João Filho: Bolsonaro transformou UTI em
reality show de vitimismo
“Patriotas assinam OnlyFans de Bolsonaro para
ver vídeos exclusivos de suas internações”, manchetou o blog de humor
Sensacionalista. É uma piada que descreve com perfeição tudo o que temos visto
nos últimos dias. Jair Bolsonaro transformou sua internação na UTI em um grande
reality show, explorando um dos fetiches favoritos dele e do seu eleitorado
mais fiel: o da vitimização.
Como já vimos em outros episódios, a depender
das circunstâncias, o machão “imbrochável, incomível e imorrível” se transforma
no pobrezinho que sacrifica sua vida pela luta contra um sistema maligno.
Desde o dia em que ele foi internado para
mais uma cirurgia delicada, o bolsonarismo inundou as redes sociais com imagens
que exploram seu estado de saúde para causar comoção. Tudo é calculado.
Bolsonaro aparece em fotos sem camisa, fazendo questão de mostrar as cicatrizes
da facada e das cirurgias.
Ele não sente qualquer pudor em usar seu
estado de saúde como elemento de proselitismo político. Seus filhos tampouco
veem algum problema na espetacularização do sofrimento do pai. O show de
martirização de Bolsonaro em vida pode render ganhos políticos e eleitorais, e
é só isso o que lhes interessa. Esse é o padrão moral da família Bolsonaro.
A UTI do hospital DF Star em Brasília recebeu
uma espécie de intervenção militar. Várias orientações dos médicos e do
hospital foram desrespeitadas pelo bolsonarismo, que fez o que quis dentro de
uma unidade de terapia intensiva.
A equipe médica recomendou que Bolsonaro não
recebesse visitas, por exemplo, o que foi ignorado. Ele não só foi visitado por
familiares como recebeu políticos aliados, incluindo Valdemar Costa Neto e o
pastor Silas Malafaia.
Na frente do hospital, o líder do PL na
Câmara e deputado federal pelo Rio de Janeiro, Sóstenes Cavalcante, reuniu
parlamentares para fazer uma oração para o ex-presidente. O hospital foi
transformado em uma espécie de Projac do bolsonarismo, com vários núcleos
produzindo seus conteúdos audiovisuais para um grande show de horror. Aconteceu
de tudo ali, só faltou uma motociata. Trata-se de enorme vergonha para a
direção do hospital, que tolerou uma série de barbaridades incompatíveis com o
ambiente hospitalar.
Normalmente, o número de visitantes de
quartos de UTI é bastante restrito, sendo proibido o uso de celulares. Mas a
intervenção bolsonarista no DF Star permitiu que uma equipe do SBT entrasse no
quarto do ex-presidente com o equipamento completo para gravar uma entrevista
online. O quarto de UTI virou cenário de diversas lives em que Bolsonaro atacou
o Supremo Tribunal Federal, STF, fez as acusações de sempre ao Tribunal
Superior Eleitoral, TSE, e defendeu os golpistas do 8 de janeiro.
Em uma das lives organizadas por Flávio
Bolsonaro, que é senador pelo PL do RJ, o ex-presidente fez propaganda
comercial de um capacete lançado por uma empresa da qual é sócio junto com o
filho. Perceba que a martirização em vida do “mito” pode render não apenas
ganhos políticos e eleitorais, mas também financeiros.
Durante quase duas horas, Bolsonaro falou
bastante, fez suas piadas patéticas e gargalhou. A má notícia para ele é que a
live foi um fracasso de audiência. Nem mil espectadores apareceram na
transmissão.
Na manhã do dia seguinte, a live tinha sido
vista por pouco mais de 16 mil pessoas. Foi-se o tempo em que Bolsonaro
conseguia reunir centenas de milhares de apoiadores em suas lives. Tanto nas
ruas quanto nas redes, a mobilização dos devotos do “mito” deu uma murchada
significativa.
Diante desse grande show transmitido dentro
do hospital, o STF entendeu que Bolsonaro estava em plenas condições de receber
e assinar uma intimação. Relator da ação penal da trama golpista, Alexandre de
Moraes determinou no último dia 11 de abril a intimação de todos os que viraram
réus por planejar e tentar um golpe de Estado.
Trata-se de mera formalidade prevista na
legislação para comunicar pessoalmente os réus sobre a abertura da ação. Todas
as intimações foram concluídas até o dia 15, exceto a de Bolsonaro, que passou
mal no dia 12 e teve que se internar para a cirurgia.
O STF respeitou o momento delicado de saúde
do réu e segurou a intimação até que ele se recuperasse. Mas, depois da live de
duas horas em que Bolsonaro fez propaganda do seu capacete, no dia 22, Moraes
entendeu que o ex-presidente estava em plenas condições para assinar um
documento que ele e seus advogados já sabiam que ele iria receber.
Essa mera formalidade, já prevista, não teria
potencial para abalar emocionalmente o réu. Se Bolsonaro está apto a receber
várias visitas, a fazer articulação política pelo PL da Anistia, a atacar o STF
em lives e a zombar da justiça, então também está apto para assinar um
documento do seu processo.
Isso parece óbvio, mas há na imprensa quem
esteja indignado com Moraes e sentindo peninha do ex-presidente golpista que
conspirou contra a democracia. A ânsia por passar uma imagem de isentão e
doisladista parece ser maior que o apreço à lógica dos fatos, ao bom senso e à
defesa da democracia.
Na prática, o jornalismo isentão está
servindo carniça fresca para os urubus bolsonaristas que tentam transformar
Xandão em um ditador implacável. O recado da Justiça é claro: a farra acabou, e
o Brasil não será mais o quintal de um ditadorzinho mequetrefe.
