Maré e em apenas 11 dessas foram
realizadas perícias. Além disso, as operações continuam sendo feitas próximas
às escolas: em 88,1% das operações de 2024, veículos blindados e policiais a pé
transitaram dentro e no entorno escolar.
Nesse
sentido, entidades da sociedade civil que participaram das mobilizações da ADPF
635 enviaram um pedido ao STF para rejeitar o então plano de redução da
letalidade policial apresentado pelo governo. Argumentam que o documento não
contou com a participação da população e não representa o que havia sido
demandado previamente, como indicadores quantitativos, prazos concretos,
previsão de recursos financeiros e objetivos. Fransérgio Goulart, diretor
executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, comenta sobre o
retrocesso da decisão do STF no julgamento realizado em 3 de abril de 2025. Em
entrevista ao Globo, ele enfatiza que “a favela perdeu. A ADPF era sobre
controle da polícia, não sobre as favelas. Solicitamos um plano de redução da
letalidade policial, e o STF encomendou um plano de ocupação territorial para
as favelas!”.
Diferentes
movimentos e organizações de favelas e sociais se pronunciaram diante da
decisão, que desconsidera grande parte da luta histórica e da forte campanha
realizada nos últimos cinco anos. Itamar Silva, morador do Santa Marta e
militante do movimento de favelas do Rio de Janeiro, aponta a sua decepção com
as conclusões da ADPF 635 apresentadas. Para ele, foram “cinco anos em que o
governo do Estado desrespeitou, sistematicamente, as orientações do STF que
visavam diminuir a letalidade policial no Rio de Janeiro. O número de mortes
neste período poderia ter sido muito menor, caso o Estado respeitasse
integralmente as decisões e orientações da ADPF. (…) Com esta decisão, aumenta
o risco de que João Pedro, 14 anos, assassinado dentro de casa, em uma incursão
mal explicada pelos policiais, no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo e que
aguarda, há seis anos, julgamento, não dê em nada.”
Além do
alto investimento em poder bélico, observado no levantamento realizado sobre o
ano de 2021 pela IDMJRacial, observa-se um enfraquecimento progressivo dos
mecanismos de controle social sobre a atuação policial. Um exemplo emblemático
foi a dissolução, em abril de 2021, do Grupo de Atuação Especializada em
Segurança Pública (GAESP), vinculado ao Ministério Público, que desempenhava um
papel fundamental no acompanhamento de casos de violência letal e violações de
direitos humanos cometidas por agentes de segurança nas favelas. O GAESP
promovia transparência por meio do acesso à informação e mantinha um diálogo
contínuo com movimentos sociais, familiares de vítimas e lideranças
comunitárias, funcionando como um canal direto de interlocução entre sociedade
civil e promotores encarregados das investigações. Após quase quatro anos, em
fevereiro de 2025, o MPRJ anunciou a reativação do grupo.
Ainda
sobre o Ministério Público, movimentos e organizações sociais começaram a impor
cobranças abertas ao órgão para que houvesse execução efetiva do seu trabalho
de controle externo da atividade policial. O Fórum Popular de Segurança Pública
do Rio de Janeiro chegou a organizar um ato em frente ao prédio do MPRJ,
mobilizando e apontando as consequências do silenciamento do MP diante da
reiterada situação. Essa cobrança acontece até os dias atuais, sendo pautada
ainda por órgãos e pessoas que são diretamente impactadas com essa situação.
• Militarização e securitização da cidade:
a disputa entre os programas de segurança pública
Paralelamente,
na última semana, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou a proposta
de armamento da Guarda Municipal do Rio de Janeiro – que já faz parte do debate
público há, pelo menos, 15 anos. A GM-Rio atualmente é a maior guarda desarmada
do país, levantando também sérias preocupações diante de um cenário já marcado
por excessos e alta letalidade policial. Embora defensores da medida argumentem
que o armamento ampliaria a capacidade de resposta da corporação frente à
criminalidade, a experiência de outros estados não sustenta essa promessa. Em
municípios como Vitória (ES), onde a guarda é armada desde 2008, não há
evidências consistentes de que essa mudança tenha contribuído para uma redução
significativa nos índices de violência urbana ou para o aumento da sensação de
segurança da população. Além disso, dados do IBGE apontam que cerca de 30% das
guardas municipais no país já operam com armamento, muitas vezes sem um plano
estruturado de formação continuada, controle externo ou integração com políticas
de prevenção.
