Jorge
Alemán: Trump e o fantasma fascista
“O fantasma é a operação do sujeito para
ocultar o vazio que o constitui. É a promessa de uma plenitude fracassada que
provoca uma expansão megalomaníaca”, escreve Jorge Alemán, psicanalista e
escritor.
Eis o
artigo.
De novo
o mesmo mantra: “Trump não pode ser
tão estúpido” e torpe a ponto de chegar aí e conseguir capturar a opinião
pública norte-americana e, portanto, é considerado uma arrogância intelectual
“progressista” pensar assim. Ouvi esse argumento repetido
na Argentina com a Coisa que governa.
Parece
que é como se estivesse proibido pensar em que condições uma sociedade, em
determinadas conjunturas históricas, tem a possibilidade de levar
um fascista oligarca e ignorante ao poder.
O
fantasma é a operação do sujeito para ocultar o vazio que o
constitui. É a promessa de uma plenitude fracassada que provoca
uma expansão megalomaníaca. De forma perversa, o sujeito se sente um
instrumento de Deus para gozar dos outros como se fossem a escória
que só existe para tapar buracos em seus orifícios eróticos.
Seria
necessário separar, de uma vez por todas, o termo perversão das práticas
sexuais e mostrar que esses fantasmas, que combinam “Kant com Sade”
(Lacan), em uma nova relação com os outros, agora, encontram a sua oportunidade
histórica no pós-neoliberalismo e em sua
realização do fantasma fascista. Os gestos nazistas
de Elon Musk, nesta perspectiva,
não estabelecem uma coincidência histórica com os membros do
nacional-socialismo da Segunda Guerra Mundial, mas constituem sua
apropriação fantasmática.
¨ Fascismo e
democracia: o verme da maçã. Por Eva lllouz
"Se
quisermos entender por que motivo alguns quadros podem chegar a distorcer nossa
percepção do mundo social, por que motivo somos incapazes de nomear
corretamente um mal-estar real, devemos levar o pensamento de Adorno a novos
patamares e captar mais firmemente do que ele a interconexão do pensamento
social com as emoções", escreve Eva Illouz, diretora de
estudos na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS)
em Paris e professora de sociologia na Universidade Hebraica de
Jerusalém.
Eis o
artigo.
Com
base no caso israelense, a autora desenvolve em seu livro A vida
emocional do populismo uma análise abrangente sobre a influência das
estruturas afetivas nas "ideologias viciadas" e nas tendências que,
atualmente, parecem estar minando a democracia por dentro.
Em
1967, em uma conferência realizada em Viena, Theodor W. Adorno apresentou ao seu
público observações de uma notável relevância para o nosso tempo, apesar das
enormes diferenças que nos separam daquela época. Embora o fascismo oficialmente
tivesse colapsado, as condições para os movimentos fascistas, ele afirmou,
ainda estavam ativas na sociedade. O principal culpado era a tendência de
concentração de capital, uma tendência ainda prevalente, que continua a criar "a
possibilidade de desclassificação, de degradação, de camadas sociais que, de
acordo com sua consciência subjetiva de classe, eram totalmente burguesas e
desejavam manter seus privilégios e status social, e até mesmo
reforçá-los". São os mesmos grupos burgueses que estão caindo de categoria
os que desenvolvem um "ódio ao socialismo ou ao que eles chamam de
socialismo, ou seja, não culpam a sua potencial desclassificação a todo o
aparato que o provoca, mas sim àqueles que adotaram uma posição crítica em
relação ao sistema em que, em outra época, os membros desses grupos possuíam um
certo status, em todo caso, de acordo com concepções
tradicionais".
Nessas
breves linhas, Adorno condensou várias ideias-chave da teoria
crítica. Para ele, o fascismo não é um acidente da história, nem uma
aberração; ao contrário, opera dentro da democracia e é contíguo a ela. É,
usando uma metáfora comum, um verme dentro da maçã, que apodrece a fruta por
dentro, invisível a olho nu. Como uma antologia sobre a Escola de Frankfurt diz: "Um
dos temas principais da primeira Escola de Frankfurt era que era
impossível traçar uma linha clara entre os extremos do fascismo político e as
patologias sociais mais cotidianas do capitalismo burguês no Ocidente".