A oficial de Justiça designada para entregar
a intimação foi transformada em mais um personagem desse reality show assim que
pisou no hospital. Tudo foi filmado pela equipe de Bolsonaro, que aproveitou a
cena para fazer seus discursos vitimistas de sempre e constranger a servidora
pública.
Foi publicado em suas redes um vídeo de 11
minutos, em que o ex-presidente vomitou o mesmo discursinho de perseguição de
sempre e atacou a justiça brasileira mais uma vez. Chegou até a comparar o STF
com o regime nazista.
Em certo momento, um profissional de saúde
que não aparece no vídeo faz um alerta: “a pressão do senhor subiu bastante”.
Foi aí que Bolsonaro perdeu a linha e passou a berrar repetidamente contra ele,
como se estivesse em um campo de várzea, e não dentro de uma UTI. Mais uma vez,
comprovou-se que o réu estava mais do que apto para assinar o documento.
Depois de tantos eventos nesse reality show,
o DF Star publicou um boletim médico de Bolsonaro na última quinta-feira, 24.
Ele apresentou “piora clínica”, com aumento de pressão arterial e piora dos
exames hepáticos. Segundo o boletim, “persiste a recomendação de não receber
visitas e não há previsão de alta da UTI”.
Mas o reality show de quinta categoria
precisa continuar e dificilmente as recomendações passarão a ser seguidas. Da
minha parte, desejo que Bolsonaro se recupere o mais rápido possível e esteja
com a saúde perfeita para, em breve, poder desfrutar de longas férias na
cadeia.
• Bolsonaro
morreu: o mártir em decomposição. Por Sara Goes
Bolsonaro morreu. Ele agora é um
corpo-espetáculo. Internado, entubado, costurado por câmeras, tubos e bisturis,
ele não apenas assina uma intimação do Supremo Tribunal Federal: ele performa.
Muniz Sodré nos lembra que o grotesco não é apenas o feio: é o que rompe,
deforma e fascina. É aquilo que, ao exibir o repulsivo, captura o olhar. E
Bolsonaro sabe disso. Seu corpo, inflamado e exibido, torna-se mídia e
mensagem.
É preciso entender essa operação como parte
de um dispositivo maior. O bolsonarismo, como construção simbólica, funda-se
numa estética da excrescência, numa comunicação que seduz pela abjeção. A cena
do leito de hospital não é exceção, é um método. Como nos ensina Umberto Eco, o
grotesco é aquilo que, ao mesmo tempo, repugna e fascina. Ele rompe com a forma
clássica da beleza para criar novos critérios de percepção. Bolsonaro entende
isso intuitivamente. Por isso, engana-se quem acha que Bolsonaro busca empatia
do país. O que ele busca é fidelização. Seu corpo, cheio de pus e arrotos, é um
altar escatológico, onde a dor não é silenciada, ela é amplificada.
Mas essa manipulação do corpo como signo de
sofrimento não nasce agora. Alexandre Barbalho, em seus estudos sobre a
construção do imaginário nordestino, analisa como os corpos fragilizados pela
seca de 1877 no Ceará foram instrumentalizados como ícones de um Nordeste
miserável, dependente, permanentemente carente de salvação externa. Aqueles
corpos magros, famintos, despidos, tornaram-se símbolos de um território
estigmatizado. Bolsonaro, ciente ou não, repete essa estratégia: faz de seu
corpo adoecido um campo de batalha simbólico, uma vitrine daquilo que diz ser
vítima, do “sistema”, da “justiça”, da “mulher oficial com intimação”.
Bolsonaro morreu e se tornou um sintoma.Ele é
um corpo em permanente sofrimento, cuja inflamação não busca cura, mas cliques.
Ao gritar com uma oficial de justiça, mulher e agente da ordem, o ex-presidente
não apenas confronta o Estado: ele encena sua abjeção diante do feminino
institucional, da “garota de recados de Moraes” Seu grito é menos contra a
ordem do que pela reafirmação de seu lugar grotesco na história.
Em plena guerra cultural, onde a disputa se
dá no campo dos afetos e das imagens, o mártir putrefato é uma arma poderosa.
Gaze, bile, flatulência: tudo vira signo, tudo é viralizável. O grotesco é
estratégia, é uma sebosidade que prega, é feiura que engaja. A decomposição,
aqui, não é efeito colateral, ela é uma linguagem.
Bolsonaro morreu e apodreceu. Mas ele
apodrece ao vivo para que saibamos que está entre nós, sofrendo, diz ele, por
nós. Não por amor, mas sim por saber que a gastura, como pode ser uma forma de
poder. E que o corpo doente, tal como o da seca de 1877, ainda é arma de
guerra, simbólica, política e grotescamente eficaz.
Bolsonaro morreu e o mundo, tal como o
conhecíamos, também. O que vem agora é outra coisa. Uma nova ordem decrépita,
povoada por monstros e doenças emocionais. Talvez Trump tenha sido aquele a
desferir o golpe fatal naquilo que restava de civilidade, desmoralizando o
multilateralismo e esvaziando de sentido a ONU, a OMC e a OMS. O que vamos
reconstruir, ainda não sabemos. Mas já que a putrefação virou método, que a
excrescência virou estética e que o seboso virou herói, que pelo menos façamos
do corpo em decomposição de Bolsonaro um adubo. Que dessa lama brote enfim de
novo uma vida que preste.
Fonte: The Intercept/Brasil 247

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