No caso
do município do Rio de Janeiro, o armamento deste grupamento civil corre o
risco de aprofundar a lógica militarizada da segurança pública, transferindo
para uma força originalmente voltada à mediação comunitária a cultura do
confronto, sem garantir os devidos mecanismos de responsabilização. Em vez de
ampliar o uso da força, o desafio urgente deveria ser repensar as estratégias
de segurança a partir de modelos que priorizem a proteção da vida, o
fortalecimento dos vínculos comunitários e o respeito aos direitos humanos.
Dado o histórico de violações de direitos básicos que acompanham as histórias
dos territórios de favelas e periferias, é natural que a lógica de violência se
replique para outras esferas; contudo, não se trata de algo que torne o cenário
mais aceitável. Para que seja construída uma política de segurança pública que,
de fato, ofereça segurança para toda a população, o município também deve
apresentar um plano capaz de garantir o respeito aos direitos de cidadania –
não aprofundar a policialização e a criminalização.
Nas
redes sociais, Maria dos Camelôs, coordenadora-geral do Movimento Unificado dos
Camelôs (MUCA), relata “eu tenho filho preto, os camelôs da cidade do Rio de
Janeiro são pretos, a gente vê vários camelôs com tornozeleira eletrônica que
saem do mundo errado e quer (sic) voltar pra sociedade, e a gente sabe que
essas pessoas vão ser fiscalizadas, vão ser interpeladas pela Guarda
Municipal”. Seu receio representa o que está diariamente estampado nas
notícias: pessoas negras são as principais vítimas da violência policial.
Outros marcadores sociais intensificam essas dinâmicas de violência, como
gênero e território, além de atravessamentos como trabalho – se a pessoa é
camelô, por exemplo – ou registros de antecedentes criminais. Uma pesquisa
publicada pelo Instituto Sou da Paz demonstrou como, além de sofrerem com a
alta mortalidade, homens negros são o grupo que mais busca (68%) ajuda no
sistema de saúde devido a agressão armada.
A
coordenação de setores da segurança pública a nível nacional, estadual,
municipal e local tem feito parte de uma estratégia de governo aprimorada, pelo
menos, nos últimos 15 anos, em diferentes territórios. Em 2010, por exemplo,
foi aprovada na cidade de São Paulo a “Operação Delegada”, institucionalizada
por um convênio firmado entre o governo do estado, por meio da Polícia Militar,
e a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenadoria de Subprefeituras, que
permite que policiais em dias de folga trabalhem até 96 horas por mês para a
Prefeitura, ganhando uma gratificação extra pela municipalidade. O que foi
chamado por alguns pesquisadores de “gambiarra jurídica”, no entanto, fere a
divisão constitucional dos papeis de cada órgão de controle, diluindo as especificidades
das atribuições de fiscalização em prol da ampliação do espaço de atuação da PM
ao abrir uma nova cena do controle social urbano.
Exemplos
de outros municípios brasileiros demonstram como o armamento da Guarda
Municipal não deve ser uma saída para a violência urbana, visto que
possibilita, inclusive, mais episódios de agressões e mortes. Apesar de criadas
para proteger o patrimônio urbano, no estado de São Paulo as Guardas Civis
Municipais (GCM) passaram a atuar repressivamente e exercer atividades da
polícia. Em apenas 7 anos, 197 vítimas foram mortas por guardas municipais no
estado, além de outras 12 mortes em ações conjuntas com as polícias Civil e
Militar, sem identificação da autoria. Em Osasco, na Região Metropolitana de
São Paulo, o secretário-adjunto de Segurança e Controle Urbano foi assassinado
por um Guarda Civil Municipal nas dependências do prédio da Prefeitura, após uma
reunião com agentes sobre mudança na escala de trabalho. Na cidade de São
Gonçalo dos Campos, na Bahia, onde também há atuação armada da Guarda
Municipal, dois guardas foram presos suspeitos de praticarem episódios de
tortura e lesão corporal grave. No Paraná, após uma abordagem de trânsito que
gerou uma perseguição, um homem foi morto por um guarda com um tiro na cabeça.