Isso também significa que o fascismo não precisa ser um regime
completo. Na verdade, poderia ser uma tendência, um conjunto de orientações e
ideias pragmáticas que funcionam dentro das democracias. Nas observações
de Adorno também está contida a afirmação de que o capitalismo desdobra tendências para
a concentração de capital e poder (uma ideia pouco surpreendente para
um marxista, que até mesmo os não marxistas teriam dificuldade em
refutar). Adorno ainda não tinha testemunhado a forma espetacular
como o capital concentrado conseguiria capturar processos eleitorais
democráticos. Ele se referia, portanto, à dinâmica de classes que a concentração de capital criava dentro
das sociedades liberais. Essa dinâmica ameaçava constantemente degradar as
mesmas classes burguesas que antes tinham contribuído para o sistema
capitalista e se beneficiado dele.
É
importante notar que Adorno enfoca a burguesia (uma mistura de
segmentos das classes alta e média) e não o proletariado como agente
desse novo fascismo. Ecoando uma
tradição da sociologia que considerava o fascismo como a expressão do
medo da "mobilidade descendente", Adorno sugere que a mesma
classe que tinha e ainda tem privilégios é a que apoiará quando esses
privilégios estiverem ameaçados. Assim, a perda de privilégios parece ser uma
motivação-chave para apoiar líderes antidemocráticos. (Nas eleições de 2016, o
apoio a Donald Trump foi maior entre
os grupos de alta e média renda. As pessoas com renda muito baixa eram mais
propensas a apoiar Hillary Clinton.) O desejo de manter o privilégio
ou o medo de perdê-lo é, como sugere Adorno, uma força motriz da política
em geral e da política fascista em particular.
O
terceiro ponto – talvez o mais significativo (pelo menos para o meu argumento)
– contido nas sucintas observações de Adorno sugere que a
identificação com o fascismo tem suas raízes em certos modos de
pensar sobre as causas (como pensamos sobre por que as coisas são como são) e
em certos modos de atribuir culpas e responsabilidades. A classe burguesa
degradada não culpará o próprio sistema capitalista pela concentração econômica
que mina sua perda de status e privilégio. Em vez disso,
atribuirá a culpa àqueles que criticam esse mesmo sistema. Mesmo em sua
concisão, Adorno nos faz entender que tentar dar sentido ao seu mundo
social é como estar dentro de uma câmara escura, uma imagem invertida do mundo
exterior. Continuando com a tradição marxista da crítica à
ideologia,
Adorno identifica aqui um processo cognitivo muito importante em ação
no protofascismo: a incapacidade de compreender a cadeia de causas que
explicam a própria situação social. A percepção do mundo social, sugere Adorno,
pode ser distorcida de forma fundamental. Os burgueses (e
provavelmente outras classes) não podem identificar corretamente as causas de
suas perdas e, portanto, não podem se unir àqueles que, mesmo não defendendo
exatamente seus interesses, ao menos questionam o sistema responsável por sua
degradação.
Em
poucas palavras, então, Adorno avança uma hipótese sobre a
persistência das tendências fascistas em nossas
sociedades, devido tanto aos processos econômicos de acumulação e concentração
de capital quanto a certos modos de pensamento distorcidos ou incompletos, que
são encontrados especialmente nas maneiras como construímos a causalidade, nas
formas como tornamos inteligíveis os eventos e como atribuímos as culpas,
apontando para o que, em outro contexto, Jason Stanley chamou de
uma ideologia viciada. Uma ideologia viciada, como Stanley a define
em How Propaganda Works [Como a propaganda funciona], priva os
grupos do conhecimento de seus próprios estados mentais, escondendo
sistematicamente seus interesses. Quais são os verdadeiros interesses de uma
classe ou grupo de pessoas, é claro, não são autoevidentes. Todo juízo a este
respeito será feito com base em certos pressupostos por parte do pesquisador
que distingue entre interesses verdadeiros e falsos, reivindicando para si uma
certa autoridade epistêmica. Quando se tenta compreender o mundo social,
assumir essa posição de autoridade epistêmica parece inevitável. Como cidadã,
não acredito nas teorias divulgadas por QAnon e outros grupos
conspiratórios; fazer de conta que sua visão de mundo é equivalente àquela
apresentada em um jornalismo investigativo é uma forma de má fé. O pensamento,
qualquer tipo de pensamento, contém apagamentos, deslocamentos, erros e
negações. Recuperar essas negações e esses apagamentos ainda é a vocação
da análise crítica da sociedade.
