Michael Roberts: Argentina – do
anarcocapitalismo à austeridade
No dia 14 de abril, o FMI anunciou que
concordou em emprestar ao governo argentino de Javier Milei mais US$ 20 bilhões
(além das dívidas existentes contraídas no passado) para ajudar o governo a
cumprir suas obrigações de dívida e restaurar as suas reservas cambiais em
rápida queda. O acordo de empréstimo liberará US$ 12 bilhões iniciais, com mais
US$ 3 bilhões chegando no final do ano.
O governo diz que deve receber US$ 28 bilhões
somente em 2025, incluindo US$ 15 bilhões de dinheiro do FMI, US$ 6 bilhões de
outros credores multinacionais, US$ 2 bilhões de bancos globais e US$ 5 bilhões
da extensão de um swap cambial com a China. Javier Milei se gabou de que “o que
o seu governo terá uma montanha de dólares”; eis que tem a meta de dobrar as
reservas cambiais brutas para US$ 50 bilhões.
Com esses fundos, o governo planeja
“libertar” o peso argentino dos controles, permitindo que ele flutue livremente
dentro de uma faixa móvel. O objetivo é expandir a banda atual em 1% a cada
mês.
O governo e o FMI afirmam que isso acabará
por alcançar “uma taxa de câmbio totalmente flexível no contexto de um sistema
bimonetário, onde o peso e o dólar americano coexistem”. Em outras palavras, os
especuladores financeiros e investidores acreditarão que o peso está forte o
suficiente para ser totalmente conversível em dólar, sem que haja uma ameaça de
que sobrevenha uma desvalorização repentina.
Isso não tem sido possível há décadas, por
causa das enormes dívidas em dólares do governo e da falta de reservas cambiais
para lastrear o peso. Javier Milei tem como meta eliminar os controles cambiais
já no final deste ano, ou antes, se o FMI acelerar os pagamentos. “Os controles
cambiais não existirão mais em 1º de janeiro (2026). Talvez mais cedo” – disse
ele.
Como resultado da notícia, a taxa oficial do
peso agora ‘liberado’ caiu cerca de 9%, ou seja, para 1.170 por dólar
americano; em contraste, a taxa do mercado negro se fortaleceu, quase fechando
a lacuna entre as taxas oficiais e informais que aumentaram acentuadamente nos
últimos anos. Apesar disso, a taxa do peso em relação ao dólar não está melhor
do que quando Javier Milei chegou ao poder no início de 2024.
Apesar da ostentação de Javier Milei, até o
momento em que o FMI veio em socorro, as reservas cambiais vinham caindo
rapidamente, com as reservas líquidas (ou seja, após obrigações e fluxos de
dívida) chegando a US $ 7 bilhões negativos. Esse montante não está muito longe
do déficit que Milei herdou do governo peronista anterior.
Javier Milei assumiu o cargo em 2024, com a
imagem de ser um libertário partidário radical do ‘livre mercado’, ou seja, um
‘anarcocapitalista’. Ele iria fechar o banco central e “dolarizar” a economia e
liberar o peso e a indústria argentina para atuar segundo as forças do mercado.
Mas logo toda essa conversa anarcocapitalista se desfez e, em vez disso, Javier
Milei foi forçado a adotar o pacote econômico neoliberal padrão para uma
economia emergente em crise endividada e com hiperinflação.
Partiu, então, para fazer cortes cruéis na
despesa pública e nos serviços, criar incentivos ao grande capital e aos
investidores estrangeiros e, claro, para a obtenção de o apoio para mais um
pacote do FMI. Javier Milei empunhou uma motosserra para dizer que cortaria
empregos no setor público e privado. Assim, em apenas alguns meses sob Javier
Milei, a Argentina enfrentou a mesma perda de empregos apenas vista antes em
quatro anos do governo do presidente de direita anterior, Mauricio Macri.
O FMI sob Kristalina Georgieva ficou
devidamente impressionado. Ela não perdeu oportunidade de tirar muitas fotos
com Milei; ademais, escreveu que “o país parece mais próximo de conseguir uma
de estabilidade macroeconômica do que em qualquer momento desde os anos 2000”.