No
município do Rio de Janeiro, desde os processos de urbanização e militarização
intensificados no período dos megaeventos na cidade, a Prefeitura, sob gestão
de Eduardo Paes, tem investido na formação de uma rede sociotécnica de comando
e controle, sendo o Centro de Operações Rio (COR) o seu principal legado. Com o
apoio de diversos setores do empresariado, têm sido firmadas uma série de
convênios e parcerias ligando o Estado e as forças de defesa e segurança a
diversas empresas, novas ou já tradicionais no ramo de tecnologias de guerra,
que passam a cooperar com o Estado, mobilizando negócios com altos custos em
forma de investimentos para uma cidade em desenvolvimento, enquanto têm como
planejamento estratégico e legado securitário a ocupação militar. Debatemos
sobre isso, inclusive, em um anterior artigo aqui publicado em janeiro deste
ano.
Cerca
de 30 órgãos (secretarias municipais e concessionárias de serviços públicos)
seguem atuando de maneira coordenada no edifício-sede do COR, na intenção de
monitorar a operação da cidade e acionar com maior eficácia os responsáveis
para atendimento às demandas, como a Polícia Militar, a Guarda Municipal, a
Polícia Civil ou o Corpo de Bombeiros. Hoje, mais de 3.800 câmeras são
monitoradas pelos agentes lotados no COR, que também têm acesso a outras
gerenciadas por concessionárias de serviços públicos, como o programa Luz
Maravilha, e privados, como a startup Noah, a Waze, a Uber e a Surf Connect.
Nesse
sentido, a Prefeitura passa a contemplar a vigilância da cidade a partir do
acesso a mecanismos mais eficazes de identificação e coordenação de ações,
visto que também se torna possível integrar as informações sobre ocorrências da
Secretaria de Segurança e das polícias à plataforma de gestão urbana do COR.
Desde 2017, por exemplo, o projeto Rio+Seguro, apresentado no Plano Estratégico
2017-2020, reafirmou as parcerias iniciadas ao dar importância ao “esforço de
cooperação” do governo, mobilizando diferentes técnicos e representantes das
secretarias e órgãos envolvidos. O projeto prevê a integração das atividades
das Guardas Municipais com as forças de segurança do estado e, através do Fundo
Especial de Ordem Pública (FEOP) e do Programa Estadual de Integração na
Segurança (PROES), realiza o pagamento de agentes da Polícia Militar dos
batalhões lotados para atuação conjunta em suas horas de folga. No entanto,
nenhuma dessas ações estão hoje apresentadas no Plano Municipal de Segurança
Pública – que, afinal, nunca foi realizado e segue sendo ignorado – e fazem
parte de interesses políticos de certos setores do governo.
• Tecnoviolências: o descontrole no uso de
tecnologias de vigilância e controle
Um dos
grandes legados da coordenação de setores públicos e privados como técnica de
governo da segurança pública é toda a infraestrutura que integra milhares de
câmeras espalhadas pelo espaço urbano e modal da cidade, e os diversos
softwares de análise de dados e produção de informações, que são operados por
diferentes agentes das forças de segurança concentrados em um mesmo ambiente
tecnológico que se pressupõe a base da inteligência das forças táticas de
segurança. Nesse sentido, o processo de securitização da cidade se utiliza de
diferentes dispositivos e técnicas integradas para manter a vigilância e o
controle, sitiando territórios e policiando determinados corpos e condutas –
como, por exemplo, os corpos que transitam nas fronteiras entre o que é considerado
ilegal, informal e ilícito.
No
debate mundial, e não diferentemente no Brasil, a regulação de tecnologias
digitais tem sido um campo de disputas entre instituições públicas com visão
tecnocrata e atores da sociedade civil que defendem os direitos digitais sob o
olhar da ética e dos direitos humanos. A União Europeia foi a primeira a
promulgar a Lei sobre o tema, em 2021. Atualmente, o Senado Brasileiro aprovou
o projeto de lei (PL) 2338, que, ainda neste ano, deve ser votado na Câmara.
Antes da votação, o processo de construção desse texto na Comissão Temporária
Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), tentou excluir especialistas
negros, protagonistas nos debates sobre direitos digitais e sociedade. Após
muita incidência junto à sociedade civil, a CTIA recebeu as contribuições desses
especialistas e coletivos negros, como o Aqualtune Lab, que elaborou uma
redação para tornar o PL explicitamente antirracista, que reinvidica a
regulamentação das câmeras nos uniformes policiais, e que sejam proibidos os
usos de drones bélicos – conhecidos como armas autônomas (SSA), por exemplo.