A ideia
da Ideologiekritik tem sido criticada abundantemente, mas os
acontecimentos políticos recentes sugerem que não podemos facilmente renunciar
a ela. Há aqueles que argumentam que a Ideologiekritik frequentemente
é realizada de má fé (criticando os outros mas não a si mesmo), ou que concede
demasiada autoridade ao pesquisador, ou que, qualquer que seja a escolha que
uma pessoa faça, sempre será racional porque seu pensamento reflete seus objetivos.
De fato, a análise sociológica deveria respeitar as razões que os cidadãos têm
para manter suas opiniões e escolhas: não deveria zombar ou desconsiderar, mas
em uma época em que florescem teorias conspiratórias extravagantes
que obstruem os processos democráticos de formação de opinião, não podemos mais
nos permitir supor que todos os pontos de vista são iguais ou igualmente
informados; tampouco podemos nos permitir ignorar as manipulações da opinião
que são urdidas por uma classe política cada vez mais sofisticada,
extraordinariamente versada nas diversas artes de manipulação da opinião e do
boato. O poder dessas artes de manipulação se desacoplou graças à rápida
transmissão de informação nas redes sociais. Assim, contra nossa vontade,
devemos retornar à ideia da Ideologiekritik: quando se trata
de dar conta da realidade, nem todas as ideias são iguais.
Uma
ideologia estará viciada se cumprir as seguintes condições: se contradiz os
princípios básicos da democracia enquanto os cidadãos realmente desejam que as
instituições políticas os representem; se suas políticas concretas (por
exemplo, ao pretender representar as pessoas comuns e, no entanto, favorecer
políticas que dificultam enormemente o acesso à propriedade habitacional)
entram em conflito com seus princípios ideológicos ou objetivos declarados; se
desloca e distorce as causas do descontentamento de um grupo social; e se é
alheia ou cega para os defeitos do líder (por exemplo, para a corrupção em
benefício próprio ou sua indiferença ao bem-estar da nação). No entanto, deve
ficar claro que não são apenas os apoiadores dos protofascistas
populistas que
caem nesta armadilha cognitiva, neste ponto cego. Existem muitos exemplos de
casos assim. Jerome McGann argumentou, por exemplo, que a poesia
romântica negou as condições materiais em que foi produzida através de evasões
ou apagamentos. Os comunistas franceses que acreditavam no regime comunista
soviético durante a década de 1950, quando já podiam conhecer a capacidade
assassina de Stalin, são um exemplo não menos contundente de uma ideologia
viciada.
Seguindo
o pensamento de Adorno, o fascismo continua operando no seio das
sociedades democráticas porque aqueles que são prejudicados pela lógica da
concentração econômica não conseguem unir os pontos de sua cadeia causal e, de
fato, podem se opor àqueles que trabalham para desmascará-la, criando assim um
antagonismo curioso entre aqueles que se propõem a denunciar desigualdades e
injustiças e aqueles que as sofrem. Esse antagonismo tornou-se uma
característica-chave de muitas democracias ao redor do mundo. A questão
da ideologia viciada é especialmente relevante atualmente porque em
todos os lugares, e especialmente em Israel, a democracia está sob o
assalto do que Francis Fukuyama chama de populismo nacionalista, uma forma política
que mina as instituições democráticas por dentro e que, portanto, permite que
os atores mais poderosos da sociedade – as corporações e os grupos de pressão –
usem o Estado para satisfazer seus próprios interesses em detrimento do demos,
que se sente curiosamente alienado das instituições que historicamente
garantiram sua soberania. Como afirmam os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, as democracias não
morrem apenas por golpes militares ou outros eventos tão dramáticos. Elas
também morrem lentamente.
O populismo é
uma das formas políticas que assume essa morte lenta. O populismo não é fascismo em si, sim uma
tendência fascista, uma linha de força que exerce pressão sobre o campo
político e o empurra em direção a tendências regressivas e predisposições
antidemocráticas. Uma enorme quantidade de pesquisas tem tentado explicar o
surgimento dessas tendências fascistas. Alguns o explicam pela globalização da
mão de obra, que deixou a classe trabalhadora em uma situação precária; outros
apontam para uma mudança nos valores culturais à qual o populismo é uma reação.