O que o FMI apreciou é que Javier Milei parece estar comprometido com um
orçamento governamental “líquido zero”.
Tendo “serrado” os serviços públicos e
demitido milhares de funcionários públicos, ao mesmo tempo em que aumenta as
contribuições dos funcionários para a previdência social, o governo visa um
superávit no orçamento do governo (antes do pagamento de juros) e um saldo
geral em 2025. Continuará a espremer os gastos do governo e aumentar os
impostos para gerar superávits nos próximos anos – semelhante ao programa de
austeridade fiscal que a “Troika” da União Europeia impôs à Grécia há
dez anos para pagar seus empréstimos (ainda está pagando), mas desta vez com o
apoio entusiástico do governo em exercício.
Em 2018, o FMI aprovou um empréstimo de US$
57 bilhões ao então governo de direita da Argentina – o maior de todos os
tempos para um único país – dos quais quase US$ 45 bilhões foram desembolsados.
A maior parte disso apenas financiou a fuga de capitais de cerca de US$ 24
bilhões por especuladores de ‘carry-trade‘, ou seja, usando os fundos
para comprar títulos estrangeiros. O restante foi usado para amortizar cerca de
US$ 21 bilhões em títulos soberanos impagáveis – dívida que eventualmente teve
que ser “reestruturada” em 2020.
Agora o FMI está emprestando ainda mais
dinheiro, violando suas próprias regras de empréstimo. Isso porque, ao
contrário de 2018, a Argentina agora tem uma lei – aprovada quase por
unanimidade por ambas as casas do Congresso em 2021 – que exige a aprovação do
Congresso para qualquer programa de financiamento do FMI, com o objetivo de
impedir que futuros governos tomem empréstimos maciços em moeda estrangeira sem
a devida supervisão legislativa. Mas o governo de Javier Milei contornou a lei
ao emitir um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) – o equivalente argentino
das ordens executivas de emergência de Donald Trump – para evitar a aprovação
do Senado.
E o FMI está feliz em concordar com essa
prática. Isso porque o FMI quer ajudar o governo Javier Milei a sobreviver às
eleições parlamentares de meio de mandato. Pois, ele poderá supostamente
mostrar que a inflação caiu, que a economia está crescendo e que o peso está
estável. Como o FMI diz em seu relatório, isso será possível devido a
austeridade: “A disciplina de gastos em andamento, medidas de eficiência e
reformas bem sequenciadas dos sistemas tributário, de compartilhamento de
receitas e previdenciárias” e “com base nos impressionantes esforços contínuos
para desregulamentar a economia, o programa busca aprofundar as reformas
estruturais para impulsionar o crescimento da Argentina, inclusive por meio de
seu vasto potencial em energia e mineração. Os esforços se concentrarão em (i)
fortalecer a flexibilidade da produção e do mercado de trabalho, abrindo
gradualmente a economia; (ii) melhorar a eficiência do Estado e sua
previsibilidade regulatória; e (iii) melhorar a governança e a transparência,
inclusive alinhando ainda mais as estruturas anticorrupção e AML/CFT com os
padrões internacionais.”
É verdade que a inflação caiu de níveis
astronômicos. Isso foi conseguido cortando os gastos do governo e mantendo o
peso artificialmente acima de sua taxa real em relação ao dólar, tornando as
importações mais baratas. Com efeito, a hiperinflação foi substituída por uma
grande recessão.
A taxa de inflação caiu de 300% ao ano para
cerca de 50% (ainda alta). Mas isso significou um aumento dos salários
reais no último semestre de 2024, levando a média de volta ao valor que tinha
em final de 2023. Mas durante todo o ano de 2024, os salários reais
médios ainda caíram 12% e os trabalhadores do setor público sofreram um impacto
de 20%, com 30% para trabalhadores informais sem direitos etc.
O aumento desde meados de 2024 deve-se
inteiramente à melhoria da renda dos trabalhadores informais do setor privado.
Os ganhos dos trabalhadores assalariados do setor público ainda caíram 20%, os
trabalhadores do setor privado caíram 5% – e todos os trabalhadores ainda estão
em pior situação do que no início de 2023.