A
violência imposta nos territórios tem sido cada vez mais ampliada com as
tecnologias digitais, e é o que demonstram os dados da pesquisa “Lentes
Opacas”, do O Panóptico. O relatório fez um mapeamento dos estados que usam
tecnologias de reconhecimento facial (TRF). São 264 projetos ativos, sendo que
a Bahia foi a que mais prendeu pessoas negras – 1.750 pessoas em 6 anos. Não há
transparência no uso de dados. A maioria dos estados não informa o erro de
prisão por TRF. Ou seja, a tecnologia erra, prende inocentes e continua sem
fiscalização. Para uma internet que respeite a vida e não reproduza mais
violência, é urgente a regulação das redes digitais para que se protejam
direitos fundamentais.
Por
exemplo, no Rio de Janeiro, após a chacina policial no Jacarezinho, em 2021, a
PMERJ passou a intensificar a aplicação das tecnologias de reconhecimento
facial. Seu objetivo era começar a implementação do sistema de monitoramento
pelo Jacarezinho e logo após ampliar para a capital e a Região Metropolitana. A
tecnologia utilizada pela PMERJ é um software russo banido da União Europeia
por “prover suporte técnico e material para sérias violações de direitos
humanos na Rússia, incluindo prisões e detenções arbitrárias, e violações ou
abusos de direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação”. As câmeras
de reconhecimento reproduzem casos de racismo por meio digital constantemente.
Importante
lembrar também que outra estratégia de reconhecimento facial utilizada pelas
polícias é o álbum de suspeitos nas delegacias. Um relatório produzido pela
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro concluiu que pelo menos 83% dos
erros eram feitos contra pessoas negras, que passavam em média 181 dias presas
indevidamente. O motoboy Claudio Junior Rodrigues de Oliveira, de 24 anos, foi
acusado de roubo 14 vezes e absolvido, até o momento, de 13 acusações. Ele era
identificado por fotos no álbum de suspeitos, mas quando as vítimas o
encontravam pessoalmente, não o reconheciam enquanto autor dos crimes. Casos
como esse são recorrentes todos os dias e, em casos que dependem de tecnologias
que utilizam características e padrões biométricos da face, a reprodução do
racismo algoritmo fica ainda mais evidente. A psicóloga Daiane de Souza Melo,
por exemplo, estava participando de uma conferência sobre igualdade racial em
Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, quando foi abordada por um agente do programa
Segurança Presente. Sua imagem havia sido reconhecida no sistema de
monitoramento e associada à uma mulher com mandado de prisão em aberto. Todos
que estavam presentes no evento evidenciaram as diferenças físicas entre Daiane
e a mulher, mas ela só foi liberada após apresentar seu documento de
identificação aos policiais.
A
constituição do problema da violência urbana nas grandes capitais brasileiras,
como o Rio de Janeiro, remonta em grande medida ao acúmulo histórico de
desigualdades sociais e econômicas, às dificuldades de absorção de setores da
população pelo mercado de trabalho e a sua consequente marginalização, além da
urbanização acelerada, da dificuldade de incorporação de setores da população
ao mercado de trabalho, do racismo, da descrença na capacidade do Estado em
mediar conflitos, e das práticas dos grupos de extermínio fundados no interior
da polícia. Ou seja, um conjunto de fatores históricos que não será resolvido
apenas por meio de novas e mais articuladas formas de policiamento e controle.
Como
apresentado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF), as
dinâmicas dos grupos armados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e, nesse
sentido, as formas de territorialização da violência, têm sido alteradas
constantemente, trazendo novos conflitos para a cidade e seus(as)
moradores(as). Décadas de descontrole sobre as polícias e operações sem
prestação de contas favoreceram a expansão do controle territorial armado sob
diferentes formatos. O Mapa Histórico dos Grupos Armados, inclusive, demonstra
que 85% do crescimento do controle territorial armado se deu em áreas antes não
dominadas, onde o baseamento policial independia de operações. Ademais, é
possível perceber que há duas vezes mais operações policiais em áreas de
facções do tráfico do que de milícias, mesmo que as milícias controlem uma
superfície territorial maior. A inteligência, portanto, deve ser estratégica –
caso a segurança pública tenha realmente como objetivo a garantia de direitos a
toda a população. E, no atual cenário, as vítimas que se mantêm sob a mira das
variadas formas de violência seguem sendo os moradores e moradoras mais
vulnerabilizados pela lógica de atuação desse Estado.
Fonte:
Clara Polycarpo, Gizele Martins, Juliana Pinho, Kharine Gil, Flavinha Cândido e
Isabel Coronel, em Outras Palavras

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