A falsa consciência ou ideologias viciadas também são explicadas pela
transformação dos meios de comunicação, que em muitos países foram consolidados
e comprados com a intenção explícita de mudar a "agenda liberal" da
imprensa dominante.
Na França,
por exemplo, o empresário multimilionário Vincent Bolloré é
proprietário de várias redes de televisão, incluindo a Cnews, canal de
notícias 24 horas que promove uma agenda decididamente de direita. Bolloré foi
apontado como o promotor da campanha do populista de extrema-direita Éric Zemmour.
Outro exemplo é o bilionário norte-americano de origem australiana Rupert
Murdoch, que possui centenas de meios de comunicação em todo o mundo –
incluindo a máquina de propaganda que é a Fox News nos Estados Unidos
– e foi acusado de usá-los para apoiar seus aliados políticos. Em Israel,
por sua vez, o jornal gratuito Israel Hayom, financiado por um magnata do
cassino já falecido, exerce uma enorme influência política. Portanto, a
concentração de capital em todo o mundo teve o efeito de criar armas formidáveis
para distorcer a consciência.
Junto
com esse crescente controle da informação, a globalização da economia deixou as
classes trabalhadoras em uma situação precária. As políticas globalistas
de Bill Clinton, como a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América
do Norte (Nafta), provocaram a ira de muitos eleitores da classe trabalhadora;
o presidente do sindicato dos trabalhadores de energia foi citado dizendo:
"Clinton nos ferrrou e não vamos esquecer disso". As classes
trabalhadoras não se sentem mais representadas pela esquerda e até questionam a
capacidade desta de articular seus interesses, um fato que reflete a implosão
da ideologia social-democrata em todo o mundo, e talvez até o esgotamento
do liberalismo. A combinação desses fatores explica por que, em alguns lugares,
estamos testemunhando o surgimento de tendências fascistas; ainda não é um
fascismo pleno, mas uma mentalidade que certamente o predispõe.
Foco
aqui em um aspecto desse complexo cenário: a percepção do mundo social através
de quadros causais sociais defeituosos, ou seja, explicações viciadas dos
processos sociais e econômicos. As palavras "defeituoso" ou
"viciado" podem parecer desconfortavelmente próximas de
"falso" e podem parecer nos levar de volta às armadilhas
epistemológicas e morais da Ideologiekritik. No entanto,
"viciado" deve ser diferenciado de "falso" porque não
exclui ou nega o pensamento e o sentimento dos cidadãos. Contém a possibilidade
de que, embora não seja perfeito, o pensamento não seja falso, mas apenas
viciado. Não é falso no sentido de que contém a marca de uma experiência social
real que o analista deve recuperar. Essas marcas produzem razões que precisam
ser compreendidas e reconhecidas.
Presto
muita atenção a essas razões, como fica evidente nas várias entrevistas que
conduzi com pessoas que aderem a visões de direita, populistas e ultranacionalistas, nas quais tentei
compreender a coerência interna de seus pontos de vista para questionar onde e
como os pensamentos sobre nosso ambiente social são distorcidos. Concentro-me
nos quadros causais (como explicamos nosso mundo social) e nos modos como afetam
profundamente a cognição e o comportamento político.
Se
quisermos entender por que motivo alguns quadros podem chegar a distorcer nossa
percepção do mundo social, por que motivo somos incapazes de nomear
corretamente um mal-estar real, devemos levar o pensamento
de Adorno a novos patamares e captar mais firmemente do que ele a
interconexão do pensamento social com as emoções. Apenas as emoções têm o poder
multifacetado de negar a evidência empírica, moldar a motivação, transcender o
próprio interesse e responder a situações sociais específicas. Assim, sigo a sugestão
da socióloga sueca Helena Flam, de investigar a influência das emoções na
macropolítica e "mapear as emoções que sustentam as estruturas sociais e
as relações de dominação". A política está repleta de estruturas
afetivas sem as quais não seríamos capazes de entender os modos
como ideologias viciadas se infiltram nas experiências sociais dos
atores e moldam seu significado.
Fonte: Página/12 - tradução do Cepat/Nueva
Sociedad

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