Durante a recessão induzida por Javier Milei
em 2024, a taxa oficial de pobreza atingiu um recorde de 51%. Essa taxa oficial
caiu agora para 38%, devido a uma combinação da queda da inflação, o aumento
relativo dos salários informais e benefícios extras no abono universal para
crianças e apoio alimentar para cobrir a inflação, voltado principalmente para
crianças e mães pobres. Sem isso, o Banco Mundial calcula que a pobreza extrema
pode ter sido 20% maior. Mesmo assim, a taxa de pobreza ainda é tão alta quanto
quando Milei chegou ao poder.
Dois terços das crianças argentinas com menos
de 14 anos vivem na pobreza. A pobreza multidimensional (medida como renda mais
falta de acesso a fatores-chave de bem-estar) aumentou entre anos de 39,8 para
41,6% e, dentro desse número, a pobreza estrutural (três desejos ou mais)
aumentou de 22,4 para 23,9%. Em suma, 25-40% das famílias argentinas estão em
extrema pobreza. E houve um aumento ainda maior na desigualdade. Os 10% mais
ricos agora ganham 23 vezes mais do que o decil mais pobre, em comparação com 19
vezes há um ano. A queda da renda atingiu 33,5% em termos reais entre os decis
mais pobres, mas apenas 20,2% entre os mais ricos. O índice de desigualdade de
Gini atingiu um recorde histórico de 0,47.
Mas a partir desse quadro terrível, Javier
Milei e o FMI se mostram cheios de otimismo. De acordo com o FMI, o crescimento
real do PIB deverá expandir-se este ano e convergir para cerca de 3% no médio
prazo. Mas após a queda de 2024, esse aumento no PIB real em 2025 só levaria o
PIB per capita de volta ao nível de 2021, quando a economia estava emergindo da
pandemia. E, de fato, o índice do PIB per capita ainda estaria bem abaixo do
pico de 2011, cerca de 15 anos depois.
Espera-se que a inflação caia para cerca de
18% a 23% no final de 2025 e atinja um dígito até 2027, desde que haja “uma
adesão estrita à âncora fiscal, juntamente com um regime monetário/cambial mais
robusto com maior flexibilidade cambial para lidar com choques e fortalecer a
gestão da demanda agregada”. Em outras palavras, austeridade indefinida.
Martin Guzmán, ex-ministro da Economia do
bloco peronista, disse que o risco de um novo acordo com o FMI é que os fundos
sejam simplesmente usados para “combater” a queda do peso, levando a maiores
dívidas. “O aspecto positivo de um novo acordo seria o refinanciamento da
dívida do FMI, que começa a vencer em setembro de 2026. O aspecto negativo é
mais dívida.” Ao contrário da ostentação de Milei, Guzmán considerou “altamente
improvável” que os controles cambiais sejam suspensos em breve, porque isso permitiria
que as empresas globais fugissem com US $ 9 bilhões que estão “presos” no país,
pressionando a taxa de câmbio para baixo e a inflação para cima.
A chave para o sucesso econômico na
Argentina, como em todas as economias, é o aumento da produtividade do trabalho
por meio de mais investimentos nos setores produtivos da economia. Todos os
empréstimos anteriores do FMI acabaram sendo contrabandeados ou investidos no
exterior ou usados para especulação financeira. Nem os governos de direita nem
os peronistas fizeram nada para impedir esse roubo especulativo do povo e dos
recursos argentinos.
Existem apenas dois grandes setores
econômicos que floresceram sob Milei: finanças e mineração. Proporcionam poucas
receitas fiscais e empregam relativamente poucos trabalhadores (4% do total).
Por outro lado, os três principais setores que ainda estão em recessão profunda
são construção, indústria e comércio, que respondem por quase metade (44,5%) do
mercado de trabalho. O maior setor de exportação e fonte de divisas da
Argentina são os produtos agrícolas e esse setor está sofrendo uma onda de
inadimplência por dívidas.
A Argentina poderia sair desse afundamento se
houvesse um boom nos preços das commodities, como houve no início dos anos
2000. A Argentina é o maior exportador mundial de óleo e farelo de soja, o
segundo maior exportador de milho e o terceiro maior exportador de soja. No
entanto, por enquanto, os preços da soja e do milho não estão em níveis muito
animadores.
A Argentina tem a terceira maior reserva de
lítio do mundo, tornando-se um ator importante na transição energética global.
No entanto, os preços do lítio caíram recentemente. A Argentina também possui
reservas consideráveis de gás de xisto. O campo petrolífero de Vaca Muerta é um
dos maiores recursos de hidrocarbonetos não convencionais do mundo, com cerca
de 16 bilhões de barris de petróleo e 308 trilhões de pés cúbicos de gás
natural e apenas chegando. Mas os preços do petróleo caíram. E o aumento de 10%
das tarifas de Trump sobre todas as importações dos EUA só aumentará os
problemas de exportação da Argentina.
¨
Chefe do FMI gera
polêmica após declaração de apoio a Milei na Argentina. Por Victor Farinelli
A
economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva,
provocou um escândalo na Argentina após declaração feita nesta quinta-feira
(24/04), na qual ela defendeu que os eleitores desse país votem no partido
governista, nas eleições legislativas marcadas para o mês de outubro.
“É
muito importante que a vontade de mudança não seja frustrada. Até o momento,
não vemos esse risco se materializando, mas peço à Argentina que mantenha o
rumo”, disse a economista búlgara, em uma entrevista realizada em Washington,
capital dos Estados Unidos.
As
palavras da chefe do FMI foram interpretadas como uma declaração de apoio ao governo do presidente Javier
Milei e ao partido A Liberdade Avança, representante da extrema direita no país.
Vale
lembrar que a Argentina elevou sua uma dívida com FMI para US$ 61
bilhões, após um novo empréstimo de US$ 20
bilhões aprovado em março deste ano.
A dívida original, de US$ 47 bilhões,
foi adquirida em 2018, durante o governo de Mauricio Macri (2015-2019), representante da
direita tradicional mas que atualmente é um aliado de Milei. Durante a gestão
de Alberto Fernández (2019-2023), o país consegui reduzir o valor para US$ 41
bilhões.
Na
mesma declaração, Georgieva reconheceu que a Argentina vem mostrando
dificuldades para lidar com as prestações da dívida, mas afirmou que “o país
está mostrando que desta vez será diferente”.
Vale
destacar que as eleições legislativas deste ano estão marcadas para o dia 26 de
outubro. O pleito servirá para renovar 127 das 257 vagas da Câmara dos
Deputados, e 24 das 72 cadeiras do Senado Federal.
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Reação peronista
Após a
declaração de Georgieva, o Partido Justicialista, sigla que reúne diferentes
correntes do peronismo – algumas mais à esquerda, outras mais moderadas –,
emitiu um comunicado rechaçando o que classificou como uma “tentativa de
intromissão no processo eleitoral de um país soberano como a Argentina”.
A
ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015), principal líder do
peronismo, acusou a economista-chefe do FMI de “pedir para que que as pessoas
votassem nos candidatos de Milei nas próximas eleições”.
“Nós
argentinos tivemos que nos esforçar muito para conquistar a liberdade de voto,
e isso não foi para que, agora, tenhamos que submeter esse direito à decisão a
um organismo estrangeiro que não tem voz ativa na vontade do povo argentino”,
argumentou a ex-mandatária.
Kirchner
também criticou o empréstimo de US$ 20 bilhões anunciado em março, afirmando
que a medida teria “motivação política”, e que serviria para ajudar o governo
atual a ter recursos para a campanha das eleições legislativas.
Já o
governador da Província de Buenos Aires, Axel Kicillof, recordou que “desde o
primeiro empréstimo que nos deram, o FMI ficou conhecido por impor ao nosso
país as políticas de ajuste econômico que empobreceram milhões de pessoas”.
“Agora
o organismo (FMI) quer ir além, e também pretende indicar quem deve governar a
Argentina”, completou o governador, que é especulado como possível candidato
presidencial da esquerda argentina para as eleições de 2027.
Fonte: A Terra é Redonda/El Destape

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